sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Anita Ekberg

Anita Ekberg (Kerstin Anita Marianne Ekberg), atriz, modelo e miss, nasceu em Malmö, Suécia, em 29 de setembro de 1931. Cultuada "sex symbol" dos anos 60 após sua aparição no filme "A Doce Vida", obra-prima de Federico Fellini.

Ekberg era modelo para revistas de moda na adolescência e, em 1950, com o incentivo da mãe, participou e venceu o concurso de Miss Malmö, sendo depois eleita Miss Suécia de 1951. Foi então para os EUA representar o país no Miss Universo, em Long Beach (foto abaixo: Zarak, 1956).

Apesar de não vencer o concurso, ficou entre as finalistas, o que lhe deu um contrato como starlet do Universal Studios. Conheceu Howard Hughes, milionário produtor de filmes, que a convidou a trabalhar para ele mas queria que ela trocasse de nome e fizesse plástica no nariz e nos dentes. Howard dizia que 'Ekberg', nome sueco, era difícil de pronunciar para o americano comum. Ela entretanto recusou-se a mudar de nome, dizendo que se ficasse famosa, iam aprender a pronunciá-lo e caso não ficasse, o nome não teria qualquer importância. Contratada no estúdio, passou a receber aulas de interpretação, dança, locução, hipismo e esgrima.

A combinação da beleza física e a agitada vida particular e social de Anita logo a transformaram numa pin-up e em presença constante nas páginas de revistas mundanas e masculinas da mídia norte-americana, o que a tornou uma das maiores pin-ups dos anos 50.

Anita ficou famosa nos Estados Unidos após uma turnê feita com o comediante Bob Hope, em que substituiu Marilyn Monroe, doente, transmitida nacionalmente pela televisão. Na metade da década, ela começou a trabalhar para outros estúdos e foi contratada pela Paramount Pictures para trabalhar com Jerry Lewis e Dean Martin em "Artistas e Modelos" (1955) e "Ou Vai Ou Racha" que lhe deram grande projeção popular. No mesmo ano, ela foi para a Europa filmar com o diretor King Vidor, na versão de "Guerra e Paz", em que fez o segundo papel feminino depois de Audrey Hepburn.

Depois de alguns filmes menores até o fim da década, ela finalmente teve a chance de fazer o filme que a tornaria um ícone, quando foi convidada por Federico Fellini para viver Sylvia, famosa atriz sueco-americana em "A Doce Vida". O filme foi um grande sucesso de público e crítica e sua cena noturna na Fontana di Trevi, banhando-se num vestido de noite negro, tornou-se um dos mais icônicos momentos da história do cinema.´

O sucesso de "A Doce Vita" a levaria a fazer "Boccaccio 70" com Sophia Loren e Romy Schneider e mais dois filmes testemunhais com Fellini em anos seguintes, "I clowns" (1970) e "Intervista" (1987), novamente com Mastroianni, onde representa a si mesma. Nos últimos anos, suas aparições na tela, esporádicas, têm sido apenas em pequenos filmes europeus e na televisão italiana (foto abaixo: com Mastroianni em La Dulce Vita).


Anita teve uma vida amorosa agitada, casando-se duas vezes, a primeira com o ator britânico Anthony Steel (1956-1959) e depois com Rik Van Nutter (1963-1976) mais conhecido pelo papel de Felix Leiter, o contato americano na CIA de James Bond, em "007 contra a Chantagem Atômica" (1965).


Envolvida romanticamente por três anos com o milionário italiano Gianni Agnelli, dono da Fiat e seu grande amor, com quem sempre desejou ter um filho sem conseguir, ela, hoje afastada do cinema, vive há muito anos numa vila ao sul de Roma, tendo voltado poucas vezes à sua Suécia natal.

Filmes

Nain rouge, Le (1998)
Bámbola (1996)
Signora della città, La (1996)
Ambrogio (1992)
Cattive ragazze (1992)
Conte Max, Il (1991)
Intervista (1987)
Dolce pelle di Angela (1986)
Cicciabomba (1982)
S+H+E: Security Hazards Expert (1980)
Gold of the Amazon Women (1979)
Suor Omicidi (1978)
Anno Schmidt (1974)
Casa d'appuntamento (1972)
Northeast of Seoul (1972) .... Katherine
Lunga cavalcata della vendetta, La (1972)
I clowns - Os Palhaços (TV) (1970)
Debito coniugale, Il (1970)
Divorzio, Il (1970)
Quella chiara notte d'ottobre (1970)
Blonde Köder für den Mörder (1969)
Malenka (1969)
If It's Tuesday, This Must Be Belgium (1969)
Sudario a la medida, Un (1969)
Crónica de un atraco (1968)
Way... Way out - Um Biruta em órbita (1968)
Woman Times Seven (1967)
Cobra, Il (1967)
Scusi, lei è favorevole o contrario? (1967)
Sfinge d'oro, La (1967)
Das Gewisse Etwas der Frauen (1966)
Way... Way Out (1966)
Das Liebeskarussell (1965)
The Alphabet Murders (1965)
Bianco, rosso, giallo, rosa (1964)
4 for Texas (1963)
Call Me Bwana (1963)
Boccacio'70 (1962)
Mongoli, I (1961)
A porte chiuse (1961)
Anonima cocottes (1960)
Tre eccetera del colonnello, Le (1960)
Apocalisse sul fiume giallo (1960)
Dolce vita, La - A doce vida  (1960)
Nel segno di Roma (1959)
The Man Inside (1958)
Screaming Mimi (1958)
Paris Holiday (1958)
Valerie (1957)
Interpol (1957)
Zarak (1956)
Man in the Vault (1956)
Hollywood or Bust - Ou vai ou racha (1956)
Back from Eternity (1956)
War and Peace - Guerra e Paz (1956)
Artists and Models (1955)
Blood Alley (1955)
The Golden Blade (1953)
Abbott and Costello Go to Mars (1953)
The Mississippi Gambler - O aventureiro do Mississipi (1953)

Fontes: Wikipedia; Cinema Clássico.

Os olhos que comiam carne

Na manhã seguinte à do aparecimento, nas livrarias, do oitavo e último volume da História do Conhecimento Humano, obra em que havia gasto catorze anos de uma existência consagrada, inteira, ao estudo e à meditação, o escritor Paulo Fernandes esperava, inutilmente, que o sol lhe penetrasse no quarto.

Estendido, de costas, na sua cama de solteiro, os olhos voltados na direção da janela que deixara entreaberta na véspera para a visita da claridade matutina, ele sentia que a noite se ia prolongando demais.

O aposento permanecia escuro. Lá fora, entretanto, havia rumores de vida. Bondes passavam tilintando. Havia barulho de carroças no calçamento áspero. Automóveis buzinavam como se fosse dia alto.

E, no entanto, era noite, ainda. Atentou melhor, e notou movimento na casa. Distinguia perfeitamente o arrastar de uma vassoura, varrendo o pátio. Imaginou que o vento tivesse fechado a janela, impedindo a entrada do dia. Ergueu, então, o braço e apertou o botão da lâmpada. Mas a escuridão continuou. Evidentemente, o dia não lhe começava bem. Comprimiu o botão da campainha. E esperou.

Ao fim de alguns instantes, batem docemente à porta.

- Entra, Roberto.

O criado empurrou a porta, e entrou.

- Esta lâmpada está queimada, Roberto? - indagou o escritor, ao escutar os passos do empregado no aposento.

- Não, senhor. Está até acesa..

- Acesa? A lâmpada está acesa, Roberto? - exclamou o patrão, sentando-se repentinamente na cama.

- Está, sim, senhor. O doutor não vê que está acesa, por causa da janela que está aberta.

- A janela está aberta, Roberto? - gritou o homem de letras, com o terror estampado na fisionomia.

- Está, sim, senhor. E o sol está até no meio do quarto.

Paulo Fernando mergulhou o rosto nas mãos, e quedou-se imóvel, petrificado pela verdade terrível. Estava cego. Acabava de realizar-se o que há muito prognosticavam os médicos.

A notícia daquele infortúnio em breve se espalhava pela cidade, impressionando e comovendo a quem a recebia. A morte dos olhos daquele homem de quarenta anos, cuja mocidade tinha sido consumida na intimidade de um gabinete de trabalho, e cujos primeiros cabelos brancos haviam nascido à claridade das lâmpadas, diante das quais passara oito mil noites estudando, enchia de pena os mais indiferentes à vida do pensamento. Era uma força criadora que desaparecia. Era uma grande máquina que parava. Era um facho que se extinguia no meio da noite, deixando desorientados na escuridão aqueles que o haviam tomado por guia. E foi quando, de súbito, e como que providencialmente, surgiu na imprensa a informação de que o  professor Platen, de Berlim, havia descoberto o processo de restituir a vista aos cegos, uma vez que a pupila se conservasse íntegra, e se tratasse, apenas, de destruição ou defeito do nervo óptico. E, com essa informação, a de que o eminente oculista passaria em breve pelo Rio de Janeiro, a fim de realizar uma operação desse gênero em um opulento estancieiro argentino, que se achava cego há seis anos e não tergiversara em trocar a metade da sua fortuna pela antiga luz dos seus olhos.

A cegueira de Paulo Fernando, com as suas causas e sintomas, enquadrava-se rigorosamente no processo do professor alemão: dera-se pelo seccionamento do nervo óptico. E era pelo restabelecimento deste, por meio de ligaduras artificiais com uma composição metálica de sua invenção, que o sábio de Berlim realizava o seu milagre cirúrgico. Esforços foram empregados, assim, para que Platen desembarcasse no Rio de Janeiro por ocasião de sua viagem a Buenos Aires.

Três meses depois, efetuava-se, de fato, esse desembarque. Para não perder tempo, achava-se Paulo Fernando, desde a véspera, no Grande Hospital das Clínicas. E encontrava-se já na sala de operações, quando o famoso cirurgião entrou, rodeado de colegas brasileiros, e de dois auxiliares alemães, que o acompanhavam na viagem, e apertou-lhe vivamente a mão.

Paulo Fernando não apresentava, na fisionomia, o menor sinal de emoção. O rosto escanhoado, o cabelo grisalho e ondulado posto para trás, e os olhos abertos, olhando sem ver: olhos castanhos, ligeiramente saídos, pelo hábito de vir beber a sabedoria aqui fora, e com laivos escuros de sangue, como reminiscência das noites de vigília. Vestia pijama de tricoline branca, de gola caída. As mãos de dedos magros e curtos seguravam as duas bordas da cadeira, como se estivesse à beira de um abismo, e temesse tombar na voragem.

Olhos abertos, piscando, Paulo Fernando ouvia, em torno, ordens em alemão, tinir de ferros dentro de uma lata, jorro d'água, e passos pesados ou ligeiros, de desconhecidos. Esses rumores eram, no seu espírito, causa de novas reflexões.

Só agora, depois de cego, verificara a sensibilidade da audição, e as suas relações com a alma, através do cérebro. Os passos de um estranho são inteiramente diversos daqueles de uma pessoa a quem se conhece. Cada criatura humana pisa de um modo. Seria capaz de identificar, agora, pelo passo, todos os seus amigos, como se tivesse vista e lhe pusessem diante dos olhos o retrato de cada um deles. E imaginava como seria curioso organizar para os cegos um álbum auditivo, como os de datiloscopia, quando um dos médicos lhe tocou no ombro, dizendo-lhe amavelmente:

- Está tudo pronto... Vamos para a mesa... Dentro de oito dias estará bom. .

O escritor sorriu, cético. Lido nos filósofos, esperava, indiferente, a cura ou a permanência na treva, não descobrindo nenhuma originalidade no seu castigo e nenhum mérito na sua resignação. Compreendia a inocuidade da esperança e a inutilidade da queixa. Levantou-se, assim, tateando, e, pela mão do médico, subiu na mesa de ferro branco, deitou-se ao longo, deixou que lhe pusessem a máscara para o clorofórmio, sentiu que ia ficando leve, aéreo, imponderável. E nada mais soube nem viu.

