quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Um caso perdido

A princípio, a família foi contra:

— Esse sujeito não presta! É um bestalhão! Um conversa-fiada!

Talvez fosse isso e muito mais. Para começar não trabalha­va, nem queria nada com o trabalho. Além disso, bebia, jogava, vivia metido com desclassificados de ambos os sexos, em pago­des espetaculares.

Apontava-se, mesmo, uma fulana, de péssimos antecedentes, que, segundo se dizia, o sustentava. Os parentes de Edgardina tentaram dissuadi-la da paixão inconveniente e es­candalosa:

— Homem é o que não falta. Escolhe outro, escolhe um que valha a pena.

— É de Humberto que eu gosto. Os outros não me inte­ressam.

Amava-o desde menina; e, através dos anos, não achara gra­ça em mais ninguém. Podiam dizer o diabo do rapaz que ela mesma explicava: “Entra por um ouvido, sai pelo outro”. A ri­gor, só ficou impressionada uma vez, uma única vez. Foi quan­do lhe disseram que o namorado vivia às custas da tal fulana. Edgardina saltou: “Mentira! Calúnia!”. Mas, apesar da reação ini­cial, muito veemente, a dúvida ficou. Acabou fazendo ao bem-amado uma pergunta frontal:

— Que negócio é esse que me contaram?

— Que foi?

Ela, sem tirar os olhos dele, disse:

— Que você toma dinheiro de mulher.

A CONFISSÃO

Imprensado pela pequena que, na verdade, era seu primei­ro e grande amor, Humberto teve, diante de si, dois caminhos: ou negar ferozmente ou… Ia negar, em pânico. Mas quando abriu a boca, deu uma coisa nele, uma espécie de heroísmo súbito, quase histérico. De olhos esbugalhados, os beiços trêmulos, transpassou a pequena com a revelação:

— É verdade, sim. Tomo dinheiro de mulher. Sempre tomei.

A menina cobriu-se de uma palidez mortal, como nos ve­lhos romances. Mal pôde suspirar:

— Humberto!

Foi uma cena magnífica e atroz. Ele, que pegara embala­gem, foi até o fim, contou tudo, sem omitir nada. Disse que, sem emprego, sem níquel, aceitava dinheiro de uma, de ou­tra. Batia nos peitos, atirava patadas no assoalho. Por fim, flagelou-se, cruelmente, aos olhos da pequena; chamou-se de “canalha”, “patife”, “caso perdido”. E terminou, num desa­fio frenético:

— Você sabe tudo. E agora pode me cuspir na cara. Cospe! Anda, cospe!

Ofereceu o rosto. E como Edgardina, petrificada, não dis­sesse uma palavra, não esboçasse um gesto, ele caiu em uma crise medonha de choro. Então, a menina, que era um anjo au­têntico, teve uma dessas comoções que não se esquecem, uma dessas piedades incoercíveis. E, se já o amava antes, agora mui­to mais. Aos seus olhos, a confissão do bem-amado o purificara de tudo e de todos. Disse mais:

— Não interessa o que você fez, meu filho. Eu gosto de vo­cê, pronto, acabou-se.

E ele:

— Você é um anjo. Se não fosse você, eu metia uma bala na cabeça, já, imediatamente!

Então, mais calmos, os dois combinaram tudo: data do ca­samento etc. etc. No fim, Edgardina impôs apenas uma condição:

— Você vai me prometer uma coisa.

— O quê?

— Que nunca mais aceita dinheiro de mulher. É tão feio!

— Te juro! Te dou minha palavra de honra!

O CASAMENTO

E, de fato, a partir da confissão, Humberto foi outro ho­mem. Deixou de beber, de jogar e quando entrava num café e vinha o garçom, ele, erguendo o rosto numa espécie de desa­fio às potências do álcool, dizia:

— Água mineral!

E fez mais: devolveu à tal fulana que o sustentara um reló­gio, um anel com suas iniciais, um cinto com fivela de prata, um porta-chaves caríssimo. Rompeu, em termos definitivos, com todas as suas antigas ligações. Os amigos tentavam seduzi-lo:

— Deixa de ser besta!

