segunda-feira, 17 de setembro de 2012

O tacape de Tibiriçá

Entre os chefes indígenas que no amanhecer do Brasil, ao se iniciar nossa colonização, fizeram causa comum com os portugueses, o mais ilustre foi, sem dúvida, aquele à sombra de cuja fiel amizade devemos o estabelecimento de Piratininga, berço da metrópole paulistana de nossos dias.

Foi o famoso Tibiriçá, sogro do misterioso e discutido João Ramalho, e aliado de Martim Afonso de Souza, cujos nomes tomara ao ser batizado pelos jesuítas. O genro, no entanto, foi acérrimo inimigo destes, sobretudo devido à questão da escravização dos índios, índios que os padres cristãmente defendiam.

Graças à proteção de Tibiriçá, ao calor de seu prestígio pessoal no meio da indiada, se produziram as primeiras mestiçagens, nasceram os primeiros rebentos daquela destemida raça de mamelucos paulistas que haveria de unir por suas impávidas bandeiras os mais afastados rincões de nosso imenso país.

O nome indígena Tibiriçá significa príncipe da Terra. É quase um título honorífico. Esse chefe dos guaianás de Piratininga se deixara converter à fé cristã pelos padres José de Anchieta e Leonardo Nunes.

Graças a Tibiriçá, puderam os padres da companhia de Jesus permanecer no planalto piratininguense e fundar ali seu primeiro povoado missioneiro, Santo André da Borda do Campo. Enviados, pra esse fim, de São Vicente por padre Manuel da Nóbrega, escalaram, vencendo mil dificuldades, a serra de Cubatão e atingiram o platô treze sacerdotes chefiados por Manuel de Paiva. No grupo, figurava como mestre-escola o grande José de Anchieta. Na defesa de nossa missão jesuítica, Tibiriçá combateu em 1562 até contra seu próprio irmão, o tuxaua Arari.

O grande historiador Southey pintou admiravelmente, em poucas palavras, como viviam esses heróicos civilizadores do gentio: Dormiam em rede e nem tinham roupa de cama: De porta lhes servia uma esteira pendurada à entrada. As roupas também foram calculadas à região menos vizinha do céu, pois eram de algodão as poucas que tinham, e andavam sem calça nem sandália. Mesa lhes eram folhas de bananeira...

Nessa grande pobreza, diz o próprio Anchieta que se podiam dispensar os guardanapos, visto como nada havia que comer. De fato, se alimentavam apenas do que lhes davam os índios, o que não podia ser muito nem escolhido. As vezes, de esmola, recebiam alguma cuia de farinha de mandioca. Noutras, mais raras, algum peixe de córrego ou alguma caça da selva. E as frutas do mato.

A subida da serra do Cubatão, donde se avistava o mar, a Paranapiacaba dos tupis, fora verdadeira epopéia, segundo nos conta o historiador da companhia, padre Simão de Vasconcelos. Tinham escalado a pé, rompendo a mataria, íngremes perambeiras, se pendurando de raízes e cipós, as mãos e os pés escalavrados, em sangue, o corpo e o rosto banhados pelos espinhos, se arriscando a encontro de feras e sobretudo de cobras venenosas. Ad majorem Dei gloriam! Venceram tudo isso pra maior glória de Deus. E dessas misérias e lutas brotariam, no futuro, a grandeza e a fortuna de São Paulo.

Testemunha e personagem das principais, nessa época de fé e elevação moral, o morubixaba Tibiriçá foi, na verdade, o laço que unia, no mesmo instintivo desejo de progresso, no mesmo informe anseio de futuro, o índio bravio e o aventureiro civilizado, sob os braços acolhedores, pacificadores e luminosos da Cruz.

Esses primitivos tempos da gloriosa Paulicéia são recordados em nossos tumultuosos dias por uma relíquia preciosíssima: O tacape de guerra do chefe indígena Martim Afonso Tibiriçá, ivirapeme de madeira duríssima, o pau-ferro, talhada conicamente em forma de moca ou maça, bastante pesada, porém fácil de manejar por um homem adestrado e robusto. Lhe levou o tempo o trançado de palha do punho, que evitava escorregasse da mão que a brandia. Lhe levou, também, os ornatos de penas multicores. Todavia, embora nua e negra, essa arma de choque evoca, em nosso espírito, a rude época em que zunia em golpes terríveis, rompendo ossos e crânios de inimigos, nas bárbaras refregas da indiada.

A autenticidade dessa peça requer uma documentação comprobatória. O tacape de Tibiriçá pertenceu, durante longo tempo, ao imperador dom Pedro II. Sua majestade o ofereceu, quando visitou São Paulo, ao grande estudioso de nossos selvagens, general Couto de Magalhães. Nenhum presente agradaria mais ao notável indianista, um dos fundadores de nosso folclore. Das mãos dos descendentes daquele general passou, em São Paulo, às de doutor João Vieira da Costa Valente.