O processo Plateu era constituído por uma aplicação da lei de Roentgen, de que resultou o Raio-X, e que punha em contacto, por meio de delicadíssimos fios de "hêmera", liga metálica recentemente descoberta, o nervo seccionado. Completava-o uma espécie de parafina adaptada ao globo ocular, a qual, posta em contacto direto com a luz, restabelecida integralmente a função desse órgão. Cientificamente, era mais um mistério do que um fato. A verdade, era que as publicações européias faziam, levianamente ou não, referências constantes às curas miraculosas realizadas pelo cirurgião de Berlim, e que seu nome, em breve, corria o mundo, como o de um dos grandes benfeitores da Humanidade.

Meia hora depois as portas da sala de cirurgia do Grande Hospital de Clínicas se reabriam e Paulo Fernando, ainda inerte, voltava, em uma carreta de rodas silenciosas, ao seu quarto de pensionista. As mãos brancas, postas ao longo do corpo, eram como as de um morto. O rosto e a cabeça envoltos em gaze, deixavam à mostra apenas o nariz afilado e a boca entreaberta. E não tinha decorrido outra hora, e já o professor Platen se achava, de novo, a bordo, deixando a recomendação de que não fosse retirada a venda, que pusera no enfermo, antes de duas semanas.

Doze dias depois passava ele, de novo, pelo Rio, de regresso para a Europa. Visitou novamente o operado, e deu novas ordens aos enfermeiros. Paulo Fernando sentia-se bem. Recebia visitas, palestrava com os amigos. Mas o resultado da operação só seria verificado três dias mais tarde, quando se retirasse a gaze. O santo estava tão seguro do seu prestígio que ia embora sem esperar pela verificação do milagre.

Chega, porém, o dia ansiosamente aguardado pelos médicos, mais do que pelo doente. O Hospital encheu-se de especialistas, mas a direção só permitiu, na sala em que se ia cortar a gaze, a presença dos assistentes do enfermo. Os outros ficaram fora, no salão, para ver o doente, depois da cura.

Pelo braço de dois assistentes, Paulo Fernando atravessou o salão. Daqui e dali, vinham-lhe parabéns antecipados, apertos de mão vigorosos, que ele agradecia com um sorriso sem endereço. Até que a porta se fechou, e o doente, sentado em uma cadeira, escutou o estalido da tesoura, cortando a gaze que lhe envolvia o rosto.

Duas, três voltas são desfeitas. A emoção é funda, e o silêncio completo, como o de um túmulo. O último pedaço de gaze rola no balde. O médico tem as mãos trêmulas. Paulo Fernando, imóvel, espera a sentença final do Destino.

- Abra os olhos! - diz o doutor.

O operado, olhos abertos, olha em torno. Olha e, em silêncio, muito pálido, vai se pondo de pé. A pupila entra em contacto com a luz, e ele enxerga, distingue, vê. Mas é espantoso o que vê. Vê, em redor, criaturas humanas. Mas essas criaturas não têm vestimentas, não têm carne; são esqueletos apenas; são ossos que se movem, tíbias que andam, caveiras que abrem e fecham as mandíbulas! Os seus olhos comem a carne dos vivos. A sua retina, como os raios-X, atravessa o corpo humano e só se detém na ossatura dos que a cercam, e diante das cousas inanimadas! O médico, à sua frente, é um esqueleto que tem uma tesoura na mão! Outros esqueletos andam, giram, afastam-se, aproximam-se, como um bailado macabro!

De pé, os olhos escancarados, a boca aberta e muda, os braços levantados numa atitude de pavor, e de pasmo, Paulo Fernando corre na direção da porta, que adivinha mais do que vê, e abre-a. E o que enxerga, na multidão de médicos e de amigos que o aguardam lá fora, é um turbilhão de espectros, de esqueletos que marcham e agitam os dentes, como se tivessem aberto um ossuário cujos mortos quisessem sair. Solta um grito e recua. Recua, lento, de costa, o espanto estampado na face. Os esqueletos marcham para ele, tentando segurá-lo.

- Afastem-se ! Afastem-se - intima, num urro que faz estremecer a sala toda.

E, metendo as unhas no rosto, afunda-as nas órbitas, e arranca, num movimento de desespero, os dois glóbulos ensangüentados, e tomba escabujando no solo, esmagando nas mãos aqueles olhos que comiam carne, e que, devorando macabramente a carne aos vivos, transformavam a vida humana, em torno, em um sinistro baile de esqueletos...

por Humberto de Campos

Humberto de Campos (H. de C. Veras), jornalista, político, crítico, cronista, contista, poeta, biógrafo e memorialista, nasceu em Miritiba, hoje Humberto de Campos, MA, em 25 de outubro de 1886, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 5 de dezembro de 1934. Eleito em 30 de outubro de 1919 para a Cadeira n. 20, sucedendo a Emílio de Menezes, foi recebido em 8 de maio de 1920, pelo acadêmico Luís Murat.

Foram seus pais Joaquim Gomes de Faria Veras, pequeno comerciante, e Ana de Campos Veras. Perdendo o pai aos seis anos, Humberto de Campos deixou a cidade natal e foi levado para São Luís. Dali, aos 17 anos, passou a residir no Pará, onde conseguiu um lugar de colaborador e redator na Folha do Norte e, pouco depois, na Província do Pará. Em 1910 publicou seu primeiro livro, a coletânea de versos intitulada Poeira, primeira série. Em 1912 transferiu-se para o Rio. Entrou para O Imparcial, na fase em que ali trabalhava um grupo de escritores ilustres, como redatores ou colaboradores, entre os quais Goulart de Andrade, Rui Barbosa, José Veríssimo, Júlia Lopes de Almeida, Salvador de Mendonça e Vicente de Carvalho. João Ribeiro era o crítico literário. Ali também José Eduardo de Macedo Soares renovava a agitação da segunda campanha civilista. Humberto de Campos ingressou no movimento. Logo depois o jornalista militante deu lugar ao intelectual. Fez essa transição com o pseudônimo de Conselheiro XX com que assinava contos e crônicas, hoje reunidos em vários volumes. Assinava também com os pseudônimos Almirante Justino Ribas, Luís Phoca, João Caetano, Giovani Morelli, Batu-Allah, Micromegas e Hélios. Em 1923, substituiu Múcio Leão na coluna de crítica do Correio da Manhã.

Em 1920, já acadêmico, foi eleito deputado federal pelo Maranhão. A revolução de 1930 dissolveu o Congresso e ele perdeu seu mandato. O presidente Getúlio Vargas, que era grande admirador do talento de Humberto de Campos, procurou minorar as dificuldades do autor de Poeira, dando-lhe os lugares de inspetor de ensino e de diretor da Casa de Rui Barbosa. Em 1931, viajou ao Prata em missão cultural. Em 1933 publicou o livro que se tornou o mais célebre de sua obra, Memórias, crônica dos começos de sua vida. O seu Diário secreto, de publicação póstuma, provocou grande escândalo pela irreverência e malícia em relação a contemporâneos.

Autodidata, grande ledor, acumulou vasta erudição, que usava nas crônicas. Poeta neoparnasiano, fez parte do grupo da fase de transição anterior a 1922. Poeira é um dos últimos livros da escola parnasiana no Brasil. Fez também crítica literária de natureza impressionista. É uma crítica de afirmações pessoais, que não se fundamentam em critérios e, por isso, não podem ser endossadas nem verificadas. Na crônica, seu recurso mais corrente era tomar conhecidas narrativas e dar-lhes uma forma nova, fazendo comentários e digressões sobre o assunto, citando anedotas e tecendo comparações com outras obras. No fundo ou na essência, era uma crítica superficial, que não resiste à análise nem ao tempo.

Obras: Poeira, poesia, 2 séries (1910 e 1917); Da seara de Booz, crônicas (1918); Vale de Josaphat, contos (1918); Tonel de Diógenes, contos (1920); A serpente de bronze, contos (1921); Mealheiro de Agripa, vária (1921); Carvalhos e roseiras, crítica (1923); A bacia de Pilatos, contos (1924); Pombos de Maomé, contos (1925); Antologia dos humoristas galantes (1926); Grãos de mostarda, contos (1926); Alcova e salão, contos (1927); O Brasil anedótico, anedotas (1927); Antologia da Academia Brasileira de Letras (1928); O monstro e outros contos (1932); Memórias 1886-1900 (1933); Crítica, 4 séries (1933, 1935, 1936); Os países, vária (1933); Poesias completas (1933); À sombra das tamareiras, contos (1934); Sombras que sofrem, crônicas (1934); Um sonho de pobre, memórias (1935); Destinos, vária (1935); Lagartas e libélulas, vária (1935); Memórias inacabadas (1935); Notas de um diarista, 2 séries (1935 e 1936); Reminiscências, memórias (1935); Sepultando os meus mortos, memórias (1935); Últimas crônicas (1936); Perfis, 2 séries, biografias (1936); Contrastes, vária (1936); O arco de Esopo, contos (1943); A funda de Davi, contos (1943); Gansos do capitólio, contos (1943); Fatos e feitos, vária (1949); Diário secreto, 2 vols. (1954).

Fonte: Academia Brasileira de Letras

Horace Walpole

Dois fatos justificam a presença de Walpole na história da literatura inglesa: sua correspondência volumosa, que se tornou um clássico do gênero, e o livro The Castle of Otranto, que deu início à voga dos romances góticos, ou com temas de horror ambientados, a princípio, em tempos medievais.

Horace Walpole, filho do primeiro-ministro Robert Walpole e quarto conde de Orford, nasceu em Londres em 24 de setembro de 1717. Foi educado em Eton e Cambridge. Com o poeta Thomas Gray, viajou pela Itália e a França.

De 1741 a 1768 foi membro do Parlamento, mas não se destacou na vida política. A partir de 1747, fez de Strawberry Hill, sua residência em Twickenham, onde colecionou obras de arte, um ativo centro da revivescência gótica inglesa. Aí instalou também uma impressora, em que imprimiu seus escritos e os dos amigos mais íntimos.

Além de The Castle of Otranto (1765; O castelo de Otranto), escreveu livros sobre história política e sobre história da arte. Sua correspondência completa, com mais de três mil cartas, foi publicada em 42 volumes entre 1937 e 1980.

Horace Walpole morreu em Londres, em 2 de março de 1797.

Fonte: Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda.

O tesouro

I

Os três irmãos de Medranhos, Rui, Guanes e Rostabal, eram então, em todo o Reino das Astúrias, os fidalgos mais famintos e os mais remendados.

Nos Paços de Medranhos, a que o vento da serra levara vidraça e telha, passavam eles as tardes desse inverno, engelhados nos seus pelotes de camelão, batendo as solas rotas sobre as lajes da cozinha, diante da vasta lareira negra, onde desde muito não estalava lume, nem fervia a panela de ferro.

Ao escurecer devoravam uma côdea de pão negro, esfregada com alho. Depois, sem candeia, através do pátio, fendendo a neve, iam dormir à estrebaria, para aproveitar o calor das três éguas lazarentas que, esfaimadas como eles, roíam as traves da manjedoura. E a miséria tornara estes senhores mais bravios que lobos.

Ora, na primavera, por uma silenciosa manhã de domingo, andando todos três na mata de Roquelanes a espiar pegadas de caça e a apanhar tortulhos entre os robles, enquanto as três éguas pastavam a relva nova de abril, - os irmãos de Medranhos encontravam, por trás de uma moita de espinheiros, numa cova de rocha, um velho cofre de ferro. Como se o resguardasse uma torre segura, conservava as suas três chaves nas suas três fechaduras. Sobre a tampa, mal decifrável através da ferrugem, corria um dístico em letras árabes. E dentro, até às bordas, estava cheio de dobrões de ouro!

