Foi para São Paulo, de avião. Devia demorar-se, lá, talvez uma semana.
Desembarcou, fez seus negócios e, às duas horas da manhã, apanhou o
telefone do hotel:
— Eu queria um interurbano.
— Para onde?
— Rio.
Deu o número e o nome. Estava no quarto, que era no décimo andar, e
estava morto de saudades. Casado há três anos, era doido pela esposa.
Confessava mesmo, com certo heroísmo: “Se eu perdesse minha mulher,
deixaria de ser homem”. Exagero, como se vê. Mas era incontestável a
paixão de Eusebiozinho. Diga-se de passagem que a mulher merecia,
fisicamente, essa paixão. Com vinte e três anos, podia ser considerada
uma das pequenas mais bonitas do Rio. E, em casa, na rua, no ônibus, em
toda a parte, viviam num agarramento de namorados ou amantes. Uma vez,
foi até interessante. Foram a um cinema e, em dado momento, o vagalume
apareceu e fulminou aquele casal suspeito e inconveniente. Eusebiozinho
foi tomar satisfações com o funcionário do cinema. Enfiando o dedo na
cara do outro, berrou: “Pois fique sabendo que é minha esposa!”. Os
amigos, quando os viam, naquela felicidade inalterável e irritante,
saudavam:
— O único casal feliz do mundo!
O LADRÃO
Enfim, foi completada a ligação. Eusebiozinho, sôfrego, no telefone,
desmanchava-se: “Como vai essa coisinha louca?”. Perguntava: “Tu aceitas
um beijo nessa boquinha?”. Eram dengues de namorado, que ele preservava
ao longo dos dias e meses. Ela respondia qualquer coisa, que ele não
escutava muito bem. O telefone estava péssimo. E o rapaz, na sua avidez
de apaixonado, não queria perder uma sílaba. De repente, julgou captar a
palavra ladrão. Insistiu:
— O quê? Fala mais alto, meu anjinho, fala com a boca encostada no fone! Agora repete!
Ela repetiu, quase soletrando:
— Entrou ladrão, hoje, aqui em casa!
— Ladrão?
— Pois é!
Atônito, apavorado, berrava, agarrado ao telefone.
— Mas que negócio é esse? Fala mais alto, meu amor! Não estou ouvindo tostão!
— Alô! Alô!...
A voz da mulher fugiu de todo. Histérico, bateu no gancho:
— Telefonista! Telefonista!
Nada. Acabou desligando. Estava fora de si. Pensou nesse ladrão que
invadira sua casa. E o pior é que Luciana estava só e, em conseqüência,
indefesa. Pôs-se a pensar nas possibilidades que contém um assalto.
Digamos que o miserável, vendo Luciana, linda e solitária, em pleno
sono, numa de suas camisolas diáfanas e decotadas, perdesse a cabeça.
Foi a hipótese de não sei que ultrajes que o inspirou naquele momento.
Meia hora depois estava no aeroporto e se instalava no avião de
regresso. Deixava interesses importantíssimos em São Paulo, negócios
muito sérios que exigiam sua presença lá. Mas tomou a resolução na
seguinte base: “Primeiro, Luciana. O resto que vá para o diabo que o
carregue!”.
O ASSALTO
Moravam numa ruazinha tranqüila e idílica da Tijuca. Todos os moradores
se conheciam e se davam como se fossem uma família só, numerosa e
solidária. Quando Eusebiozinho reapareceu, esbaforido, metade da
vizinhança se concentrou na sua casa. Luciana se atirou nos seus braços.
E, depois dos primeiros beijos, ela teve o desabafo:
— Ainda bem que você voltou! Graças a Deus!
E ele, sentando-se, afrouxando a gravata:
— Não te deixo mais, nunca mais, nem que o mundo venha abaixo. Mas, meu anjo, como foi o negócio? Entrou ladrão, foi?
— Imagina o perigo, meu filho! E sabe quem foi que viu o ladrão? Dona Tereza!
