quinta-feira, 1 de setembro de 2011

O raffles

Foi para São Paulo, de avião. Devia demorar-se, lá, talvez uma semana. Desembarcou, fez seus negócios e, às duas horas da manhã, apanhou o telefone do hotel:

— Eu queria um interurbano.

— Para onde?

— Rio.

Deu o número e o nome. Estava no quarto, que era no décimo andar, e estava morto de saudades. Casado há três anos, era doido pela esposa. Confessava mesmo, com certo heroísmo: “Se eu perdesse minha mulher, deixaria de ser homem”. Exagero, como se vê. Mas era incontestável a paixão de Eusebiozinho. Diga-se de passagem que a mulher merecia, fisicamente, essa paixão. Com vinte e três anos, podia ser considerada uma das pequenas mais bonitas do Rio. E, em casa, na rua, no ônibus, em toda a parte, viviam num agarramento de namorados ou amantes. Uma vez, foi até interessante. Foram a um cinema e, em dado momento, o vagalume apareceu e fulminou aquele casal suspeito e inconveniente. Eusebiozinho foi tomar satisfações com o funcionário do cinema. Enfiando o dedo na cara do outro, berrou: “Pois fique sabendo que é minha esposa!”. Os amigos, quando os viam, naquela felicidade inalterável e irritante, saudavam:

— O único casal feliz do mundo!

O LADRÃO

Enfim, foi completada a ligação. Eusebiozinho, sôfrego, no telefone, desmanchava-se: “Como vai essa coisinha louca?”. Perguntava: “Tu aceitas um beijo nessa boquinha?”. Eram dengues de namorado, que ele preservava ao longo dos dias e meses. Ela respondia qualquer coisa, que ele não escutava muito bem. O telefone estava péssimo. E o rapaz, na sua avidez de apaixonado, não queria perder uma sílaba. De repente, julgou captar a palavra ladrão. Insistiu:

— O quê? Fala mais alto, meu anjinho, fala com a boca encostada no fone! Agora repete!

Ela repetiu, quase soletrando:

— Entrou ladrão, hoje, aqui em casa!

— Ladrão?

— Pois é!

Atônito, apavorado, berrava, agarrado ao telefone.

— Mas que negócio é esse? Fala mais alto, meu amor! Não estou ouvindo tostão!

— Alô! Alô!...

A voz da mulher fugiu de todo. Histérico, bateu no gancho:

— Telefonista! Telefonista!

Nada. Acabou desligando. Estava fora de si. Pensou nesse ladrão que invadira sua casa. E o pior é que Luciana estava só e, em conseqüência, indefesa. Pôs-se a pensar nas possibilidades que contém um assalto. Digamos que o miserável, vendo Luciana, linda e solitária, em pleno sono, numa de suas camisolas diáfanas e decotadas, perdesse a cabeça. Foi a hipótese de não sei que ultrajes que o inspirou naquele momento. Meia hora depois estava no aeroporto e se instalava no avião de regresso. Deixava interesses importantíssimos em São Paulo, negócios muito sérios que exigiam sua presença lá. Mas tomou a resolução na seguinte base: “Primeiro, Luciana. O resto que vá para o diabo que o carregue!”.

O ASSALTO

Moravam numa ruazinha tranqüila e idílica da Tijuca. Todos os moradores se conheciam e se davam como se fossem uma família só, numerosa e solidária. Quando Eusebiozinho reapareceu, esbaforido, metade da vizinhança se concentrou na sua casa. Luciana se atirou nos seus braços. E, depois dos primeiros beijos, ela teve o desabafo:

— Ainda bem que você voltou! Graças a Deus!

E ele, sentando-se, afrouxando a gravata:

— Não te deixo mais, nunca mais, nem que o mundo venha abaixo. Mas, meu anjo, como foi o negócio? Entrou ladrão, foi?

— Imagina o perigo, meu filho! E sabe quem foi que viu o ladrão? Dona Tereza!