No terror e esplendor da emoção, os três senhores ficaram mais lívidos do que círios. Depois, mergulhando furiosamente as mãos no ouro, estalaram a rir, num riso de tão larga rajada, que as folhas tenras dos olmos, em roda, tremiam... E de novo recuaram, bruscamente se encararam, com os olhos a flamejar, numa desconfiança tão desabrida que Guanes e Rostabal apalpavam nos cintos os cabos das grandes facas. Então Rui, que era gordo e ruivo, e o mais avisado, ergueu os braços, como um árbitro, e começou por decidir que o tesouro, ou viesse de Deus ou do demônio, pertencia aos três, e entre eles se repartiria, rigidamente, pesando-se o ouro em balanças. Mas como poderiam carregar para Medranhos, para os cimos da serra, aquele cofre tão cheio? Nem convinha que saíssem da mata com o seu bem, antes de cerrar a escuridão. Por isso ele entendia que o mano Guanes, como mais leve, devia trotar para a vila vizinha de Retortilho, levando já ouro na bolsinha, a comprar três alforjes de couro, três maquias de cevada, três empadões de carne, e três botelhas de vinho. Vinho e carne eram para eles, que não comiam desde a véspera; a cevada era para as éguas. E assim refeitos, senhores e cavalgaduras, ensacaríam o ouro nos alforjes, e subiriam para Medranhos, sob a segurança da noite sem lua.

- Bem tramado! - gritou Rostabal, homem mais alto que um pinheiro, de longa guedelha, e com uma barba que lhe caía desde os olhos raiados de sangue até a fivela do cinturão.

Mas Guanes não se arredava do cofre, enrugado, desconfiado, puxando entre os dedos a pele negra do seu pescoço de grou. Por fim, brutalmente:

- Manos! O cofre tem três chaves... Eu quero fechar a minha fechadura e levar a minha chave!

- Também eu quero a minha, mil raios! - rugiu logo Rostabal.

Rui sorriu. Decerto, decerto! A cada dono do ouro cabia uma das chaves que o guardavam. E cada um em silêncio, agachado ante o cofre, cerrou a sua fechadura com força. Imediatamente Guanes, desanuviado, saltou na égua, meteu pela vereda de olmos, a caminho de Retortilho, atirando aos ramos a sua cantiga costumada e dolente:

Olé! olé!
Sale la cruz de la iglesia,
Vestida de negro luto...

II

Na clareira, em frente à moita que encobria o tesouro (e que os três tinham desbastado a cutiladas) um fio de água, brotando entre rochas, caía sobre uma vasta laje escavada, onde fazia como um tanque, claro e quieto, antes de se escoar para as relvas altas. E ao lado, na sombra de uma faia, jazia um velho pilar de granito, tombado e musgoso. Ali vieram sentar-se Rui e Rostabal, com os seus tremendos espadões entre os joelhos. As duas éguas tosavam a boa erva pintalgada de papoulas e botões de ouro. Pela ramaria andava um melro a assobiar. Um cheiro errante de violetas adoçava o ar luminoso. E Rostabal, olhando o sol, bocejava com fome.

Então Rui, que tirara o sombrero e lhe cofiava as velhas plumas roxas, começou a considerar, na sua fala avisada e mansa, que Guanes, nessa manhã, não quisera descer com eles à mata de Roquelanes. E assim era a sorte ruim! Pois que se Guanes tivesse quedado em Medranhos, só eles dois teriam descoberto o cofre, e só entre eles dois se dividiria o ouro! Grande pena! tanto mais que a parte de Guanes seria em breve dissipada, com rufiões, aos dados, pelas tavernas.

- Ah! Rostabal, Rostabal! Se Guanes, passando aqui sozinho, tivesse achado este ouro, não dividia conosco, Rostabal!

O outro rosnou surdamente e com furor, dando um puxão às barbas negras:

- Não, mil raios! Guanes é sôfrego... Quando o ano passado, se te lembras, ganhou os cem ducados ao espadeiro de Fresno, nem me quis emprestar três para eu comprar um gibão novo!

- Vês tu? - gritou Rui, resplandecendo.

Ambos se tinham erguido do pilar de granito, como levados pela mesma idéia, que os deslumbrava. E, através das suas largas passadas, as ervas altas silvavam.

- E para que? - prosseguia Rui. - Para que lhe serve todo o ouro que nos leva? Tu não o ouves, de noite, como tosse? Ao redor da palha em que dorme, todo o chão está negro do sangue que escarra! Não dura até as outras neves, Rostabal! Mas até lá terá dissipado os bons dobrões que deviam ser nossos, para levantarmos a nossa casa, e para tu teres ginetes, e armas, e trajes nobres, e o teu terço de solarengos como compete, a quem é, como tu, o mais velho dos de Medranhos...

- Pois que morra, e mora hoje! - bradou Rostabal.

- Queres?

Vivamente, Rui agarrara o braço do irmão e apontava para a vereda de olmos, por onde Guanes partira cantando:

- Logo adiante, ao fim do trilho, hé um sítio bom, nos silvados. E hás de ser tu, Rostabal, que és o mais forte e o mais destro. Um golpe de ponta pelas costas. E é a justiça de Deus que sejas tu, que muitas vezes, nas tavernas, sem pudor, Guanes te tratava de cerdo e de torpe, por não saberes a letra nem os números.

- Malvado!

- Vem!

Foram. Ambos se emboscaram por trás de um silvado, que dominava o atalho, estreito e pedregoso como um leito de torrente. Rostabal, assolapado na vala, tinha já a espada nua. Um vento leve arrepiou na encosta as folhas dos álamos - e sentiram o repique leve dos sinos de Retortilho. Rui, coçando a barba, calculava as horas pelo sol, que já se inclinava para as serras. Um bando de corvos passou sobre eles, grasnando. E Rostabal, que lhe seguira o vôo, recomeçou a bocejar, com fome, pensando nos empadões e na vinho que o outro trazia nos alforjes.

Enfim! Alerta! Era, na vereda, a cantiga dolente e rouca, atirada aos ramos:

Olé! olé!
Sale la cruz de la iglesia
Toda vestida de negro...

Rui murmurou: - "Na ilharga! Mal que passe!" O chuto da égua bateu o cascalho, uma pluma num sombrero vermelhejou por sobre a ponta das silvas.

Rostabal rompeu de entre a sarça por uma brecha, atirou o braço, a longa espada; - e toda a lâmina se embebeu molemente na ilharga de Guanes, quando ao rumor, bruscamente, ele se virara na sela. Com um surdo arranco, tombou de lado, sobre as pedras. Já Rui se arremessava aos freios da égua: - Rostabal, caindo sobre Guanes, que arquejava, de novo lhe mergulhou a espada, agarrada pela folha como um punhal, no peito e na garganta.

- A chave! - gritou Rui.

E arrancada a chave do cofre ao seio do morto, ambos largaram pela vereda - Rostabal adiante, fugindo, com a pluma do sombrero quebrada e torta, a espada ainda nua entalada sob o braço, todo encolhido, arrepiado com o sabor de sangue que lhe espirrara para a boca; Rui, atrás, puxando desesperadamente os freios da égua, que, de patas fincadas no chão pedregoso, arreganhando a longa dentuça amarelada, não queria deixar o seu amo assim estirado, abandonado, ao comprido das sebes.

Teve de lhe espicaçar as ancas lazarentas com a ponta da espada: - e foi correndo sobre ela, de lâmina alta, como se perseguisse um mouro, que desembocou na clareira onde o sol já não dourava as folhas. Rostabal arremessara para a relva o sombrero e a espada; e debruçado sobre a laje escavada em tanque, de mangas arregaçadas, lavava, ruidosamente, a face e as barbas.

A égua, quieta, recomeçou a pastar, carregada com os alforjes novos que Guanes comprara em Retortilho. Do mais largo, abarrotado, surdiam dois gargalos de garrafas. Então Rui tirou, lentamente, do cinto, a sua larga navalha. Sem um rumor na relva espessa, deslizou até Rostabal, que resfolgava, com as longas barbas pingando. E serenamente, como se pregasse uma estaca num canteiro, enterrou a folha toda no largo dorso dobrado, certeira sobre o coração.

Rostabal caiu sobre o tanque, sem um gemido, com a face na água, os longos cabelos flutuando na água. A sua velha escarcela de couro ficara entalada sob a coxa. Para tirar de dentro a terceira chave do cofre, Rui solevou o corpo - e um sangue mais grosso jorrou, escorreu pela borda do tanque, fumegando.

III

Agora eram dele, só dele, as três chaves do cofre!... E Rui, alargando os braços, respirou deliciosamente. Mal a noite descesse, com o ouro metido nos alforjes, guiando a fila das éguas pelos trilhos da serra, subiria a Medranhos e enterraria na adega o seu tesouro! E quando ali na fonte, e além rente aos silvados, só restassem, sob as neves de dezembro, alguns ossos sem nome, ele seria o magnífico senhor de Medranhos, e na capela nova do solar renascido, mandaria dizer missas ricas pelos seus dois irmãos mortos... Mortos, como? Como devem morrer os de Medranhos - a pelejar contra o Turco!

Abriu as três fechaduras, apanhou um punhado de dobrões, que fez retinir sobre as pedras. Que puro ouro, de fino quilate! E era o seu ouro! Depois foi examinar a capacidade dos alforjes - e encontrando as duas garrafas de vinho, e um gordo capão assado, sentiu uma imensa fome. Desde a véspera só comera uma lasca de peixe seco. E há quanto tempo não provava capão!

Com que delícia se sentou na relva, com as pernas abertas, e entre elas, a ave loura, que recendia, e o vinho cor de âmbar! Ah! Guanes fora bom mordomo - nem esquecera azeitonas. Mas, porque trouxera ele, para três convivas, só duas garrafas? Rasgou uma asa do capão: devorava a grandes dentadas. A tarde descia, pensativa e doce, com nuvenzinhas cor-de-rosa. Para além, na vereda, um bando de corvos grasnava. As éguas fartas dormitavam, com o focinho pendido. E a fonte cantava, lavando o morto.

Rui ergueu à luz a garrafa de vinho. Com aquela cor velha e quente, não teria custado menos de três maravedis. E pondo o gargalo à boca, bebeu em sorvos lentos, que lhe faziam ondular o pescoço peludo. Oh vinho bendito, que tão prontamente aquecia o sangue! Atirou a garrafa vazia - destapou outra. Mas, como era avisado, não bebeu, porque a jornada para a serra, com o tesouro, requeria firmeza e acerto. Estendido sobre o cotovelo, descansando, pensava em Medranhos coberto de telha nova, nas altas chamas da lareira por noites de neve, e o seu leito com brocados, onde teria sempre mulheres.

De repente, tomado de uma ansiedade, teve pressa de carregar os alforjes. Já entre os troncos a sombra se adensava. Puxou uma das éguas para junto do cofre, ergueu a tampa, tomou um punhado de ouro... Mas oscilou, largando os dobrões que retilintaram no chão, e levou as duas mãos aflitas ao peito. Que é, D. Rui? Raios de Deus! Era um lume, um lume vivo, que lhe acendera dentro, lhe subia até às goelas. Já rasgara o gibão, atirava os passos incertos, e, a arquejar, com a língua pendente, limpava as grossas bagas de um suor horrendo que o regelava como neve. Oh Virgem Mãe! Outra vez o lume, mais forte, que alastrava, o roía! Gritou:

- Socorro! Alguém! Guanes! Rostabal!

Os seus braços torcidos batiam o ar desesperadamente. E a chama dentro galgava - sentia os ossos a estalarem como as traves de uma casa em fogo.

Cambaleou até à fonte para apagar aquela labareda, tropeçou sobre Rostabal; e foi com o joelho fincado no morto, arranhando a rocha, que ele, entre uivos, procurava o fio de água, que recebia sobre os olhos, pelos cabelos. Mas a água mais o queimava, como se fosse um metal derretido. Recuou, caiu para cima da relva que arrancava aos punhados, e que mordia, mordendo os dedos, para lhe sugar a frescura. Ainda se ergueu, com uma baba densa a escorrer-lhe nas barbas; e de repente, esbugalhando pavorosamente os olhos, berrou, como se compreendesse enfim a traição, todo horror:

- É veneno!

Oh! D. Rui, o avisado, era veneno! Porque Guanes, apenas chegara a Retortilho, mesmo antes de comprar os alforjes, correra cantando a uma viela, por de trás da catedral, a comprar ao velho droguista judeu o veneno que, misturado ao vinho, o tornaria a ele, a ele somente, dono de todo tesouro.