Eusebiozinho virou-se para a indigitada, que confirmou. E veio, então, a
minuciosa reconstituição. A pobre Luciana, sem desconfiar de nada, fora
se deitar às dez horas, depois de conversar no portão com algumas
vizinhas. Como tinha um dormir muito fácil, pegou logo no sono. E não
vira nada, não tivera a mínima noção do perigo. O marido, pálido,
tomava-se de um furor impotente, ao pensar nesse desconhecido, nesse
homem, que entrara no quarto de sua mulher. Ocorria-lhe que as camisolas
de Luciana eram sumárias. E, no mais íntimo de si mesmo, teve ciúmes do
gatuno. Luciana, porém, continuava a história. Cerca de onze e meia, d.
Tereza, ali presente, estando com muito calor e consumida de insônia,
viera para a janela. Trazia uma revista, com que se abanava. E foi então
que, de repente, vê na casa de Eusebiozinho um vulto mais do que
suspeito. Estando o dono da casa em São Paulo, uma coisa era óbvia:
aquele vulto, evidentemente masculino, tinha que ser, logicamente,
ladrão. Os presentes foram unânimes:
— Claro!
D. Tereza tratou de recuar, de espiar por detrás das cortinas. O ladrão,
colado à parede, ainda espichou o pescoço, num reconhecimento do
ambiente. Não vendo ninguém, encheu-se de ânimo. Correu e, para não
perder tempo, pulou o pequeno portão e, então, a vizinha pôde vê-lo
melhor. Eusebiozinho bufou:
— Cachorro!
Uma vez na calçada, o ladrão corria procurando não pisar forte, por
causa do barulho. Foi depois disso que, caindo em si, d. Tereza pusera a
boca no mundo. Num instante, a rua inteira estava em polvorosa. A pobre
da Luciana acordara com o alarido. Eusebiozinho, enxugando o suor da
testa, queria saber: “Como era ele?”. D. Tereza deu a primeira
informação: “Bem vestido, alinhado, simpático”. Eusebiozinho abriu a
boca e d. Tereza confirmou:
— Nem parecia! Bonitão mesmo!
O RAFFLES
Era um desses casos que excitam as imaginações pelo novelesco. O fato de
ser um gatuno bonito já era excepcional. E, além do mais, havia uma
circunstância: não desaparecera nada, absolutamente nada. Eusebiozinho
coçava a cabeça:
— Mas não desapareceu nada? Tem certeza? Vê lá!
E a mulher:
— Nada.
Para o rapaz, que tinha ciúmes até dos móveis, o episódio assumia
aspectos cada vez mais desagradáveis. Estaria disposto a admitir um
larápio maltrapilho, imundo e boçal. Mas aquele gatuno elegante ou,
segundo o detestável termo de d. Tereza, “bonitão”, enchia-o de despeito
e de cólera homicida. Pediu um revólver emprestado: “Meto uma bala
nesse desgraçado!”. A mulher protestava: “Pra que matar, meu filho?”.
Ele, atirando patadas no chão, confirmava os propósitos homicidas:
— Mato sim! Mato esse cão!
E, de fato, já não dormia direito. Qualquer rumor o fazia saltar da
cama, de revólver em punho. Luciana tratava de apaziguá-lo: “Isso já é
mania, Eusébio! Vem deitar, vem, meu filho!”. Afinal ele vinha. Todas as
tardes, ao voltar do emprego, parava na porta de d. Tereza. Fazia e
repetia as perguntas: “A senhora o reconheceria se o visse?”. Ela
afirmava:
— Claro! Sou muito boa fisionomista, graças a Deus!
O aspecto que mais deslumbrava a santa senhora, no caso, era a analogia
entre o gatuno da Tijuca e o Raffles dos livros. Ela jamais imaginara
encontrar, na vida real, um criminoso grã-fino. Fantasiava: “No mínimo,
ele freqüenta bailes, usa casaca”.
O ENCONTRO
Uma noite, houve um baile grã-fino, na Gávea. E, por coincidência, d.
Tereza também foi. No automóvel, Eusebiozinho ia conversando com a
vizinha. Na sua idéia fixa, fez a confissão: — “A única coisa que não
topo é ladrão!”. E exagerou mesmo: — “Devia-se matar os ladrões a
pauladas no meio da rua!”. D. Tereza, assustada com essa ferocidade,
ponderou:
— Mas você não pode se queixar. Arranjou um ladrão ultracamarada, que não roubou nada!