Eusebiozinho virou-se para a indigitada, que confirmou. E veio, então, a minuciosa reconstituição. A pobre Luciana, sem desconfiar de nada, fora se deitar às dez horas, depois de conversar no portão com algumas vizinhas. Como tinha um dormir muito fácil, pegou logo no sono. E não vira nada, não tivera a mínima noção do perigo. O marido, pálido, tomava-se de um furor impotente, ao pensar nesse desconhecido, nesse homem, que entrara no quarto de sua mulher. Ocorria-lhe que as camisolas de Luciana eram sumárias. E, no mais íntimo de si mesmo, teve ciúmes do gatuno. Luciana, porém, continuava a história. Cerca de onze e meia, d. Tereza, ali presente, estando com muito calor e consumida de insônia, viera para a janela. Trazia uma revista, com que se abanava. E foi então que, de repente, vê na casa de Eusebiozinho um vulto mais do que suspeito. Estando o dono da casa em São Paulo, uma coisa era óbvia: aquele vulto, evidentemente masculino, tinha que ser, logicamente, ladrão. Os presentes foram unânimes:

— Claro!

D. Tereza tratou de recuar, de espiar por detrás das cortinas. O ladrão, colado à parede, ainda espichou o pescoço, num reconhecimento do ambiente. Não vendo ninguém, encheu-se de ânimo. Correu e, para não perder tempo, pulou o pequeno portão e, então, a vizinha pôde vê-lo melhor. Eusebiozinho bufou:

— Cachorro!

Uma vez na calçada, o ladrão corria procurando não pisar forte, por causa do barulho. Foi depois disso que, caindo em si, d. Tereza pusera a boca no mundo. Num instante, a rua inteira estava em polvorosa. A pobre da Luciana acordara com o alarido. Eusebiozinho, enxugando o suor da testa, queria saber: “Como era ele?”. D. Tereza deu a primeira informação: “Bem vestido, alinhado, simpático”. Eusebiozinho abriu a boca e d. Tereza confirmou:

— Nem parecia! Bonitão mesmo!

O RAFFLES

Era um desses casos que excitam as imaginações pelo novelesco. O fato de ser um gatuno bonito já era excepcional. E, além do mais, havia uma circunstância: não desaparecera nada, absolutamente nada. Eusebiozinho coçava a cabeça:

— Mas não desapareceu nada? Tem certeza? Vê lá!

E a mulher:

— Nada.

Para o rapaz, que tinha ciúmes até dos móveis, o episódio assumia aspectos cada vez mais desagradáveis. Estaria disposto a admitir um larápio maltrapilho, imundo e boçal. Mas aquele gatuno elegante ou, segundo o detestável termo de d. Tereza, “bonitão”, enchia-o de despeito e de cólera homicida. Pediu um revólver emprestado: “Meto uma bala nesse desgraçado!”. A mulher protestava: “Pra que matar, meu filho?”. Ele, atirando patadas no chão, confirmava os propósitos homicidas:

— Mato sim! Mato esse cão!

E, de fato, já não dormia direito. Qualquer rumor o fazia saltar da cama, de revólver em punho. Luciana tratava de apaziguá-lo: “Isso já é mania, Eusébio! Vem deitar, vem, meu filho!”. Afinal ele vinha. Todas as tardes, ao voltar do emprego, parava na porta de d. Tereza. Fazia e repetia as perguntas: “A senhora o reconheceria se o visse?”. Ela afirmava:

— Claro! Sou muito boa fisionomista, graças a Deus!

O aspecto que mais deslumbrava a santa senhora, no caso, era a analogia entre o gatuno da Tijuca e o Raffles dos livros. Ela jamais imaginara encontrar, na vida real, um criminoso grã-fino. Fantasiava: “No mínimo, ele freqüenta bailes, usa casaca”.

O ENCONTRO

Uma noite, houve um baile grã-fino, na Gávea. E, por coincidência, d. Tereza também foi. No automóvel, Eusebiozinho ia conversando com a vizinha. Na sua idéia fixa, fez a confissão: — “A única coisa que não topo é ladrão!”. E exagerou mesmo: — “Devia-se matar os ladrões a pauladas no meio da rua!”. D. Tereza, assustada com essa ferocidade, ponderou:

— Mas você não pode se queixar. Arranjou um ladrão ultracamarada, que não roubou nada!