Mas ele, embora com água na boca, tinha um repelão fu­rioso: “Esse negócio, para mim, acabou. Estou noivo, vou me casar, stop”. Foi uma mudança tão patética que o próprio futu­ro sogro, que era um espírito de porco, se deixou impressio­nar: “Parece que meu genro tomou vergonha”. E o resto da fa­mília em coro:

— Tomara! Tomara!

Dois dias antes do casamento, Humberto ia chegando em casa quando deu de cara com a fulana que o sustentara. A alma caiu-lhe aos pés. Em pânico, olhou para todos os lados: “Imagi­ne, se vissem”. Arrastou-a para um canto discreto; e, lá, discuti­ram, em voz baixa. A mulher fez uma súplica desesperada, que o horrorizou. Insistiu, cravando as unhas nas mãos do rapaz:

— Só essa vez! Só essa vez!

— Você está maluca? Não pode ser! Vou me casar amanhã!

A outra agarrava-se a ele:

— É a despedida, Humberto! — E teimava no argumento: — “Pela última vez!”.

Na verdade, o que a tentava, naquele momento, era o noi­vo alheio, o noivo da outra, na antevéspera do casamento. E ele, que era um fraco diante da mulher em geral, mesmo das feias, mesmo das sem graça, quase sucumbiu àquele assalto no­turno. Lembrou-se, porém, de Edgardina e, fazendo das tripas coração, desprendeu-se histericamente, arremessou-se para den­tro de casa.

Ofegante, descabelado, fechou as portas atrás de si, arriou as trancas. Já então a fulana, do lado de fora, uivava:

— Te dei muito dinheiro, cachorro! Olha, não me troco pela lambisgóia da tua noiva!

Caras espavoridas apareciam em várias janelas. No dia se­guinte, Humberto contou tudinho à noiva. Descobrira que era negócio dizer a verdade e, mesmo, exagerar a verdade. A noi­va, maravilhada com esta sinceridade, deu-lhe um beijo na testa.

O DESTINO

O rapaz não tinha emprego. Mas o sogro foi de uma magnanimidade impressionante. Chamou-o:

— O negócio é o seguinte: para mim, tanto faz que meu genro trabalhe ou deixe de trabalhar. Contanto que trate bem a minha filha.

Dito e feito. Casaram-se e nunca faltou nada naquela casa. Todos os dias, de manhã, Edgardina, da maneira mais delicada e sutil possível, enfiava no bolso da calça do marido uma cédu­la, ora de vinte, ora de cinqüenta, ora de cem mil-réis.

Justiça se faça a Humberto: aceitava a situação com esplên­dida naturalidade. Lá fora, nas esquinas, nos cafés e nas residên­cias, dizia-se o diabo do rapaz. Era chamado de “palhaço”, de “sem-vergonha”, de “sujo”. Edgardina soube; solidarizou-se com o marido:

— Não liga, meu filho. O que eles têm é inveja.

Feliz, realizada, contava para os amigos: — “Bebeto é da seguinte teoria: — entre homem e mulher, não há perversão. Vale tudo!”.

A pequena estava, então, no quinto mês de gravidez. Não deixava o marido fazer nada: ela pagava as contas, dirigia a ca­sa. Dir-se-ia o homem ali dentro. Humberto não queria saber de nada, não assumia responsabilidade alguma, no horror de qualquer iniciativa. Dizia sempre:

— Isso é com minha mulher. Não tenho nada com isso.

Queria sossego. E quando o sogro, com a autoridade de quem corre com as despesas, exigiu um neto, Humberto relu­tou. Teve medo do parto, do filho; confidenciou com a mulher: “As crianças são muito levadas. Dão um trabalho danado”. Mas o sogro fez pé firme; queria um neto de qualquer maneira. In­capaz de resistências prolongadas, Humberto aquiesceu, afinal. E quando o velho soube que Edgardina ia ter neném, meteu a mão no bolso, tirou uma cédula de quinhentos e mandou a fi­lha dar ao genro.