Anoiteceu. Dois corvos dentre o bando que grasnava, além nos silvados, já tinham pousado sobre o corpo de Guanes. A fonte, cantando, lavava o outro morto. Meio enterrada na erva negra, toda a face de Rui se tornara negra. Uma estrelinha tremeluzia no céu.

O tesouro ainda lá está, na mata de Roquelanes.


Memórias de uma forca

Foi por um modo sobrenatural que eu tive conhecimento deste papel, onde uma pobre forca apodrecida e negra dizia alguma coisa da sua história. Esta forca intentava escrever as suas trágicas Memórias. Deviam ser profundos documentos sobre a vida.

Árvore, ninguém sabia tão bem o mistério da natureza; forca, ninguém conhecia melhor o homem. Nenhum tão espontâneo e verdadeiro como o homem que se torce na ponta de uma corda — a não ser aquele que lhe carrega sobre os ombros! Infelizmente, a pobre forca apodreceu e morreu.

Entre os apontamentos que deixou, os menos completos são estes que copio — resumo das suas dores, vaga aparência de gritos instintivos. Pudesse ela ter escrito a sua vida complexa, cheia de sangue e de melancolia! É tempo de sabermos, enfim, qual é a opinião que a vasta natureza, montes, árvores e águas, fazem do homem imperceptível. Talvez este sentimento me leve ainda algum dia a publicar papéis que guardo avaramente, e que são as Memórias de um Átomo e os Apontamentos de Viagem de Uma Raiz de Cipreste.

Diz assim o fragmento que eu copio — e que é simplesmente o prólogo das Memórias:

“Sou duma antiga família de carvalhos, raça austera e forte — que já na Antiguidade deixava cair, dos seus ramos, pensamentos para Platão. Era uma família hospitaleira e histórica: dela tinham saído navios para a derrota tenebrosa das índias, contos de lanças para os alucinados das Cruzadas, e vigas para os tectos simples e perfumados que abrigaram Savonarola, Espinosa e Lutero. Meu pai, esquecido das altas tradições sonoras e da sua heráldica vegetal, teve uma vida inerte, material e profana. Não respeitava as nobres morais antigas, nem a ideal tradição religiosa, nem os deveres da história. Era uma árvore materialista. Tinha sido pervertida pelos enciclopedistas da vegetação. Não tinha fé, nem alma, nem Deus! Tinha a religião do Sol, da seiva e da água. Era o grande libertino da floresta pensativa. No Verão, enquanto sentia a fermentação violenta das seivas, cantava movendo-se ao sol, acolhia os grandes concertos de pássaros boémios, cuspia a chuva sobre o povo curvado e humilde das ervas e das plantas e, de noite, enlaçado pelas heras lascivas, ressonava sob o silêncio sideral. Quando vinha o Inverno, com a passividade animal dum mendigo, erguia, para a impassível ironia do azul, os seus braços magros e suplicantes!

“Por isso nós os seus filhos, não fomos felizes na vida vegetal. Um dos meus irmãos foi levado para ser tablado de palhaços: ramo contemplativo e romântico, ia, todas as noites, ser pisado pela chufa, pelo escárnio, pela farsa e pela fome! O outro ramo, cheio de vida, de sol, de poeira, áspero solitário da vida, lutador dos ventos e das neves, forte e trabalhador, foi arrancado dentre nós, para ir ser tábua de esquife! — Eu, o mais lastimável, vim a ser forca!

“Desde pequeno fui triste e compassivo. Tinha grandes intimidades na floresta. Eu só queria o bem, o riso, a dilatação salutar das fibras e das almas. O orvalho de que a noite me banhava, atirava-o a umas pobres violetas, que viviam por debaixo de nós, doces raparigas lutuosas, melancolias condensadas e vivas da grande alma silenciosa da vegetação. Agasalhava todos os pássaros na véspera dos temporais. Era eu quem asilava a chuva. Ela vinha, com os cabelos esguedelhados, perseguida, mordida, retalhada pelo vento! Eu abria-lhe as ramagens e as folhas, e escondia-a ali, ao calor da seiva. O vento passava, confundido e imbecil. Então a pobre chuva, que o via longe, assobiando lascivo, deixava-se escorregar silenciosamente pelo tronco, gota por gota, para o vento a não perceber; e ia, de rastos, por entre a erva, acolher-se à vasta mãe Água! Tive por esse tempo uma amizade com um rouxinol, que vinha conversar comigo durante as longas horas consteladas do silêncio. O pobre rouxinol tinha uma pena de amor! Tinha vivido num país distante, onde os noivados têm mais moles preguiças: lá se enamorara: comigo chorava em suspiros líricos. E tão mística pena era que me disseram que o triste, de dor e de desesperança, se deixara cair na água! Pobre rouxinol! Ninguém tão amante, tão viúvo e tão casto!

“Eu queria proteger todos os que vivem. E quando as raparigas do campo vinham para junto de mim chorar, eu erguia sempre as minhas ramagens, como dedos, para apontar à pobre alma aflita de lágrimas todos os caminhos do Céu!

''Nunca mais! Nunca mais, verde mocidade distante!

“Enfim, eu tinha de entrar na vida da realidade. Um dia, um daqueles homens metálicos que fazem o tráfico da vegetação, veio arrancar-me à árvore. Não sabia eu o que me queriam. Deitaram-me sobre um carro e, ao cair da noite, os bois começaram a caminhar, enquanto ao lado um homem cantava no silêncio da noite. Eu ia ferido e desfalecido. Via as estrelas com os seus olhares lancinantes e frios. Sentia-me separar da grande floresta. Ouvia o rumor gemente, indefinido e arrastado das árvores. Eram vozes amigas que me chamavam!

“Por cima de mim voavam aves imensas. Eu sentia-me desfalecer, num torpor vegetal, como se estivesse sendo dissipado na passividade das coisas. Adormeci. Ao amanhecer, íamos entrando numa cidade. As janelas olhavam-me com olhos ensanguentados e cheios dum sol irado. Eu só conhecia as cidades pelas histórias que delas contavam as andorinhas, nos serões sonoros da espessura. Mas como ia deitado e amarrado com cordas, apenas via os fumos e um ar opaco. Ouvia o rumor áspero e desafinado, onde havia soluços, risos, bocejos, e mais o surdo roçar da lama, e o tinido sombrio dos metais. Eu sentia enfim o cheiro mortal do homem! Fui arremessado para um pátio infecto, onde não havia o azul e o ar. Comecei então a compreender que uma grande imundície cobre a alma do homem, porque ele se esconde tanto das vistas do Sol!

“Uns homens vieram, que me deram desprezivelmente com os pés. Eu estava num estado de torpor e de materialidade, que nem sentia as saudades da pátria vegetal. Ao outro dia, um homem veio para mim e deu-me golpes de machado. Não senti mais nada. Quando voltei a mim, ia outra vez amarrado no carro, e pela noite um homem aguilhoava os bois, cantando. Senti lentamente renascer a consciência e a vitalidade. Parecia-me que eu estava transformado numa outra vida orgânica. Não sentia a magnética fermentação da seiva, a energia vital dos filamentos e a superfície viva das cascas. Em redor do carro iam outros homens, a pé. Sob a brancura silenciosa e compassiva da Lua, tive uma saudade infinita dos campos, do cheiro dos fenos, das aves, de toda a grande alma vivificadora de Deus, que se move entre a ramagem. Eu sentia que ia para uma vida real, de serviço e de trabalho. Mas qual? Tinha ouvido falar das árvores, que vão ser lenha, aquecem e criam, e, tomando entre a convivência do homem a nostalgia de Deus, lutam com os seus braços de chamas para se desprender da terra: essas dissipam-se na augusta transfiguração do fumo, vão ser nuvens, ter a intimidade das estrelas e do azul, viver na serenidade branca e altiva dos imortais, e sentir os passos de Deus!

“Eu tinha ouvido falar das que vão ser vigas da casa do homem: essas, felizes e privilegiadas, sentem na penumbra amorosa a doce força dos beijos e dos risos; são amadas, vestidas, lavadas; encostam-se a elas os corpos dolorosos dos Cristos, são os pedestais da paixão humana, têm a alegria imensa e orgulhosa dos que protegem; e risos das crianças, ais namorados, confidências, suspiros, elegias da voz, tudo o que lhes faz lembrar as murmurações da água, o estremecimento das folhas, as cantigas dos ventos — toda essa graça escorre sobre elas, que já gozaram a luz da matéria, como uma imensa e bondosa luz da alma.

“Eu tinha ouvido falar também das árvores de bom destino, que vão ser mastro de navio, sentir o cheiro da maresia e ouvir as legendas do temporal, viajar, lutar, viver, levadas pelas águas, através do infinito, entre surpresas radiosas — como almas arrancadas do corpo que fazem pela primeira vez a viagem do Céu!

“Que iria eu ser?... — Chegámos. Tive então a visão real do meu destino. Eu ia ser forca!

“Fiquei inerte, dissolvida na aflição. Ergueram-me. Deixaram-me só, tenebrosa, num campo. Tinha, enfim, entrado na realidade pungente da vida. O meu destino era matar. Os homens, cujas mãos andam sempre cheias de cadeias, de cordas e de pregos, tinham vindo aos carvalhos austeros buscar um cúmplice! Eu ia ser a eterna companheira das agonias. Presos a mim, iam balouçar-se os cadáveres, como outrora as verdes ramagens orvalhadas!

“Eu ia dar esses negros frutos: os mortos!

“O meu orvalho seria de sangue. Ia escutar para sempre, eu a companheira dos pássaros, doces tenores errantes, as agonias soluçantes, os gemidos de sufocação! As almas ao partir, rasgar-se-iam nos meus pregos. Eu, a árvore do silêncio e do mistério religioso, eu, cheia de augusta alegria orvalhada e dos salmos sonoros da vida, eu, que Deus conhecia por boa consoladora, havia de mostrar-me às nuvens, ao vento, aos meus antigos camaradas puros e justos, eu, a árvore viva dos montes, de intimidade com a podridão, de camaradagem com o carrasco, sustentando alegremente um cadáver pelo pescoço, para os corvos o esfarraparem!

“E isto ia ser! Fiquei hirta e impassível como nas nossas florestas os lobos, quando se sentem morrer.

“Era a aflição. Eu via ao longe a cidade coberta de névoa.

“Veio o sol. Em roda de mim começou a juntar-se o povo. Depois, através dum desfalecimento, senti o ruído de músicas tristes, o rumor pesado dos batalhões, e os cantos dolentes dos padres. Entre dois círios, vinha um homem lívido. Então, confusamente, como nas aparências inconscientes do sonho, senti um estremecimento, uma grande vibração eléctrica, depois a melodia monstruosa e arrastada do canto católico dos mortos!

“Voltou-me a consciência.

“Estava só. O povo dispersava-se e descia para os povoados. Ninguém! A voz dos padres descia lentamente, como a última água duma maré. Era o fim da tarde. Vi. Vi livremente. Vi! Dependurado de mim, hirto, esguio, com a cabeça caída e deslocada, estava o enforcado! Arrepiei-me!

“Eu sentia o frio e a lenta ascensão da podridão. Ia ficar ali, de noite, só, naquele descampado sinistro, tendo nos braços aquele cadáver! Ninguém!

“O sol ia-se, o sol puro. Onde estava a alma daquele cadáver? Tinha passado já? Tinha-se dissipado na luz, nos vapores, nas vibrações? Eu sentia os passos tristes da noite, que vinha. O vento empurrava o cadáver, a corda rangia.

“Eu tremia, numa febre vegetal, dilacerante e silenciosa. Não podia ficar ali só. O vento levar-me-ia, atirando-me, aos pedaços, para a antiga pátria das folhas. Não. O vento era brando: quase somente a respiração da sombra! Tinha vindo então o tempo em que a grande natureza, a natureza religiosa, era abandonada às feras humanas? Os carvalhos já não eram, pois, uma alma? Podiam, com justiça, vir o machado e as cordas buscar os ramos criados pela seiva, pela água e pelo sol, trabalho suado da natureza, forma resplandecente da intenção de Deus, e levá-los para as impiedades, para os tablados da forca onde apodrecem as almas, para os esquifes onde apodrecem os corpos? E as ramagens puras, que foram testemunhas das religiões, já não serviam senão para executar as penalidades humanas? Serviam só para sustentar as cordas, onde os saltimbancos bailam, e os condenados se torcem? Não podia ser.