Enfim, chegaram na festa. Luciana ia muito linda e o próprio marido, apesar desta condição, olhava para o decote ousado e revelador. Fez, para si mesmo, uma reflexão melancólica: “Mulher bonita demais é espeto!”. E a verdade, a aterradora verdade, é que Luciana era bonita demais. Suspirando, com um princípio de tormento, Eusebiozinho rendeu à gorda d. Tereza uma homenagem convencional: convidou-a para uma primeira dança. Iam os dois pela sala, nas evoluções do fox, quando d. Tereza estaca. Esbugalha os olhos e cutuca seu par: — “O ladrão!”. Eusebiozinho empalideceu: — “Onde?”. E ela: — “Ali!”. Sim, lá estava ele, o miserável, num smoking impecável, quase belo, cercado de moças. A pura e simples verdade é que ele as fascinava e elas pareciam magnetizadas, Assombrado, Eusebiozinho interpelava a vizinha: — “Tem certeza?”. Ela foi definitiva:

— Pela luz que me alumia!

Então, o rapaz não perdeu mais tempo. Foi direto à dona da casa e dramatizou, indicando o Raffles: “Há um ladrão entre seus convidados”. Quando a dona da casa viu o suspeito, até achou graça: “Mas aquele é o doutor fulano, engenheiro, milionário, tem vários Cadillacs!”. Ele, desconcertado, foi obrigado a admitir o engano, o mal-entendido. Eram duas horas quando voltaram, os três. D. Tereza, apavorada e num constrangimento evidente, admitia que se enganara. De vez em quando, olhava para Luciana, suspirando. Eusebiozinho não abriu a boca, e Luciana parecia feliz.

Podia ser mal-entendido, gafe, o diabo. Mas o fato é que, no quarto, ainda de smoking, deixou-se possuir de uma certeza mortal. A mulher, diante do espelho, tirava os brincos. Ele apanhou o revólver. E, muito calmo, disse:

— Não tenho coragem de te matar.

Luciana viu, através do espelho, quando o marido encostou o cano do revólver na própria fronte e apertou o gatilho.
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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

Assassino

Eram uns seis casais. Na sala de visitas de um deles, conversavam sobre o amor, sobre a fidelidade. Em dado momento, Almeida pousa o copo de uísque e dá sua opinião:

— O destino natural da mulher é ser traída!

Os homens riram-se, as senhoras protestaram:

— Que horror!

E uma delas, casada recentemente, bateu as três pancadas na madeira. Mas já o Almeida, com o seu cordial cinismo, retificava:

— Com exceção das presentes, claro.

Então, a dona da casa, que era uma senhora muito viva e brilhante, vira-se para o Almeida:

— Vocês, homens, são uns mascarados. Pelo seguinte: — um homem sempre trai com outra mulher. E esta mulher há de estar traindo alguém — ou não está?

Ele acha graça: “Depende”. A dona da casa continua:

— A verdade é que todo mundo trai e todo mundo é traído.

O Almeida ergue a voz:

— Menos eu! Eu, não!

LUA-DE-MEL

Era uma discussão sem conseqüência, para matar o tempo. Uns dez minutos depois, já conversavam sobre outros assuntos. E, cerca de meia-noite, Almeida e sua mulher, Dorinha, despediram-se. Estavam casados há treze anos e viviam ainda numa relativa lua-de-mel. No automóvel, a caminho de casa, Dorinha pergunta-lhe:

— É verdade que todo mundo é traído? E todo mundo trai?

Almeida acende um cigarro:

— Não sei se o outros traem, nem interessa. Só sei que eu não traio você, nem você a mim.

Dorinha suspira,

— Por enquanto.

E ele, grave:

— Por enquanto e sempre.

Fazem o resto da viagem em silêncio. Depois, em casa, tirando os brincos, Dorinha começa:

— Se eu te fizesse uma pergunta, tu me responderias, batata, com toda a sinceridade?

— Mas claro. Qual é a pergunta?

A pequena vacila. Põe os brincos na caixinha de jóias. De costas para o marido, fala:

— Que farias tu se eu, um dia, te traísse? Pergunto: — que farias comigo?

— Ora, não amola!

Dorinha teima:

— Isso não é resposta! Vamos, fala — tu farias o quê? Tirando a camisa, ele boceja:

— Vai dormir, que teu mal é sono!