O fato é que a perspectiva do filho tirou o sossego do ra­paz. Vivia atribulado com as possíveis doenças que o guri pudesse ter. Gemia: “Imagine se ele apanha uma coqueluche braba”. Enfim, passaram-se os meses e chegou o grande dia. Apa­vorado, Humberto viu a mulher pôr a boca no mundo: “Uai!”. O sogro berrou: “Vai buscar a parteira, que é pra já!”. Ele ar­remessou-se pelas escadas abaixo, à procura da profissional que morava duas quadras adiante. E não voltou, nunca mais.

ANOS DEPOIS

O parto foi feito de qualquer maneira. Uma vizinha improvisou-se em parteira, enquanto a outra, a autêntica, não aparecia. E a criança nasceu perfeitíssima. Então começaram a procurar o pai.

Foram à polícia, ao hospital, ao necrotério. Nada. A hipótese de fuga ou suicídio era absurda. Humberto vivera, em casa, como um paxá. Um mês depois, já não havia mais dúvida: estava morto. Não se sabia onde, mas era óbvio. E então, a viúva, no seu luto fechado, começou a fazer questão do cadáver. Exigia, em brados medonhos:

— Quero o corpo! Quero o corpo!

Havia um rio próximo. Supôs-se que o rapaz se tivesse afo­gado. E, no mínimo, as águas o levaram para outras e longín­quas terras. Edgardina teve que se conformar; mas ficou, na sua alma, o ressentimento de viúva espoliada no seu defunto. Imersa numa fúria petrificada, dizia: “Eu não enterrei meu marido”.

E os anos, sem que ela percebesse, foram passando, um a um. Edgardina sempre de preto; e feliz, envaidecida, porque a dor não arrefecia no seu coração. Doze anos depois, consen­tiu, enfim, em ir, pela primeira vez, a um circo, que estava de passagem.

Foram os dois: ela, de luto, e o filho, com doze anos, vesti­do à marinheira. Assistiam à função quando, de repente, a bate­ria da charanga cria a ilusão do perigo, do abismo. É um núme­ro mundial de equilibrismo. Um benemérito surge no arame, de sombrinha aberta. Edgardina crispa-se na cadeira. Não é pos­sível, não pode ser… Sopra, afinal, ao ouvido do filho:

— Teu pai… Teu pai…

Rompe, no circo, o grito da criança:

— Papai! Papai!

O equilibrista estaca; olha, apavorado. Larga a sombrinha, larga tudo, desaba lá de cima. Depois, no hospital, houve cenas delirantes. Humberto estava de perna engessada e suspensa. Quis saber se o filho já tivera coqueluche. Quando informaram que sim, gemeu:

— Ótimo… Ótimo…

Fizeram espetacularmente as pazes.

Mas nunca se soube por que desaparecera, naquela noite, doze anos atrás.

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Nelson Rodrigues. A vida como ela é… São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

A coroa de orquídeas

Quando a mulher entrou em agonia, ele caiu em crise. Atirou-se em cima da cama, aos soluços. Foi agarrado, arrastado. Debatia-se nos braços dos parentes e vizinhos; esperneava. E houve um momento em que, no seu desvario de quase viúvo, cravou os dentes numa das mãos próximas. A vítima uivou:

— Ui!

Então, na sala, cercado e contido, chorou alto, chorou forte. Seu gemido grosso atravessava o espaço e era ouvido no fim da rua.

Enquanto isso, o amigo mordido, na cozinha, exibia a mão: “Tirou um naco de carne!”. Alguém perguntou baixo, com admiração: “Mas os dentes dele não são postiços?”. Eram. E, em torno, houve um espanto profundo. Ninguém compreendia que um indivíduo que usava na boca uma chapa dupla pudesse morder com tanta ferocidade e resultado. E, súbito, veio espavorido lá de dentro um irmão da moribunda. Pousou a mão no ombro do Juventino. Pigarreia e soluça:

— Morreu.

Várias pessoas espichavam o pescoço para ver as reações. Primeiro, Juventino levantou-se, esbugalhando os olhos. Depois que assimilou o fato, desprendeu-se de vários braços, num repelão. Dava socos no próprio peito e estrebuchava:

— Me dêem um revólver! Quero meter uma bala na cabeça!