Enfim, chegaram na festa. Luciana ia muito linda e o próprio marido,
apesar desta condição, olhava para o decote ousado e revelador. Fez,
para si mesmo, uma reflexão melancólica: “Mulher bonita demais é
espeto!”. E a verdade, a aterradora verdade, é que Luciana era bonita
demais. Suspirando, com um princípio de tormento, Eusebiozinho rendeu à
gorda d. Tereza uma homenagem convencional: convidou-a para uma primeira
dança. Iam os dois pela sala, nas evoluções do fox, quando d. Tereza
estaca. Esbugalha os olhos e cutuca seu par: — “O ladrão!”. Eusebiozinho
empalideceu: — “Onde?”. E ela: — “Ali!”. Sim, lá estava ele, o
miserável, num smoking impecável, quase belo, cercado de moças. A pura e
simples verdade é que ele as fascinava e elas pareciam magnetizadas,
Assombrado, Eusebiozinho interpelava a vizinha: — “Tem certeza?”. Ela
foi definitiva:
— Pela luz que me alumia!
Então, o rapaz não perdeu mais tempo. Foi direto à dona da casa e
dramatizou, indicando o Raffles: “Há um ladrão entre seus convidados”.
Quando a dona da casa viu o suspeito, até achou graça: “Mas aquele é o
doutor fulano, engenheiro, milionário, tem vários Cadillacs!”. Ele,
desconcertado, foi obrigado a admitir o engano, o mal-entendido. Eram
duas horas quando voltaram, os três. D. Tereza, apavorada e num
constrangimento evidente, admitia que se enganara. De vez em quando,
olhava para Luciana, suspirando. Eusebiozinho não abriu a boca, e
Luciana parecia feliz.
Podia ser mal-entendido, gafe, o diabo. Mas o fato é que, no quarto,
ainda de smoking, deixou-se possuir de uma certeza mortal. A mulher,
diante do espelho, tirava os brincos. Ele apanhou o revólver. E, muito
calmo, disse:
— Não tenho coragem de te matar.
Luciana viu, através do espelho, quando o marido encostou o cano do revólver na própria fronte e apertou o gatilho.
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quinta-feira, 1 de setembro de 2011
O raffles
Assassino
Eram uns seis casais. Na sala de visitas de um deles, conversavam sobre o
amor, sobre a fidelidade. Em dado momento, Almeida pousa o copo de
uísque e dá sua opinião:
— O destino natural da mulher é ser traída!
Os homens riram-se, as senhoras protestaram:
— Que horror!
E uma delas, casada recentemente, bateu as três pancadas na madeira. Mas já o Almeida, com o seu cordial cinismo, retificava:
— Com exceção das presentes, claro.
Então, a dona da casa, que era uma senhora muito viva e brilhante, vira-se para o Almeida:
— Vocês, homens, são uns mascarados. Pelo seguinte: — um homem sempre
trai com outra mulher. E esta mulher há de estar traindo alguém — ou não
está?
Ele acha graça: “Depende”. A dona da casa continua:
— A verdade é que todo mundo trai e todo mundo é traído.
O Almeida ergue a voz:
— Menos eu! Eu, não!
LUA-DE-MEL
Era uma discussão sem conseqüência, para matar o tempo. Uns dez minutos
depois, já conversavam sobre outros assuntos. E, cerca de meia-noite,
Almeida e sua mulher, Dorinha, despediram-se. Estavam casados há treze
anos e viviam ainda numa relativa lua-de-mel. No automóvel, a caminho de
casa, Dorinha pergunta-lhe:
— É verdade que todo mundo é traído? E todo mundo trai?
Almeida acende um cigarro:
— Não sei se o outros traem, nem interessa. Só sei que eu não traio você, nem você a mim.
Dorinha suspira,
— Por enquanto.
E ele, grave:
— Por enquanto e sempre.
Fazem o resto da viagem em silêncio. Depois, em casa, tirando os brincos, Dorinha começa:
— Se eu te fizesse uma pergunta, tu me responderias, batata, com toda a sinceridade?
— Mas claro. Qual é a pergunta?
A pequena vacila. Põe os brincos na caixinha de jóias. De costas para o marido, fala:
— Que farias tu se eu, um dia, te traísse? Pergunto: — que farias comigo?
— Ora, não amola!