Durante muito tempo teve o tacape colado a sua face um retângulo de papel com a declaração autografada de Couto de Magalhães o haver recebido de dom Pedro II, que lhe afirmara ser o mesmo do grande Tibiriçá. O tempo infelizmente destruiu essa etiqueta. Há, porém, declarações escritas e autenticadas de pessoa da família sobre o assunto.

Martim Afonso Tibiriçá faleceu em São Paulo, cercado de seus inúmeros descendentes e do respeito geral, em 25 de dezembro do ano da graça de 1562. Escrevendo ao reino em 10 de abril do ano seguinte, 1563, dizia Anchieta com saudade: Morreu nosso principal, grande amigo e protetor. Então, João Ramalho, livre da influência do sogro, pôde guerrear à vontade aos padres da companhia.


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Fonte: "Segredos e revelações da história do Brasil", Gustavo Barroso - Edições O Cruzeiro - 2ª edição - Agosto de 1961.

O padrão de São Vicente

Marco padrão, construído em 1932
sobre a pequena ilha Pedra do Mato
Esse padrão (foto) encimado pela cruz templária da ordem de Cristo, esguio e solitário, de pedra amorenada pelo sol e alisada pelo vento, se projetando ao céu e refletido na água assinala o terceiro passo da civilização luso-cristã em terra brasileira. O primeiro marco foi levantado por Pedro Álvares Cabral na areia de Porto Seguro. Cristóvão Jaques ergueu o segundo em Itamaracá. Martim Afonso de Souza cravou o terceiro perto dum ilhéu rochoso e agreste do litoral paulista.

O segundo foi semente de Olinda–Recife–Pernambuco. Foi o terceiro semente de Piratininga–São Paulo, a marcha ao sul e ao oeste, o recuo do meridiano, em 1494 firmado teoricamente pela convenção de Tordesilhas. E, entre esses pontos extremos a que então chegaram os lusos, batendo a imensa costa, Tomé de Souza alicerçaria, mais tarde, os muros de taipa da cidade de Salvador, primeira cabeça do estado do Brasil.

Do ciclo das navegações costeiras, entre 1501 e 1530, do qual participaram os portugueses, muitos franceses e alguns espanhóis, resultaram, esparsos no litoral, desterrados, desertores e náufragos, que se uniram às índias. Era o povoamento por mestiçagem que começava. Ao transpor a frota de Martim Afonso de Souza a barra de São Vicente e ao fundear entre suas pequenas ilhas, a indiada se aglomerou nas praias.

Desembarcou o capitão-mor no porto chamado de Tumiaru e ali encontrou, vivendo entre os selvagens, com mulher e filhos, o português Antônio Rodrigues, companheiro de João Ramalho, que galgara a serra do Mar e, casando com a filha do chefe Tibiriçá, povoara, na planície de Piratininga, a aldeia de Inhapuambuçu, depois Santo André da Borda do Campo. Em Itararé, curta praia existente entre a ilha do Sol, crismada agora em Porchat, e a ponta do morro de Santo Antônio, antigo Tumiaru, se lançou o fundamento da primeira vila de São Vicente, a primeira também do Brasil, com o apoio dos morubixabas guaianás do planalto: Tibiriçá e Caiubi.

Os índios litorâneos chefiados por Piquerobi, apesar da filha deste ser mulher de Antônio Rodrigues, preferiram se retirar ao sertão a se aliarem aos portugueses. Doze anos após a fundação, em 1544, o mar, avançando sobre a terra, a inundou e submergiu a sempre a Vila de Martim Afonso de Souza, que renasceu em 1555 ao redor da Igreja de Nossa Senhora da Assunção, que se salvara, ao pé do morro de Santo Antônio, local onde perdura.

A expedição de Martim Afonso de Souza, que encerrou o ciclo da exploração costeira em nossa história, foi a maior tentativa até aquela data realizada pelo governo de Portugal pra resolver o problema da colonização do vastíssimo país encontrado pela armada cabralina, nele fundando um império que se baseasse em mais sólidas riquezas do que a extração do pau-brasil, apropriada tão-somente a monopólios comerciais sem espírito civilizador ou à aventura mercantil de interlopes isolados. Seu plano incluía uma amplitude que faltou à ação de seus predecessores, simples exploradores da linha costeira ou guardas costeiros contra os franceses.