“Pesava sobre a natureza uma fatalidade infame. As almas dos mortos, que sabem o segredo e compreendem a vegetação, achariam grotesco que as árvores, depois de terem sido colocadas por Deus na floresta com os braços estendidos, para abençoar a terra e a água, fossem arrastadas para as cidades, e obrigadas, pelo homem, a estender o braço da forca para abençoar os carrascos!

“E depois de sustentarem os ramos de verdura que são os fios misteriosos, mergulhados no azul, por onde Deus prende a terra —fossem sustentar as cordas da forca, que são as fitas infames, por onde o homem se prende à podridão! Não! se as raízes dos ciprestes contassem isto em casa dos mortos — faziam estalar de riso a sepultura!

“Assim falava eu na solidão. A noite vinha lenta e fatal. O cadáver balouçava-se ao vento. Comecei a sentir palpitações de asas. Voavam sombras por cima de mim. Eram os corvos. Pousaram. Eu sentia o roçar das suas penas imundas; afiavam os bicos no meu corpo; penduravam-se, ruidosos, cravando-me as garras.

“Um pousou no cadáver e pôs-se a roer-lhe a face! Solucei dentro de mim. Pedi a Deus que me apodrecesse subitamente. Era uma árvore das florestas a quem os ventos falavam! Servia agora para afiar os bicos dos corvos, e para que os homens dependurassem de mim os cadáveres, como vestidos velhos de carne, esfarrapados! Oh! meu Deus! — soluçava eu ainda — eu não quero ser relíquia de tortura: eu alimentava, não quero aniquilar: era a amiga do semeador, não quero ser a aliada do coveiro! Eu não posso e não sei ser a Justiça. A vegetação tem uma augusta ignorância: a ignorância do sol, do orvalho e dos astros. Os bons, os angélicos, os maus são os mesmos corpos invioláveis, para a grande natureza sublime e compassiva. Ó meu Deus, liberta-me deste mal humano tão aguçado e tão grande, que se traspassa a si, atravessa de lado a lado a natureza, e ainda te vai ferir, a ti, no Céu! Oh! Deus, o céu azul, todas as manhãs, me dava os orvalhos, o calor fecundo, a beleza imaterial e fluida da brancura, a transfiguração pela luz, toda a bondade, toda a graça, toda a saúde: — não queiras que, em compensação, eu lhe mostre, amanhã, ao seu primeiro olhar, este cadáver esfarrapado!

“Mas Deus dormia, entre os seus paraísos de luz. Vivi três anos nestas angústias.

“Enforquei um homem — um pensador, um político, filho do Bem e da Verdade, alma formosa cheia das formas do ideal, combatente da Luz. Foi vencido, foi enforcado.

“Enforquei um homem que tinha amado uma mulher e tinha fugido com ela. O seu crime era o amor, que Platão chama mistério, e Jesus chamou lei. O código puniu a fatalidade magnética da atracção das almas, e corrigiu Deus com a forca!

“Enforquei também um ladrão. Este homem era também operário. Tinha mulher, filhos, irmãos e mãe. No Inverno não teve trabalho, nem lume, nem pão. Tomado dum desespero nervoso, roubou. Foi enforcado ao Sol-posto. Os corvos não vieram. O corpo foi para a terra limpo, puro e são. Era um pobre corpo que tinha sucumbido por eu o apertar de mais, como a alma tinha sucumbido por Deus a alargar e a encher.

“Enforquei vinte. Os corvos conheciam-me. A natureza via a minha dor íntima; não me desprezou; o Sol alumiava-me com glorificação, as nuvens vinham arrastar por mim a sua mole nudez, o vento falava-me e contava a vida da floresta, que eu tinha deixado, a vegetação saudava-me com meigas inclinações da folhagem: Deus mandava-me o orvalho, frescura que prometia o perdão natural.

“Envelheci. Vieram as rugas escuras. A grande vegetação, que me sentia esfriar, mandou-me os seus vestidos de hera. Os corvos não voltaram: não voltaram os carrascos. Sentia em mim a antiga serenidade da natureza divina. As eflorescências, que tinham fugido de mim, deixando-me só no solo áspero, começaram a voltar, a nascer, em roda de mim, como amigas verdes e esperançosas. A natureza parecia consolar-me. Eu sentia chegar a podridão. Um dia de névoas e de ventos, deixei-me cair tristemente no chão, entre a relva e a humidade, e pus-me silenciosamente a morrer.

“Os musgos e as relvas cobriam-me, e eu comecei a sentir-me dissolver na matéria enorme, com uma doçura inefável.

“O corpo esfria-me: eu tenho a consciência da minha transformação lenta de podridão em terra. Vou, vou. Ó terra, adeus! Eu derramo-me já pelas raízes. Os átomos fogem para toda a vasta natureza, para a luz, para a verdura. Mal ouço o rumor humano. Ó antiga Cíbele, eu vou escorrer na circulação material do teu corpo! Vejo ainda indistintamente a aparência humana, como uma confusão de ideias, de desejos, de desalentos, entre os quais passam, diafanamente, bailando, cadáveres! Mal te vejo, ó mal humano! No meio da vasta felicidade difusa do azul, tu és, apenas, como um fio de sangue! As eflorescências, como vidas esfomeadas, começam a pastar-me! Não é verdade que ainda lá em baixo, no poente, os abutres fazem o inventário do corpo humano? ó matéria, absorve-me! Adeus! para nunca mais, terra infame e augusta! Eu vejo já os astros correrem como lágrimas pela face do céu. Quem chora assim? Eu sinto-me desfeita na vida formidável da terra! ó mundo escuro, de lama e de ouro, que és um astro no infinito — adeus! adeus! — deixo-te herdeiro da minha corda podre!”

Gazeta de Portugal, 23 de Dezembro de 1867


por Eça de Queiroz
Prosas Bárbaras, 1903

A aia

Era uma vez um rei, moço e valente, senhor de um reino abundante em cidades e searas, que partira a batalhar por terras distantes, deixando solitária e triste a sua rainha e um filhinho, que ainda vivia no seu berço, dentro das suas faixas.

A lua cheia que o vira marchar, levado no seu sonho e conquista e de fama, começava a minguar - quando um dos seus cavaleiros apareceu, com as armas rotas, negro do sangue seco e do pó dos caminhos, trazendo a amarga nova de uma batalha perdida e da morte do rei, traspassado por sete lanças entre a flor da sua nobreza, à beira de um grande rio.

A rainha chorou magnificamente o rei. Chorou ainda desoladamente o esposo, que era famoso e alegre. Mas, sobretudo, chorou ansiosamente o pai que assim deixava o filhinho desamparado, no meio de tantos inimigos da sua frágil vida e do reino que seria seu, sem um braço que o defendesse, forte pela força e forte pelo amor.

Desses inimigos o mais temeroso era seu tio, irmão bastardo do rei, homem depravado e bravio, consumido de cobiças grosseiras, desejando só a realeza por causa dos seus tesouros, e que havia anos vivia num castelo sobre os montes, com uma horda de rebeldes, à maneira de um lobo que, de atalaia no seu fojo, espera a presa. Ai! a presa agora era aquela criancinha, rei de mama, senhor de tantas províncias, e que dormia no seu berço com seu guizo de ouro fechado na mão!

Ao lado dele, outro menino dormia noutro berço. Mas este era um escravozinho, filho da bela e robusta escrava que amamentava o príncipe. Ambos tinham nascido na mesma noite de verão. O mesmo seio os criava. Quando a rainha, antes de adormecer, vinha beijar o principezinho, que tinha cabelo louro e fino, beijava também por amor dele o escravozinho, que tinha o cabelo negro e crespo. Os olhos de ambos reluziam como pedras preciosas. Somente, o berço de um era magnífico e de marfim entre brocados - e o berço do outro pobre e de verga. A leal escrava, porém, a ambos cercava de carinho igual, por que se um era o seu filho - o outro o seu rei.

Nascida naquela casa real, ela tinha a paixão, a religião dos seus senhores. Nenhum pranto correra mais sentidamente do que o seu pelo rei morto à beira do grande rio. Pertencia, porém, a uma raça que acredita que a vida da terra se continua no céu. O rei seu amo, decerto, já estaria agora reinando num outro reino, para além das nuvens, abundante também em searas e cidades. O seu cavalo de batalha, as suas armas, os seus pajens tinha subido com ele às alturas. Os seus vassalos que fossem morrendo, prontamente iriam, nesse reino celeste, retornar em torno dele a sua vassalagem. E ela um dia, por seu turno, remontaria num raio de luz a habitar o palácio do seu senhor, e a fiar de novo o linho das suas túnicas, e a acender de novo a caçoleta dos seus perfumes; seria no céu como fora na terra, e feliz na sua servidão.

Todavia, também ele tremia pelo seu pricipezinho! Quantas vezes, com ele pendurado do peito, pensava na sua fragilidade, na sua longa infância, nos anos lentos que correriam antes que ele fosse ao menos do tamanho de uma espada, e naquele tio cruel , de face mais escura que a noite e coração mais escuro que a face, faminto do trono, e espreitando de cima do seu rochedo entre os alfanjes da sua horda! Pobre principezinho da sua alma! Com uma ternura maior o apertava então nos braços. Mas se o seu filho chalrava ao lado - era para ele que seus braços corriam um ardor mais feliz. Esse, na sua indigência, nada tinha a recear da vida. Desgraças, assaltos da sorte má nunca o poderiam deixar mais despido das glórias e bens do mundo do que já estava ali no seu berço, sob o pedaço de linho branco que resguardava a sua nudez. A existência, na verdade, era para ele mais preciosa e digna de ser conservada que a do seu príncipe, porque nenhum dos duros cuidados com que ela enegrece a alma dos senhores roçaria sequer a sua alma livre e simples de escravo. E, como se o amasse mais por aquela humilde ditosa, cobria o seu corpinho gordo de beijos pesados e devoradores - dos beijos que ela fazia ligeiros sobre as mãos do seu príncipe.

No entanto um grande temor enchia o palácio, onde agora reinava uma mulher entre as mulheres. O bastardo, o homem de rapina, que errava no cimo das serras, descera à planície com a sua horda, e já através de casais e aldeias felizes ia deixando um sulco de matança e ruínas. As portas da cidade tinham sido seguras com cadeias mais fortes. Nas atalaias ardiam lumes mais altos. Mas à defesa faltava disciplina viril. Uma roca não governa como uma espada. Toda a nobreza fiel perecera na grande batalha. E a rainha desventurosa apenas sabia correr a cada instante ao berço de seu filhinho e chorar sobre ele a sua fraqueza de viúva. Só a ama leal parecia segura - como se os braços em que estreitava o seu príncipe fossem muralhas de uma cidadela que nenhuma audácia pode transpor.

Ora, uma noite, noite de silêncio e de escuridão, indo ela a adormecer, já despida, no seu catre, entre os seus dous meninos, adivinhou, mais que sentiu, um curto rumor de ferro e de briga, longe, à entrada dos vergéis reais. Embrulhada à pressa num pano atirando os cabelos para trás, escutou ansiosamente. Na terra areada, entre os jasmineiros, corriam passos pesados e rudes. Depois houve um gemido, um corpo tombando molemente, sobre lajes, como um fardo. Descerrou violentamente a cortina. E além, ao fundo da galeria, avistou homens, um clarão de lanternas, brilhos de armas... Num relance tudo compreendeu - o palácio surpreendido, o bastardo cruel vindo roubar, matar o seu príncipe! Então, rapidamente, sem uma vacilação, uma dúvida, arrebatou o príncipe do seu berço de marfim, atirou-o para o pobre berço de verga - e tirando o seu filho do berço servil, entre beijos desesperados, deitou-o no berço real que cobriu com um brocado.