Dorinha teima:
— Isso não é resposta! Vamos, fala — tu farias o quê? Tirando a camisa, ele boceja:
— Vai dormir, que teu mal é sono!
Quando Almeida se senta, numa extremidade da cama, para tirar os
sapatos, a mulher senta-se também no seu colo. Beijando-o na face, no
pescoço, insiste:
— Terias coragem de me matar?
— Talvez.
Dorinha ergueu-se:
— Então, você não gosta de mim, não me ama, é um conversa-fiada!
E o marido:
— O sujeito só mata porque ama, sua boba!
Reagiu:
— Mentira! Quem ama perdoa, ou finge que não sabe. Eu só acredito em amor que resiste à infidelidade! Estou zangada contigo!
Almeida abre a boca num bocejo:
— Vem dormir, anda, que amanhã tenho que levantar cedo à beça!
Ela ficou em pé em frente a ele.
Rosnou:
— Você não me ama!
OBSESSÃO
Passou. No dia seguinte, na hora de sair para o emprego, Almeida vem beijá-la. Dorinha foge com o rosto:
— Não, senhor!
— Por quê?
E ela:
— Você pensa que eu me esqueci de sua ameaça?
Almeida não entendeu:
— Que ameaça?
E ela:
— Ameaça de morte, sim, senhor. Tu disseste que me matava se eu o traísse.
O marido dá-lhe um tapinha festivo na face:
— Sossega, leoa-de-chácara! E até logo, que eu já estou atrasado!
Na esquina, ele fez o que fazia sempre, isto é, virou-se para acenar com
os dedos. Mas teve a surpresa: a mulher não estava no portão. Era
talvez um lapso de Dorinha, um detalhe mínimo. Fosse como fosse, aquilo o
aborreceu. E, no trabalho, a mulher telefona para ele. Começa:
— Aqui fala a sua futura vítima.
A princípio, não reconheceu a voz:
— Que vítima?
Ela respondeu:
— Você não disse que me matava?
Pela primeira vez irritou-se:
— Não brinca assim. Já está chata essa brincadeira. Passou. Ao chegar de
noite em casa, inclinou-se para beijá-la. Novamente ela recua:
— Não, senhor. O futuro assassino não tem direito de beijar a vítima.
Era demais. Criou para a mulher o dilema: “Das duas, uma: ou você acaba
com essa gracinha ou eu vou me zangar muito seriamente”. De braços
cruzados, o rosto duro, ela o desafia:
— Não é gracinha nenhuma. Eu falo sério. Você disse que me matava e eu considero você o meu assassino.
Atônito, balbucia:
— Quer dizer que você insiste nesse palpite imbecil?
— Insisto.
Explodiu:
— Pois, então, dane-se. Vá tomar banho, antes que eu me esqueça!
O casal foi dormir sem se falar.
DESESPERO
Na manhã seguinte, quando Almeida acorda, Dorinha está sentada na cama. Pergunta ao marido:
— Quando é que você quer me matar?
Ele estoura:
— Quando você me trair!
Dorinha não responde imediatamente. O marido levanta-se, vai escovar os dentes. Súbito, a esposa aparece na porta do banheiro:
— Quem sabe se eu já não traí você? Quem sabe?
Com o dentifrício escorrendo-lhe da boca, o outro bufa:
— Pára com isso, olha que eu estou te avisando!
E ela, trincando os dentes:
— Assassino!
Almeida atira longe a escova. Agarra a esposa pelos dois braços e a sacode:
— Não brinca assim, que eu te arrebento.
E a empurra.
A MENSAGEM
Dois ou três dias depois, Almeida recebe um telefonema do
pronto-socorro. Alguém dizia: — “Sua mulher foi atropelada!”. Almeida
mal entendeu. Alucinado, corre. De fato, Dorinha fora atropelada, sim,
num cruzamento de Carioca com Uruguaiana, e estava por um fio, morre ou
não morre. Durante uma semana, esteve inconsciente, mas era óbvio que os
médicos tinham esperança de salvá-la.
Uma noite, estava Almeida só, no quarto, com a acidentada. De repente
sente que ela pousa a mão na sua. Do fundo do seu martírio, numa voz que
é um sopro, ela está dizendo:
— Eu traí você, eu... traí...
Almeida sentiu que era a confissão da agonia. Antes que ela morresse, ele a matou.
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