Martim Afonso de Souza partiu de Lisboa no dia 3 de dezembro de 1530, trazendo em seus quatro navios, a este lado do Atlântico, os elementos básicos, humanos e materiais duma civilização rudimentar: Homens de arma, de saber e de arte mecânica, utensílios, ferramentas e sementes. Compunham essa armada matriarca, que conduzia o embrião social do Brasil, como escreveu a propósito Carlos Malheiro Dias, a nau São Miguel, o galeão São Vicente, as caravelas Princesa e Rosa, sob o comando de experimentados capitães: Heitor de Souza, Pero Lobo Pinheiro, Baltasar Gonçalves e Diogo Leite. E ao capitão-mor, mandado a colonizar tão longínquas regiões, dera o rei, por antecipação, o título de governador. Foi, assim, o fundador de São Vicente o primeiro governador do Brasil.

A armada transpôs a água das Canárias, costeou a África e, na altura do arquipélago de Cabo Verde, investiu o oceano, rompendo destemidamente os temporais, até avistar, no último dia de janeiro seguinte, a terra do Brasil, ao longo de cujo litoral deu caça aos navios franceses: Diogo Leite se apoderou duma nau nesse mesmo dia, abarrotada de brasil. Ao sul do cabo de Santo Agostinho tomou a esquadra outra carregada de brasil. Dias depois conquistou uma terceira, de abordagem, no fim de 36 horas de fogo de artilharia.

Em 17 de fevereiro de 1531 refrescou a frota em Pernambuco. Havia dois meses que a nau francesa La Pelérine saqueara e destruíra a feitoria de Itamaracá. Dali, Diogo Leite, com as caravelas, seguiu ao Norte, a descobrir o rio Maranham. João de Souza regressou ao reino com notícias e pau-brasil, numa das suas naus tomadas dos franceses. A outra, crismada em Nossa Senhora das Candeias, se incorporou à frota sob o comando do irmão do capitão-mor governador, Pero Lopes de Souza, cujo Diário de navegação é a crônica viva da epopéia.

Na baía de Todos os Santos, em março de 1531, Martim Afonso de Souza encontrou o patriarca da miscigenação luso-tupi, Diogo Álvares, o Caramuru, que ali se encontrava desde 1519. Já a gente da terra era toda alva, diz Pero Lopes, os homens muito bem dispostos e as mulheres muito formosas. Ali ficaram dois homens com sementes pra fazerem experiência do que a terra dava. E ainda os cativos duma caravela, que arribava de Sofala e fora agregada à frota. Porventura os primeiros negros que tomaram pé no Brasil.

Meses demorou a expedição no remanso da Guanabara, onde consertou os navios e construiu dois bergantins destinados à conquista do Rio da Prata, fim último a que se destinava. Tempo foi suficiente pra quatro homens, mandados pelo capitão-mor governador, penetrarem as terras e voltarem com notícia e um chefe de tribo que recebeu muitos presentes. A primeira bandeira que explorou o interior. E prosseguiu a viagem ao sul. Em Cananéia, estavam esperando os navegadores dois dos primeiros povoadores da costa: Francisco Chaves e um bacharel degredado.

À indiada, que ocorria, alvoroçada, à praia, falou, em sua própria língua, o abanheenga,10 o piloto Pedro Ames. No lagamar de Santos, balizado no fundo pela muralha azul-verde de Paranapiacaba, por a todos parecer tão bem a terra, o capitão determinou a povoar, dando a todos os homens terra pra fazer fazenda. E dali seguiram ao sertão ignoto, cuja largura se desconhecia, buscando o império dos Incas, donde manavam a prata e o ouro, os oitenta besteiros e arcabuzeiros da grande bandeira organizada por Martim Afonso de Souza e comandada por Pero Lobo e Francisco de Chaves, que os carijó chacinaram na margem do Iguaçu.

De Pernambuco Martim Afonso de Souza enviara duas caravelas ao norte. Em março de 1531 entravam na baía de São José, em abril na de São Marcos e em junho na de São João. Atingiram, afinal, a foz do rio Gurupi, que se chamou Abra de Diogo Leite, segundo consta do mapa de Gaspar Viegas, de 1534. Ao sul foi mandado, de Santos, Pero Lopes de Souza ao rio da Prata, que devia explorar e colonizar. Lhe foram, porém, os fados adversos. Na altura do arroio Chuí, predestinado a definitivo limite entre a América portuguesa e a espanhola no rumo meridional, o mar em fúria fez naufragarem a nau-capitânia e um dos bergantins, se perdendo sete homens, arma, mantimento, utensílio, tudo o que se destinava à obra colonizadora. Reunindo o conselho dos capitães e pilotos, se decidiu, na dura contingência, renunciar àquela empresa, se encarregando Pero Lopes com o bergantim restante e 30 homens de erguer no estuário platino os padrões de posse da coroa portuguesa. A caravela de Sofala, Santa Maria do Cabo, recolheu os náufragos na costa sulina e ainda trouxe a São Vicente outros náufragos, esses espanhóis, em número de 15, relíquias da expedição malograda de Juan Días de Solis ao rio da Prata, que se encontravam no porto de Patos, em Santa Catarina.