Bruscamente um homem enorme, de face flamejante, com um manto negro sobe a cota de malha, surgiu à porta da câmara, entre outros, que erguiam lanternas. Olhou - correu ao berço de marfim onde os brocados luziam, arrancou a criança, como se arranca uma bolsa de ouro, e abafando os seus gritos no manto, abalou furiosamente.

O príncipe dormia no seu novo berço. A ama ficara imóvel no silêncio e na treva.

Mas brados de alarme atroaram de repente o palácio. Pelas janelas perpassou o longo flamejar das tochas. Os pátios ressoavam como bater das armas. E desgrenhada, quase nua, a rainha invadiu a câmara, entre as aias, gritando pelo seu filho! Ao avistar o berço de marfim, com as roupas desmanchadas, vazio, caíu sobre as lajes, num choro, despedaçada. Então calada, muito lenta, muito pálida, a ama descobriu o pobre berço de verga... O príncipe lá estava, quieto, adormecido, num sonho que o fazia sorrir, lhe iluminava toda a face entre os cabelos de ouro. A mãe caiu sobre o berço, com um suspiro, como cai um corpo morto.

E nesse instante um novo clamor abalou a galeria de mármore. Era o capitão das guardas, a sua gente fiel. Nos seus clamores havia, porém, mais tristeza que triunfo. O bastardo morrera! Colhido, ao fugir, entre o palácio e a cidadela, esmagado pela forte legião de arqueiros, sucumbira, ele e vinte da sua horda. O seu corpo lá ficara, com flechas no flanco, numa poça de sangue. Mas, ai! dor sem nome! O corpozinho tenro do príncipe lá ficara também, envolto num manto, já frio, roxo ainda das mãos ferozes que o tinham esganado!... Assim tumultuosamente lançavam a nova cruel os homens de armas - quando a rainha, deslumbrada, com lágrimas entre risos, ergueu nos braços, para lho mostrar, o príncipe que despertara.

Foi um espanto, uma aclamação. Quem o salvara? Quem?... Lá estava junto do berço de marfim vazio, muda e hirta, aquela que o salvara! Serva sublimemente leal! Fora ela que, para conservar a vida ao seu príncipe, mandara à morte o seu filho... Então, só então, a mãe ditosa, emergindo da sua alegria extática, abraçou apaixonadamente a mãe dolorosa, e a beijou, e lhe chamou irmã do seu coração... E dentre aquela multidão que se apertava na galeria veio uma nova, ardente aclamação, com súplicas de que fosse recompensada, magnificamente, a serva admirável que salvara o rei e o reino.

Mas como? Que bolsas de ouro podem pagar um filho? Então um velho de casta nobre lembrou que ela fosse levada ao tesouro real, e escolhesse dentre essas riquezas, que eram como as maiores dos maiores tesouros da índia, todas as que o seu desejo apetecesse...

A rainha tomou a mão da serva. E sem que a sua face de mármore perdesse rigidez, com um andar de morta, como num sonho, ela foi assim conduzida para a Câmara dos Tesouros. Senhores, aias, homens de armas, seguiam num respeito tão comovido que apenas se ouvia o roçar das sandálias nas lajes. As espessas portas do Tesouro rodaram lentamente. E, quando um servo destrancou as janelas, a luz da madrugada, já clara e rósea, entrando pelos gradeamentos de ferro, acendeu um maravilhoso e faiscante incêndio de ouro e pedrarias! Do chão de rocha até às sombrias abóbadas, por toda a câmara, reluziam, cintilavam refulgiam os escudos de ouro, as armas marchetadas, os montões de diamantes, as pilhas de moedas, os longos fios de pérolas, todas as riquezas daquele reino, acumuladas por cem reis durante vinte séculos. Um longo ah, lento e maravilhado, passou por sobre a turba que emudecera. Depois houve um silêncio, ansioso. E no meio da câmara, envolta na refulgência preciosa, a ama não se movia... Apenas os seus olhos, brilhantes e secos, se tinham erguido para aquele céu que, além das grades, se tingia de rosa e de ouro. Era lá, nesse céu fresco de madrugada, que estava agora o seu menino. Estava lá, e já o sol se erguia, e era tarde, e o seu menino chorava decerto, e procurava o seu peito!... Então a ama sorriu e estendeu a mão. Todos seguiam, sem respirar, aquele lento mover da sua mão aberta. Que jóia maravilhosa, que fio de diamantes, que punhado de rubis, ia ela escolher?

A ama estendia a mão - e sobre um escabelo ao lado, entre um molho de armas, agarrou um punhal. Era um punhal de um velho rei, todo cravejado de esmeraldas, e que valia uma província.

Agarrara o punhal, e com ele apertado fortemente na mão, apontando para o céu, onde subiam os primeiros raios do sol, encarou a rainha, a multidão, e gritou:

- Salvei o meu príncipe, e agora - vou dar de mamar ao meu filho!

E cravou o punhal no coração.


O espectro

— Olhe cá, ouça!

Quando falou assim a voz que o chamava, estava de pé, à porta de sua casinha, empunhando a bandeirola, que conservava enrolada no pauzinho que desempenhava as funções de haste.

Era tal a configuração do terreno que não parecia possível que pudesse ter dúvida sobre a procedência da minha voz. Contudo o homem, longe de erguer os olhos para o lugar em que me achava, à borda da trincheira, precisamente sobre a sua cabeça, deu meia volta e olhou em direção à vila.

— Olhe cá, ouça!

Só então deixou de esquadrinhar a linha. Girou de novo sobre os calcanhares e deitando a cabeça para trás distinguiu-me por cima do seu observatório.

— Há algum caminho que me permita descer até aí para travarmos conversação um pouco mais de perto?

Houve uma pausa, então. O homem examinava-me com profunda atenção. Por fim, apontou-me com a bandeirola um ponto situado a duzentas ou trezentas toesas à esquerda.

— “All right!” Muito bem! — exclamei.

E dirigi-me ao lugar indicado. Lá, depois de muito olhar em torno de mim, descobri um estreito caminho, toscamente talhado em ziguezague e comecei a segui-lo.

A trincheira era funda em extremo. Estava talhada a pique sobre um bloco de pedra e, à medida que se descia, diminuía a consistência da pedra, ao passo que a umidade aumentava proporcionalmente. Vi-me obrigado a serpentear. Durante minhas voltas e reviravoltas não me saíam da memória o jeito indeciso e a rara timidez que havia notado no pobre homem quando se decidiu a indicar-me o caminho.

Concluídos os rodeios, tornei a contemplá-lo da vertente e pude observar que permanecia na via que dera passagem ao último comboio. Sua atitude permitia afirmar que estava à minha espera.

Encostava o queixo na palma da mão esquerda, enquanto o braço correspondente procurava apoio no direito que tinha cruzado ao peito; e era tão singular a sua expectativa, refletia tanta ansiedade que parei por um pouco, cheio de surpresa.

Continuei descendo até chegar ao terrapleno e então pude contemplar, à vontade, a cútis morena, a barba negra e as sobrancelhas espessas da minha estranha personagem.

Sua casita ocupava o lugar mais solitário e triste da via férrea. De cada um dos lados erguia-se um muro pedregoso que vertia água e impedia o olhar de espraiar-se pela imensidade do céu, de que só se distinguia uma faixa estreita.

E não eram mais alegres as perspectivas da estrada. De um lado via-se a prolongação tortuosa desse grande cárcere; de outro, ainda mais limitado, o que atraía os olhares era uma luz de vermelho sinistro, situada sobre a abertura de um túnel sombrio, cuja estrutura maciça oferecia um aspecto grosseiro e repulsivo. Os raios solares ali chegavam minguados e amortecidos; respirava-se um cheiro subterrâneo. Um vento fúnebre que me gelou o sangue nas veias soprava daquela boca escura... Estremeci. Apossou-se de mim a idéia de que já não estava no mundo dos vivos.

O interpelado permanecia fixo no mesmo lugar. Cheguei-lhe ao lado; consegui tocar-lhe; mas perseverou indefinidamente na sua primitiva imobilidade. Enquanto não parei, permaneceu quieto em seu lugar. Depois, retrocedeu um passo e levantou a mão; mas não tinha deixado um só instante de assestar nos meus olhos o olhar desvairado dos seus.

— É bem solitário este posto — disse-lhe eu. — Já lá de cima, quando o descobri, foi o que me pareceu. Poucas visitas terá por aqui, não é verdade? mas nem por isso elas lhe serão desagradáveis... Pelo menos, é o que me parece! Sou um sujeito cuja vida decorre entre horizontes bem limitados. Por fim consegui alcançar a liberdade e minha curiosidade arrasta-me, apaixonadamente, ao exame cuidadoso das grandes construções ferroviárias. Tais investigações, inteiramente novas para mim, satisfarão minha ignorância com a maior precisão.

Disse-lhe aproximadamente essas palavras. Estou longe de reproduzi-las com absoluta fidelidade. Nunca fui muito forte na arte de entabular conversações e nessa ocasião, menos do que nunca, pois o interpelado tinha certa expressão pouco tranqüilizadora, que me infundia medo.

Voltou-se, para registrar, com exagerada solicitude o lugar em que permanecia fixa a luz vermelha que só alumiava as proximidades do túnel, como se fizesse pouco caso dos outros objetos naquelas ermas paragens.

Por fim, dirigiu-me novamente o olhar.

— Está também a seu cargo a vigilância e cuidado desse sinal? — perguntei-lhe.

Respondeu, em voz calma:

— O quê! Pois não sabia?

Era tão insistente a fixidez do seu olhar e tão intensa a sombra que lhe escurecia o rosto, que me cruzou pela mente uma suspeita singular.

Devia considerar como a um homem aquele ser que estava diante de mim? Não seria um fantasma? Mais tarde pensei que devia sentir-me contagiado pelo seu aspecto. Coube-me então a vez de retroceder um passo. Isso provocou no desgraçado os sinais mais inequívocos de terror. Eu lhe metia medo. Esta descoberta pôs fim às minhas suspeitas extravagantes.

— O senhor me olha — disse-lhe com um sorriso forçado — como se eu lhe fizesse medo.
— Parece-me que já o vi antes.
— Onde?

Indicou com a vista a luz vermelha.

— Ali? — perguntei-lhe.
— Sim — respondeu num gesto mudo de assentimento e sem tirar de mim os olhos ansiosos.
— Mas, bom homem, que é que eu poderia ir fazer ali? Ainda que isso fosse possível, creia que isso nunca me ocorreu e que nunca, em toda minha vida, pus os pés naquele lugar. Posso jurá-lo — disse; — estou bem certo disso e posso jurá-lo.

Por fim, pareceu que estas palavras tinham desfeito o gelo entre nós.

Daí em diante, respondeu com desembaraço às minhas perguntas.

Fez-me entrar na sua casinha, onde tinha um fogão, uma estante para o registro do serviço, um livro em que se estampava determinadas observações e um aparelho telegráfico composto de um mostrador com setas indicadoras e uma campainha de chamada.

O digno e excelente homem ter-me-ia merecido o conceito de empregado competentíssimo nas suas funções se não tivesse suspendido por duas vezes suas respostas, empalidecendo, para olhar para a campainha (que, no entanto, permanecia muda, nesses momentos), e não tivesse aberto a porta de sua vivenda (fechada unicamente para evitar a insalubre umidade), desejoso de olhar de fora a chama vermelha da entrada do túnel.

De ambas as vezes acompanhou o seu regresso para junto do fogão com aquele gesto inexplicável que lhe havia observado, sem poder defini-lo, quando nos olhamos a distância, eu, das minhas alturas, ele, das suas profundidades.

— Alegro-me de acreditar — disse-lhe, ao levantar-me para partir — que encontrei aqui um homem satisfeito com a sua sorte.

Era intenção minha induzi-lo a fazer-me qualquer comunicação.

— Sim, realmente, foi assim em outros tempos — respondeu — mas agora — acrescentou com essa voz apagada que havia empregado antes — estou inquieto, senhor: a inquietação me devora.