DOR AUTÊNTICA

Essa dor agressiva e autêntica arrepiava. E havia, disseminado no ar, o medo de que o infeliz ferrasse os dentes em alguma mão ainda intacta. Durou o paroxismo de dez a quinze minutos. Por fim, a própria exaustão física serviu de sedativo. Gemia baixo. Mas, quando o sogro o convocou para ver a esposa, recuou como diante de uma blasfêmia. Num tremor de maleita, rilhando os dentes, soluçou:

— Não vou! Não quero!

Era a sua antiga e irredutível pusilanimidade diante da morte. Desde criança tinha medo de qualquer defunto, fosse conhecido ou desconhecido, parente próximo ou remoto. A idéia de ver a mulher morta o arrepiava. Defendia-se: “Não!”. E corrigiu: “Agora, não!”. Com o coração disparado, não pôde evitar a seguinte e quase irreverente reflexão: “Por que não pintam os cadáveres?”. Perguntaram:

— O enterro vai sair daqui?

Virou-se:

— Claro!

Um dos vizinhos, o mesmo que fora mordido na mão, vacila e sugere:

— Não será mais negócio capelinha?

— Por quê?

E o outro, alvar:

— É mais prático. Mais cômodo.

Então, o viúvo exaltou-se. Enfiou o dedo na cara do vizinho:

— Considero um desaforo essa mania de capelinha! É uma falta de respeito! Ora veja!

SAUDADE

Um vizinho e um cunhado partiram, de táxi, para tratar do atestado de óbito e do enterro. Então, andando de um lado para o outro, numa excitação de possesso, Juventino surpreendeu e confundiu os presentes com uma série de confidências, legítimas umas, extravagantes outras. Na sua euforia retrospectiva, deblaterava:

— Nunca houve marido tão feliz como eu! Duvido!

Elogiou a mulher de alto a baixo, chamou-a de “anjo dos anjos”, “flor das flores”. E, súbito, diante dos vizinhos atônitos e maravilhados, baixa a voz:

— Era tão séria que namorou um ano comigo, noivou dois e só topou beijo na boca depois do casamento! Quer dizer, mulher batata!

Havia um aspecto de sua vida conjugai que ainda o envaidecia: o recato da mulher. Sempre conservaria, perante o marido, um mínimo de cerimônia. Cutucou o vizinho e segredou: “Teve pudor de mim até o último momento!”. Pausa, arqueja e conclui:

— Nunca tomou injeção que não fosse no braço!

Parecia evidente que esse pudor frenético o deleitava, ainda agora. Numa brusca cólera, desafiou os circunstantes:

— Isso é que era mulher no duro, cem por cento! O resto é conversa fiada!

CÂMARA-ARDENTE

As providências de ordem prática estavam sendo tomadas. Uma hora depois ou pouco mais, apareceram os funcionários da empresa funerária. Armara-se a câmara-ardente na sala de visitas. Em dado momento, o viúvo teve de levantar-se para atender o telefone. Era o cunhado. Estava na casa de flores e desejava fazer uma consulta até certo ponto delicada. Perguntou:

— Tua coroa pode ser de orquídeas?

Admirou-se no telefone:

— Pode. Por que não?

Pigarreia o cunhado:

— Mas é puxado!

— Quanto?

O outro disse uma quantia. Juventino esbravejou:

— Ladrões!

Vacila. Lembra-se de que a doença da mulher já lhe custara uma fortuna; contraíra dívidas, tinha na farmácia uma conta estratosférica. Acabou optando por outra solução:

— Vamos fazer o seguinte; orquídea é uma flor besta, sofisticada. Arranja uma coroa mais em conta.

Do outro lado da linha, veio a pergunta: “Qual é a dedicatória?”. Hesita novamente. Decide-se:

— Põe assim: “À Ismênia, saudade eterna do teu Juventino”.

ÀS COROAS

Do telefone, veio para a sala. Até então, fiel à própria covardia, não fora espiar o rosto da mulher no caixão. E o pior é que seu medo estava mesclado de curiosidade. Costumava dizer, numa frase rebuscadíssima, que o verdadeiro rosto da mulher aparece só no amor ou na morte. Mas o diabo era o seu preconceito contra a morte. Acendendo um cigarro, pensava: “Os defuntos são muito feios!”. Por outro lado, ocorria-lhe que, com ou sem pusilanimidade, teria de beijar a esposa antes de sair o enterro. Na sua meditação de viúvo, cogitou de uma solução que lhe parecia praticável, qual seja: a de beijar sem ver, isto é, beijar fechando os olhos.

