segunda-feira, 13 de setembro de 2010

O beijo de papai

Foi no tempo da guerra entre a Rússia potente e os heróicos nipões, calmos filhos do oriente. Em torno a Porto Arthur o cerco se apertava como um cinto de ferro e fogo, que fechava as portas da cidade a quem, valente, ousasse por ali penetrar, ou por ali passasse. Da boca dos canhões a morte, a rir traiçoeira, partia a cada instante, e na veloz carreira a vida ia ceifando aos míseros soldados tão desumanamente assim sacrificados.

Quando, uma tarde, em que cessara num momento o canhoneio, como a cobrar novo alento, junto à linha de fogo uma adorável criança, sem mostras de temor e cheia de confiança apareceu correndo. O olhar de quem procura, ansiosa, descobrir naquela massa escura de uniformes e fumo um rosto conhecido; o risonho perfil de um semblante querido.

Ao ver a pequenita um japonês, um bravo, que, como a língua pátria, entendia a do eslavo, pergunta-lhe, tomando em suas mãos calosas as mãozinhas da criança, alvas e cetinosas:

– "Que desejas, pequena? Que procuras em meio da tropa, que aqui vês exposta ao bombardeio?" Quem és tu, de onde vens, que nome tens, menina?”

– "Meu nome" – ela responde – "eu lhe direi, é Lina. Procuro o meu papai que há muito foi embora. Há muito que o não vejo e desejava agora vê-lo outra vez!"

– "P’ra que?" – pergunta novamente o filho do Japão, dizendo incontinenti:

– "Ele aqui já não está; seguiu mais para diante. Porém, se algum recado ou coisa semelhante quiseres que eu lhe dê, breve irei encontrá-lo. Descreve-me os sinais daquele de quem falo e eu prometo cumprir teu desejo inocente."

- “É fácil conhece-lo” – informa ela contente

– "É alto o meu papai, é forte e musculoso. Tem, como eu tenho, os olhos azuis e é formoso o seu rosto barbado. É claro o seu cabelo, também da cor do meu como bem pode vê-lo."

E do seio tirando um pequeno retrato acrescenta a sorrir:

– "Façamos um contrato: eu dou-lhe este papai para que não se esqueça e, vendo o verdadeiro, em breve o reconheça. Chama-se Ivan."

– "Pois bem," – disse o nobre soldado que o retrato guardou. "Dá-me agora o recado
que hei de procurar o teu papai... e em breve..."

– "Mas não é um recado que eu peço que lhe leve" (replica-lhe a pequena)

– "Diz-me então o que queres e eu prometo cumprir o que tu me disseres."

– "Pois bem" – Lina responde – "É este o meu desejo: chegue junto ao papai e entregue-lhe este beijo..."

E assim dizendo, salta ao colo do soldado e beija-lhe o semblante em lágrimas banhado. E um bravo que não chora, ante a horrível matança chorou ao receber um beijo da criança...

Mas como dos canhões ouvisse a voz bramindo, Lina foi-se acorrer por onde tinha vindo!

Durante a noite inteira o fogo não cessara e as tropas do Mikado aos poucos avançara num assalto feroz contra o inimigo em frente; cada qual mais revel, cada qual mais valente!

Quando enfim à vitória as trombetas ecoaram e as bandeiras do sol vermelho tremularam sobre a trincheira russa à força conquistada, todo o céu se aclarava à rósea madrugada e pelo campo afora os mortos e os feridos eram, sem distinção, por todos recolhidos.

Quando ao ver de um soldado a fronte descorada, pendida sobre o peito, a blusa ensangüentada, lembrou-se o japonês das feições da criança.

Olha o retrato e vê a perfeita semelhança. Era um russo, o ferido, e o japonês o chama:

– "Ivan!"

– "Que me quereis?" O moribundo exclama, surpreso por ver o seu nome proferido por lábios do inimigo.

– "Eu te trago escondido" – o bravo continua – "um beijo que te envia tua filhinha Lina... Ela mesma o daria se pudesse vir cá. Não podendo, guardei-o para agora o depor de tua fronte em meio.

E ao dizer isso, calmo, o filho do oriente beijou a fronte do russo e o abraçou ternamente.

Autor: Eustórgio Wanderley (Recife-PE, 05/09/1882 - Rio de Janeiro-RJ, 31/05/1962).

Fonte: Jornal de Poesia e Dicionário de Folcloristas Brasileiros.

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