Em data incerta do primeiro semestre de 1533 Martim Afonso de Souza partiu de São Vicente, ali ficando, como seu lugar-tenente no cargo de capitão-mor e governador da capitania, Gonçalo Monteiro. Deixava no Brasil os primeiros materiais duma civilização: A igreja, o município, o estaleiro, o tombo das sesmarias, o pelourinho, emblema da justiça. Enquanto não partiu à Índia, o donatário se ocupou da longínqua capitania brasileira, cuja doação o bei lhe comunicara em carta trazida por João de Souza a São Vicente. Até lá expediu colonos, animais domésticos e sementes, contratando agricultores e mecânicos habilitados na cultura e fabricação do açúcar.

No regresso de São Vicente a Portugal, Pero Lopes de Souza retomou dos franceses o forte de Itamaracá e os mandou executar como exemplo, pra castigo de sua felonia.

Martim Afonso de Souza, primeiro colonizador e primeiro donatário do Brasil, primeiro capitão-mor governador, recebeu do rei dom João III os títulos pomposos de governador da Índia e capitão-mor dos Mares do Oriente. Com eles, à testa duma armada de 5 navios, partiu do Tejo em 12 de março de 1534. Arribou à Bahia e os franciscanos que levava a bordo ali batizaram os filhos legítimos e os naturais de Diogo Álvares, Caramuru, o patriarca que, usando duma poligamia bíblica, começava com outros do mesmo feitio a povoar estes Brasis. E essa obra povoadora continuava com a casamento de duas de suas filhas bastardas, uma com Afonso Rodrigues, natural de Óbidos, outra com o fidalgo genovês Paulo Dias Adorno, aventureiros fugidos de São Vicente, onde cometeram um crime. Assim, começou o Brasil a nascer.

E é tudo isso o que recorda o fuste de pedra do blasonado padrão que aponta o céu e se contempla no mar...
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Fonte: "Segredos e revelações da história do Brasil", Gustavo Barroso - Edições O Cruzeiro - 2ª edição - Agosto de 1961.

O cachorrinho de dois corações

Quem informa é o Departamento de Clínica Operatória e Cirurgia Experimental: operaram cinco cachorrinhos do tipo street dog e todos eles, numa experiência coroada de êxito, passaram a viver com dois corações. A operação feita pelos soviéticos, com tanta celeuma, acaba de ser feita aqui no Rio também e quatro cachorrinhos — um deles morreu — vivem perfeitamente com oito corações. Perfeitamente? — há de estar Deus perguntando. Perfeitamente, não.

Um dos cachorrinhos com dois corações fugiu do canil e trota solto pelas ruas do Rio, pulsando seus dois corações e isto não é bom para ele. Tivemos uma doce amada de dois corações e era de ver a angústia em que vivia, por não saber conservar aquilo que é a coisa mais linda numa mulher: o sentimento da fidelidade.

Aos cachorrinhos foi dado merecidamente o título de maior amigo do Homem, justamente por causa da sua impressionante fidelidade ao dono. Muito antes de se inventar a "alta-fidelidade", já a marca registrada da maior fábrica de discos e vitrolas do mundo tinha por símbolo um cachorrinho fiel, que se mantinha firme ao lado do fonógrafo, ouvindo a voz do dono com o deslumbramento de todos os cachorrinhos.

A fidelidade do cão é muito anterior à alta-fidelidade das vitrolas. O mundo inteiro sabe disso. Tanto que o disco, aqui, é "A Voz do Dono", na Inglaterra é "His Master's Voice", na França é "La Voix de Son Maitre", na Itália é "La Você dei Patrono".

Todo mundo sabe que o cão é a fidelidade em pessoa e dá tão comovedoramente seu coração que enternece a todos, com sua dedicação.

Mas... e o pobre cachorrinho que fugiu do Departamento "de Cirurgia Experimental? Como vai

poder viver fiel, como poderá viver cão como todos os cães, se carrega no peito dois corações? Não, o cachorrinho não é como as amadas infiéis, que muitos perdoam por serem como são.

Pobre cachorrinho de dois corações, se encontrar um dono e a ele se prender, por ser este o seu fanal de cão...

Pobre cachorrinho, porque terá um coração de sobra e há de dedicá-lo a alguém. E, se assim for, que entregue seus dois corações a um só homem, a um só dono, para provar ao mundo que os cães, mesmo com um coração sobrando, são muito mais dados à fidelidade do que as vitrolas, do que as mulheres, do que nós todos.

Ó pobre cachorrinho de dois corações, que você não fique indeciso entre dois postes.

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Fonte: Tia Zulmira e Eu  - Stanislaw Ponte Preta - 6.ª edição - Ilustrado por Jaguar - EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.