Teria querido, talvez retirar as suas palavras, mas já era impossível. Estavam irremissivelmente pronunciadas.

Aproveitei-me delas imediatamente.

— Por quê? Qual a causa da sua inquietação?
— É muito difícil explicá-la, cavalheiro; custa-me indizivelmente falar deste assunto. Se o senhor tornar a visitar-me de novo, tentarei expandir-me.
— Acredito! Desejo vivamente voltar. Quando quer que eu apareça?
— Abandono este posto muito cedo, mas às dez horas da noite estarei de volta.
— Virei amanhã às onze.

Agradeceu-me e acompanhou-me até à porta.

— Porei à vista a minha luz branca — disse-me surdamente, conforme o seu costume — até que o senhor acerte com o caminho. Quando o encontrar, não grite, e ao regressar, quando se encontre no ressalto da trincheira, não o faça também.

As maneiras e o som da sua voz pareciam-me aumentar o aspecto glacial daquele lugar. Limitei-me a responder-lhe:

— Muito bem.
— Não se esqueça — continuou. — Quando vier amanhã à noite, não há necessidade de fazer barulho. Permita-me uma pergunta, para terminar. Por que gritou esta noite: “Olhe cá, ouça!”.
— Garanto-lhe que não sei. Mas, realmente, disse algo parecido com isso.
— Algo parecido, não, foi isso que disse. Conheço perfeitamente esse modo de chamar.
— Oh! não digo que não. Fiz assim simplesmente porque o avistava aqui no fundo.
— Só por esse motivo?
— Que outro poderia ser?
— Não lhe pareceu que alguém lhe ditava essas palavras: que obedecia, de certo modo, a uma influência sobrenatural?
— Não.

Deu-me boa noite e foi-me alumiando o caminho com a lanterna. Continuei andando ao longo da via férrea, fora dos trilhos, sob o peso de uma impressão desagradável. Parecia que tinha um comboio ao meu encalço... Achei finalmente o caminho. Foi-me fácil a subida e acabei por chegar à minha hospedaria, sem nenhum embaraço.

Veio a noite seguinte. Fiel à minha entrevista, punha o pé no primeiro degrau da encosta em ziguezague, ao bater das onze, que se ouvia ao longe.

O homem se achava ao pé da trincheira, espreitando a minha chegada com o seu farol branco ao alto.

— Não murmurei meia palavra — disse, ao chegar junto dele. — Posso falar agora?
— Sem dúvida, cavalheiro!
— Pois então boa noite. Venha de lá um aperto de mão.
— Boa noite, senhor. Aí vai.

Depois do cumprimento, dirigimo-nos, caminhando um ao lado do outro, para a casinhola. Entramos e sentamo-nos junto ao fogo.

— Não vou permitir que se incomode, cavalheiro (começou a dizer, inclinando-se e com voz imperceptível como um suspiro), perguntando-me novamente o motivo do meu desassossego. Ontem à tarde confundi-o com outra pessoa. Era esse o motivo da minha inquietação.

— Aborrece-o esse engano?
— Não é que o senhor me perturbe. O outro é que..
— Quem é esse outro?
— Não sei.
— Parece-se comigo?
— Também não sei. Nunca lhe vi o rosto. Esconde-o com o braço esquerdo, enquanto move rapidamente o direito, assim; veja.

Reparei na sua pantomima muda. Era uma série de gestos descompostos, que queria exprimir, de um modo veemente, convulsivo e apenas com um braço, esta frase: “Pelo amor de Deus! Saia do caminho!”

— Numa noite de luar — acrescentou o homem eu estava aqui, no lugar em que o senhor está agora, quando ouvi uma voz gritando: — Olhe cá, ouça! — Corri para fora. O outro estava de pé, junto ao sinal vermelho, gesticulando como lhe mostrei ainda agora. Estava rouco à força de gritar: Olhe, cuidado, cuidado! Não se calava nem por um segundo. Repetia sem descanso: Olhe, cuidado, cuidado! — agarrei o farol e corri para o homem, perguntando-lhe: — Que aconteceu? É um aviso ou um acidente? Em que lugar? — Parei a dez passos da entrada do túnel; fiquei tão perto dele que percebi, assombrado, que o desconhecido escondia o rosto com o braço esquerdo. Segui direito para ele, estendi a mão para descobrir-lhe o rosto; mas de repente, antes que o conseguisse, desapareceu.
— Pelo túnel? — perguntei.
— Não senhor. Percorri-o em toda a sua extensão de quinhentos metros; parei; levantei o farol em todas as direções; vi perfeitamente os números das cotas do nível e as indicações quilométricas escritas na parede. A umidade deslizava como azeite ao longo das pedras e gotejava pela abóbada; mas, nem sombra de ser humano! Voltei, então, sobre meus passos, mais rapidamente que na ida, porque me inspiravam horror mortal esses lugares. Depois de ter revistado minuciosamente os arredores da luz vermelha, sem abandonar um minuto o meu farol regulamentar, subi até o sinal. Nada! Desci de novo e fui telegrafar. Fi-lo por duas vezes. — Alarma. Que está acontecendo? — E de ambas as vezes me transmitiram a resposta costumeira: — Sem novidade.

Enquanto o guarda-chaves falava, parecia-me que um dedo gelado me percorria lentamente a espinha. Resisti quanto pude a essa sensação, esforçando-me por dar a entender ao infeliz que semelhante aparição fora o resultado de uma ilusão de ótica e que aquele grito imaginário podia bem ter sido causado pelo ruído do ar ao chicotear os fios do telégrafo ou ao chocar-se com as altas paredes, arrancando ao silêncio da noite as suas notas lúgubres de harpa eólia.

Deixou-me acabar, movendo a cabeça, mas sem dar sinais de impaciência.

Depois, ao cabo de alguns instantes, observou-me que conhecia perfeitamente o ruído dos fios vibrados pelo impulso do vento. Ninguém era como ele tão capaz de distingui-lo, pois tinha passado ali, sozinho, em vigília, muitas, muitíssimas intermináveis noites de inverno.

Disse-me, além disso, que não tinha acabado ainda sua narração.

Pedi-lhe que me perdoasse a interrupção; e ele, então apoiando suavemente a mão no meu braço esquerdo, prosseguiu lentamente:

— Seis horas depois da aparição ocorreu um desastre memorável na via; e, ao cabo de outras duas, retiraram os mortos e feridos do túnel, depositando-os no mesmo lugar em que tinha visto o fantasma.

Estremeci, da cabeça aos pés. Contudo, consegui dominar-me.

— Certamente — disse-lhe — não há dúvida de que houve uma coincidência notável, capaz de impressionar profundamente a sua imaginação. Mas é igualmente exato, que muito freqüentemente ocorrem casos parecidos.

Observou-me novamente que ainda não terminara.

— O que lhe contei — prosseguiu pondo-me outra vez a mão no braço e dirigindo-me por cima do ombro um olhar insistente — ocorreu há um ano já. Seis ou sete meses depois, quando não havia voltado a mim ainda da minha surpresa, nem me achava reposto da passada emoção, uma madrugada, ao amanhecer, achando-me no interior da minha barraca, olhando para a luz vermelha, tornei a ver o espectro.

Guardou silêncio por um pouco e cravou em mim o seu olhar.

— Vamos a ver, ocorreu algum outro acidente depois dessa ressurreição?

Tocou-me várias vezes com a ponta dos dedos, movendo sempre a cabeça com uma lentidão de espectro que me gelava o sangue nas veias.

— Naquele mesmo dia, cavalheiro — continuou — à passagem de um trem que saía do túnel, observei num compartimento movimentos descompostos de mãos, de cabeças... numa palavra, uma agitação extraordinária. Dei sinal de parada; o maquinista deu imediatamente contravapor e apertou os freios; o trem, contudo, andou ainda cem ou cento e cinqüenta metros. Deitei a correr e ouvi, efetivamente, gemidos e lamentos desesperados. Uma linda mulher tinha sido assassinada num vagão. Trouxeram-na ao meu posto e deixaram-na aqui onde conversamos agora.

Involuntariamente, puxei minha cadeira para trás e não tirei dele os olhos.

— Cavalheiro, esta é a pura verdade. Conto-lhe o acontecimento com toda a precisão.

Já não conseguia falar nem pensar. Fora, o vento e os fios do telégrafo ajuntavam ao horror da narração o acompanhamento de sua voz lastimosa e prolongada. E o homem concluiu:

— Julgue o senhor se posso ter ânimo sereno; há uma semana reapareceu a visão e, de então para cá, não deixou de apresentar-se diante dos meus olhos, de quando em quando.
— Na luz vermelha?
— Sim, no sinal de perigo.
— E o que faz ali?
— Mais veementemente ainda, se é possível, repete os gestos de angústia, como que dizendo: Pelo amor de Deus, saia do caminho.
— Já conhece agora — acrescentou — a causa do meu desassossego. Não tenho trégua nem descanso. O desconhecido me chama por vários minutos consecutivos, empregando sempre o seu grito desesperado: Ouça cá, cuidado! — Agita o braço e dá alarma com a campainha...

Ao ouvir estas palavras, interrompi-o:

— Diga-me o senhor se a campainha tocou ontem à tarde, quando me aproximava daqui, à hora em que o senhor saiu.
— Duas vezes.
— Duas vezes? — repliquei. — Isso prova o quanto a sua imaginação está desorientada. Eu era todo olhos e ouvidos; pois bem, tão certo como eu estar vivo, a campainha não tocou essas duas vezes. Não, nem tocou dessa vez nem das anteriores, está claro que toca, mas quando se comunicam com o senhor dos postos vizinhos.

Meneou a cabeça.

— Não me engano nisso, cavalheiro — replicou. — Nunca confundi a chamada do fantasma com a de meus companheiros. A vibração daquela é especial, não se transmite pelos fios. Não digo que ele toque a campainha; mas que soa, não há dúvida. Não há nada de singular em que o senhor não a tenha ouvido. Eu, por minha parte, ouvia-a exatamente como a ouço sempre: muito bem.
— E quando saiu para fora, viu a aparição?
— Vi.
— As duas vezes?
— As duas — afirmou, com plena convicção.
— Quer sair comigo e olhar agora?

Mordeu os lábios, mas levantou-se.

Abri a porta, detendo-me um momento no limiar. Meu interlocutor ficou a alguma distância. Tudo permanecia no seu respectivo lugar: a luz do sinal, a abóbada do túnel, a parte enorme impregnada de umidade... tudo permanecia o mesmo, à luz das estrelas. — Vê qualquer coisa de anormal? — perguntei, fixando-lhe atentamente o rosto. — Tinha os olhos muito abertos, talvez não tanto como os meus, que ergui, ao mesmo tempo que ele, na direção temida.
— Não — respondeu — não vejo nada.
— Bem — disse eu. — Estamos de acordo!

Entramos novamente e tomamos lugar junto ao fogo. Pensava eu em como tirar melhor partido do bom êxito obtido, se assim podia chamar-se o resultado negativo de nossa inspeção ocular, quando o nosso homem reatou a sua narrativa no mesmo ponto em que a havia interrompido, convindo na afirmação de que os fatos repetidos, objeto de nossa narrativa, não podiam seriamente constituir base para um alarma. Foi um novo embaraço para mim.

— Isso aumenta, cavalheiro, a espantosa confusão em que me acho. Não cesso de perguntar-me: o que quererá anunciar o fantasma?
— Não sei — disse — se compreende claramente...
— Contra que risco vou prevenir-me? — continuou dizendo com ar pensativo, cravando o olhar ora no fogão, ora em mim. — Que perigo está ameaçando? Onde acontecerá? Porque, sem dúvida nenhuma, está-se aproximando da linha um perigo qualquer. Uma terceira desgraça nos ameaça... quem poderá negá-lo, dados os precedentes dos fatos anteriores! Assim, ao que parece, o senhor me julga meio doido! Posso, acaso, evitá-lo? Que devo resolver? Que fazer?

Tirou o lenço e enxugou o suor da fronte.