Mais uns quarenta minutos e começam a chegar as coroas. Uma das primeiras foi a sua. Correu, sôfrego; leu a legenda fúnebre, em letras douradas. As orquídeas tinham sido substituídas pelas dálias. E Juventino, recuando dois passos, considerava o efeito. Não pôde furtar-se a um sentimento de satisfação. Disse de si para si: “Bacana!”. À medida que iam chegando mais flores, ele se convencia de que a sua coroa não fazia feio no meio das outras. Pelo contrário. Se não fosse a melhor, podia figurar entre as melhores.

SURPRESA

Às onze horas, a casa estava apinhada. Tinha vindo gente até de Vigário Geral. O inconsolável viúvo era abraçado por uma série de parentes, inclusive alguns que ele julgava mortos e enterrados. Às onze e meia, Juventino passa por uma nova crise. E uma coisa o atribulava de maneira particular e dolorosíssima: a doença da mulher. Aos soluços, interpelava os presentes:

— Como é possível morrer de pneumonia? Se fosse câncer, vá lá. Mas pneumonia! — Virou-se para um vizinho; estrebucha: — Sabe que eu estou desconfiado que penicilina é um conto-do-vigário?

Neste momento, todos os olhos se voltaram para a direção da porta. Acabava de entrar uma coroa. Era, porém, uma coisa realmente insólita e gigantesca. Dir-se-ia uma coroa de chefe de Estado, de rainha ou, no mínimo, de ministro. Toda feita de orquídeas, ofuscou automaticamente as demais. Atônito, Juventino balbuciou: “Parei!”. Trôpego, a boca torcida e já distraído da própria dor, veio rompendo os grupos, no seu espanto e na sua curiosidade. E, com a mão trêmula, desenrolou a fita. Soletrou, a meia voz, para si mesmo: “À inesquecível Ismênia, com todo o amor, de Otávio”.

Antes de mais nada, aquele “inesquecível” foi nele uma espécie de punhalada material. Ocorria-lhe uma reminiscência cinematográfica: Rebecca, a mulher inesquecível. Virou-se para os presentes, que pareciam também impressionadíssimos. Perguntava de um para outro:

— Otávio? Quem é Otávio? Vocês conhecem algum Otávio?

Não, ninguém conhecia. Mas ele corria, um por um, todos os parentes: “Mas como é possível? Que negócio é esse?”.

DRAMA

A obsessão passou a dominá-lo: voltou para perto da coroa e leu, releu a legenda. Apertava a cabeça entre as mãos: “Todo amor por quê?”. Concentrou-se. Procurava descobrir, no fundo da memória, alguém que tivesse este nome, E uma coisa o enfurecia: aquela coroa espetacular, tão mais bonita e até mais cara que as outras. Fazia seus cálculos, em voz alta:

— O cara que mandou isto gastou os tubos. E por quê, meu Deus, por quê?

Houve um momento em que o próprio Juventino se julgou também um milionário, mas da loucura. Meteu-se num canto; já não falava mais com ninguém, feroz e incomunicável. Quase ao amanhecer, alguém veio oferecer um cafezinho. Saltou: “Vai-te para o diabo que te carregue!”.

Passam-se os minutos, as horas. Todos os que chegam pasmam para a fabulosa coroa. Finalmente, na hora de fechar o caixão, a própria sogra, soluçando, vem chamar o genro: “Você não vai beijar fulana?”. Ergueu-se. Antes, foi ao escritório apanhar não sei o quê. Atravessou por entre os parentes e vizinhos. Estava diante do caixão. E, súbito, mete a mão no bolso e… Só viram quando ergueu um punhal e o afundou na defunta, aos berros de:

— Cínica! Cínica!

A lâmina penetrou por entre as duas costelas. E a morta parecia rir.

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Nelson Rodrigues. A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é… São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 9-14.