Quando Almeida se senta, numa extremidade da cama, para tirar os sapatos, a mulher senta-se também no seu colo. Beijando-o na face, no pescoço, insiste:

— Terias coragem de me matar?

— Talvez.

Dorinha ergueu-se:

— Então, você não gosta de mim, não me ama, é um conversa-fiada!

E o marido:

— O sujeito só mata porque ama, sua boba!

Reagiu:

— Mentira! Quem ama perdoa, ou finge que não sabe. Eu só acredito em amor que resiste à infidelidade! Estou zangada contigo!

Almeida abre a boca num bocejo:

— Vem dormir, anda, que amanhã tenho que levantar cedo à beça!

Ela ficou em pé em frente a ele.

Rosnou:

— Você não me ama!

OBSESSÃO


Passou. No dia seguinte, na hora de sair para o emprego, Almeida vem beijá-la. Dorinha foge com o rosto:

— Não, senhor!

— Por quê?

E ela:

— Você pensa que eu me esqueci de sua ameaça?

Almeida não entendeu:

— Que ameaça?

E ela:

— Ameaça de morte, sim, senhor. Tu disseste que me matava se eu o traísse.

O marido dá-lhe um tapinha festivo na face:

— Sossega, leoa-de-chácara! E até logo, que eu já estou atrasado!

Na esquina, ele fez o que fazia sempre, isto é, virou-se para acenar com os dedos. Mas teve a surpresa: a mulher não estava no portão. Era talvez um lapso de Dorinha, um detalhe mínimo. Fosse como fosse, aquilo o aborreceu. E, no trabalho, a mulher telefona para ele. Começa:

— Aqui fala a sua futura vítima.

A princípio, não reconheceu a voz:

— Que vítima?

Ela respondeu:

— Você não disse que me matava?

Pela primeira vez irritou-se:

— Não brinca assim. Já está chata essa brincadeira. Passou. Ao chegar de noite em casa, inclinou-se para beijá-la. Novamente ela recua:

— Não, senhor. O futuro assassino não tem direito de beijar a vítima.

Era demais. Criou para a mulher o dilema: “Das duas, uma: ou você acaba com essa gracinha ou eu vou me zangar muito seriamente”. De braços cruzados, o rosto duro, ela o desafia:

— Não é gracinha nenhuma. Eu falo sério. Você disse que me matava e eu considero você o meu assassino.

Atônito, balbucia:

— Quer dizer que você insiste nesse palpite imbecil?

— Insisto.

Explodiu:

— Pois, então, dane-se. Vá tomar banho, antes que eu me esqueça!

O casal foi dormir sem se falar.

DESESPERO

Na manhã seguinte, quando Almeida acorda, Dorinha está sentada na cama. Pergunta ao marido:

— Quando é que você quer me matar?

Ele estoura:

— Quando você me trair!

Dorinha não responde imediatamente. O marido levanta-se, vai escovar os dentes. Súbito, a esposa aparece na porta do banheiro:

— Quem sabe se eu já não traí você? Quem sabe?

Com o dentifrício escorrendo-lhe da boca, o outro bufa:

— Pára com isso, olha que eu estou te avisando!

E ela, trincando os dentes:

— Assassino!

Almeida atira longe a escova. Agarra a esposa pelos dois braços e a sacode:

— Não brinca assim, que eu te arrebento.

E a empurra.

A MENSAGEM

Dois ou três dias depois, Almeida recebe um telefonema do pronto-socorro. Alguém dizia: — “Sua mulher foi atropelada!”. Almeida mal entendeu. Alucinado, corre. De fato, Dorinha fora atropelada, sim, num cruzamento de Carioca com Uruguaiana, e estava por um fio, morre ou não morre. Durante uma semana, esteve inconsciente, mas era óbvio que os médicos tinham esperança de salvá-la.

Uma noite, estava Almeida só, no quarto, com a acidentada. De repente sente que ela pousa a mão na sua. Do fundo do seu martírio, numa voz que é um sopro, ela está dizendo:

— Eu traí você, eu... traí...

Almeida sentiu que era a confissão da agonia. Antes que ela morresse, ele a matou.
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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.