— Se telegrafo para baixo ou para cima, ou em ambos os sentidos, que fundamento posso alegar? acrescentou, enxugando as palmas das mãos como tinha enxugado a fronte momentos antes. — Só criarei confusão, a mesma que experimento eu, sem vantagem nenhuma em favor do próximo. E hão de julgar-me louco... Veja o senhor! dar-se-ia o seguinte. Telegrama: “Perigo, atenção.” Resposta: “Que perigo? Onde?” Telegrama: “Não sei; mas pelo amor de Deus, estejam de sobreaviso.” Despedir-me-iam do emprego. Poderia suceder outra coisa?

Causava dó a agitação do infeliz. Ao vê-lo assim entendi que, por uma questão de caridade e por assim o exigir a segurança do público, o que havia a fazer, em primeiro lugar, era acalmar o pobre homem. Deixando, pois, para outra ocasião discutirmos se era real ou ilusória essa necessidade, procurei persuadi-lo de que todo empregado fiel e perito no cumprimento de seus deveres procede sempre corretamente e que, tendo ele perfeita consciência de sua obrigação, devia ficar tranqüilo e sem inquietar-se pelo inexplicável das aparições. Minha tática deu melhor resultado que a oposição às suas supersticiosas convicções. Acalmei-o. As exigências do serviço e os incidentes próprios de tais ocasiões reclamavam-lhe todo cuidado. Eram duas horas da madrugada. Deixei-o então, não sem haver-me oferecido antes para ficar em sua companhia até o amanhecer, mas ele não consentiu nisso.

No dia seguinte, estava tão linda a tarde que me apressei a sair, depois do jantar, para aproveitar-lhe a beleza. Ia caindo o sol quando tomei o caminho que, através dos campos, levava até à encosta que dava acesso à via férrea. “É questão de mais uma hora”, pensei. “Em trinta minutos chegarei até ali e em outros trinta terei regressado do meu passeio, que não terá durando grande coisa. Conto falar com o meu guarda-chaves no momento mais propício.”

Antes de terminar o meu caminho, assomei ao parapeito da trincheira e olhei maquinalmente para o fundo, exatamente no mesmo lugar em que interpelei, pela primeira vez, tão estranha personagem. Como descrever o sentimento de horror que me petrificou ao observar que um ser homem ou fantasma, colocado rente à entrada do túnel, agitava vivamente o braço direito, enquanto com o esquerdo escondia o rosto! O indizível espanto que esta visão me produziu durou um momento só; pois não demorei em ver que não era ilusão nenhuma, como o dava a entender um grupo de indivíduos, aos quais se dirigia a personagem que primeiro avistei; esta, naturalmente, com os seus gestos, pretendia explicar-lhes o acontecido. Ainda não se percebia o luzir vermelho do sinal. Divisava vagamente do lado do poste uma espécie de barriquinha construída com espeques de madeira e uma tela de lona embreada. O seu vulto não era maior que uma cama pequena.

O rápido pressentimento de uma desgraça cruzou-me pela mente. Corri para a vereda em ziguezague e desci por ela, com toda a precipitação que pude.

— Que aconteceu? — perguntei.
— Um guarda-chaves, cavalheiro, que foi morto esta manhã.
— Não será o desta casinha?
— Sim, senhor.
— Aquele que eu conhecia?
— Fácil lhe será reconhecê-lo — disse o homem que respondia às minhas perguntas.

Tirou gravemente o chapéu e levantando uma ponta da tela:

— Não está desfigurado — acrescentou.
— Deus meu! Mas como aconteceu a desgraça? Que se passou aqui? — Repeti, indo de um lado para outro, apenas caiu o negro sudário.
— Cavalheiro, a máquina o feriu. Ninguém conhecia nem desempenhava melhor suas obrigações; mas hoje, sabe-se lá por quê? não soube acautelar-se. Era já dia claro; trazia ainda o farol aceso. Um trem saía do túnel; o guarda estava ali, de costas. Foi derrubado. É este o maquinista. Ele lhe dirá o que aconteceu, com todos os pormenores... — Tom, dê a este cavalheiro todos os detalhes...

O maquinista, foi até a boca do túnel.

— Vou explicar-lhe como se passou, cavalheiro. Da curva que faz a via, ali dentro, vi o guarda-chaves junto à saída como se vê um homem por um binóculo. Não havia tempo para apertar os freios; mas não me inquietei por isso. Tive-o sempre por homem cauteloso. Contudo, como me pareceu que não o preocupava o silvo da locomotiva, soltei vapor... Estávamos já em cima dele... Chamei-o com toda a força dos pulmões.
— Que foi que o senhor disse?
— Gritei: “Olha lá! Oh! Oh! Fuja, fuja! Saia da linha!”

Estremeci.

— Ah, senhor! Foi um rude transe! Não parei de chamá-lo. Ocultei o rosto com este braço e nem um momento deixei de agitar nervosamente o outro. Nada consegui!

Assim terminou, com essa morte trágica, tão extraordinária aventura, cujo mistério jamais consegui decifrar.


Pouco amor não é amor

Nem Balbino, nem Arlete confessariam o seguinte: — o amor de ambos nascera no cemitério.

A menina acompanhava o enterro da avó. E o rapaz, que não conhecia a morta, nem a neta, estaria interessado em outro defunto. Parou um momento para espiar a sepultura aberta e o caixão que chegava. E viu Arlete, à beira do túmulo, assoando-se no lencinho amarrotado. Ela adorava a avó e estava fora de si.

Fazia um sol brutal — a luz era uma agressão. Balbino postou-se logo atrás da pequena e, sem querer, adotou uma tristeza de falso parente, de falso conhecido. Pouco depois, estava ao lado da moça. Tudo o interessou em Arlete, inclusive a coriza. E foi aí que começou o flerte.

Na saída do cemitério, Balbino juntou-se ao grupo de familiares, de amigos. Pararam todos, na porta, para as despedidas. Ninguém ali conhecia aquele rapaz fino, educado, que cumprimentava os presentes, um por um. Esquecia-me de dizer que o rapaz estava de luto, não sei por quem.

Ao apertar a mão da menina, deixou-lhe um papelzinho. Ela, ainda chorosa, teve um movimento de espanto, quase de susto.

Ele diz entredentes:

— Meu telefone.

Arlete, meio desconcertada, ia dizer qualquer coisa. Mas já o rapaz se afastava, em passadas largas, como se fugisse. Pois bem: — a pequena (jeitosa de corpo e de rosto) tomou um táxi, com o pai, a mãe e o tio. Fez a viagem para casa com aquilo na cabeça. Chega, diz que vai ao banheiro, e lá, com um sentimento de culpa, olha o número: — prefixo 29.

Parecia-lhe uma falta de respeito a atitude de Balbino. Pensava: — “Num enterro, ora veja!”. Podia ter jogado fora ou rasgado o papelzinho. Mas guardou, sei lá por quê. Decidiu, porém: — Não telefono.

Até o fim do dia, ora chorava pela avó, ora pensava em Balbino. Deitou-se cedo, mas só conseguiu pegar no sono alta madrugada. De manhã, bem cedinho, estava de pé. Escovou os dentes, lavou o rosto, imaginando: — “O telefone não deve ser do trabalho, deve ser de casa”. Durante uns dez minutos ficou matutando. Valeria a pena ou não?

Finalmente, com o coração batendo mais forte, discou. Atende uma voz de homem. Começa:

— Foi o senhor que.

Não teve nem tempo de completar. Ele se antecipou, radiante:

— Já sei, já sei! É aquela senhorinha de ontem. Muito prazer.

Nervosa, atalha:

— O senhor fez aquilo. Um momento. Fez aquilo em hora e local impróprios. Afinal, o senhor não tinha o direito!

Estava ofegante, quase chorando. Do outro lado da linha, ele se desmanchava:

— Tem toda a razão. Está ouvindo? Toda a razão. Mas não me interprete mal. Com licença. Um minutinho só. Eu seria incapaz de, entende? O que senti por si foi uma forte simpatia. Pelo amor de Deus, não pense que...

Parou. Ela não sabia o que dizer, o que pensar. E o rapaz, mais seguro, continuou:

— Viu como foi bom eu ter lhe dado o meu telefone? A senhorinha...

Preferia “senhorinha” a “senhorita”. Podia chamá-la de você, mas uma certa cerimônia, no começo, ajuda. Continuou, com a boca no fone, sentindo que o romance estava nascendo:

— Lhe dei o meu telefone e vou ter a satisfação de saber o seu nome. O meu é Balbino. — E disse, por extenso: — José Marcondes Balbino. Por obséquio, sua graça?

Arlete vacilou. Teve medo de confiar a sua identidade a um desconhecido. Mas refletiu que um nome é pouco, quase nada e que há muitas Arletes por aí. Disse, não sei por quê, comovida:

— Arlete.

O outro repetiu:

— Arlete.

E ela:

— Desiludido?

Exagerou:

— Lindo, lindo. — E insistia: — Bonito nome! Dou-lhe a minha palavra!

Ele não parou mais. Ora a chamava de senhorinha, ora de você ou, ainda, de meu anjo. Contou que era baiano e acrescentou, feliz:

— Por isso é que falo muito.

Como a menina insistisse em tratá-lo por senhor, Balbino arrisca:

— Seria muito sacrifício para você me chamar de você?

Arlete concordou. Era muito meiga e tinha uma facilidade espantosa para se afeiçoar por gente, bichos, móveis. Conversaram cerca de uma hora. Quando saiu do telefone, a mãe passou-lhe um pito:

— Tua avó foi enterrada ontem e você já está namorando?

Começou a chorar:

— A senhora faz essa idéia de mim? Oh, mamãe? Nunca pensei.

Explicou que era um rapaz que acabava de conhecer. Dizia que:

— Não há nada, mamãe. Quer que eu jure?

Mas já conhecia toda a vida de Balbino. Tinha vinte e oito anos, era advogado (embora não exercesse a profissão) e vinha tentar a vida no Rio. No dia seguinte, foi ele que ligou. No fim de dez minutos de conversa, a menina não se conteve:

— Você que fala tão bem... Sabe que você fala bem pra chu¬chu? Por que você não segue carreira?

Tentou explicar:

— Minha filha, o negócio não é assim, não. O advogado não tem outra saída. Ou é um Clóvis Beviláqua, ou uma besta. Já que não sou um Clóvis Beviláqua, também não quero ser uma besta.

Ela ainda suspirou:

— Uma carreira tão bonita!

Balbino vacila e acaba dizendo:

— Olha. Há outro motivo, compreendeu? O seguinte: — minha vocação é outra.

— Qual?

Fez um mistério:

— Você saberá um dia. Não se incomode.

Os telefonemas diários continuaram. Na missa do sétimo dia, lá compareceu o Balbino. Não sendo parente, não sendo nada, era o mais grave talvez e, ainda por cima, num luto total. Terminada a missa, Arlete fez a apresentação:

— Papai, aquele rapaz que lhe falei.

O velho teve a exclamação:

— Ah, o advogado?

Passou. Dois dias depois, Arlete falava no telefone. E, súbito, o pai arranca o aparelho das mãos da pequena: — “Deixa que eu falo”. Disse tudo:

— Ó rapaz! Escuta. Eu sou contra namoro de esquina, de portão. Namoro é dentro de casa. Você não tem boas intenções? O quê? Suas intenções não são boas?

— Claro, claro!

— Então vem pra cá, rapaz! Eu te espero pra tomar um café contigo.

O velho quando gostava de uma pessoa era de uma efusão brutal. Mais tarde, aparece Balbino, ressabiado. A cordialidade feroz do velho o assustava. Mas o dono da casa o recebeu de braços abertos. O convívio com as Novas Gerações o rejuvenescia. Fez perguntas:

— O amigo exerce a profissão?

Meio sem jeito, explicou:

— É o seguinte: — estou desiludido com os colegas. Por exemplo: — na Procuradoria do Estado conheço vários que nem sabem o que é vara. Parece piada, mas juro e posso até citar nomes. Um procurador que não sabe o que é vara!

O velho achou graça:

— Vejo que o amigo gosta de paradoxo. Mas há talento. Você se esquece do Otto Lara Resende? É uma mentalidade! E brilhante!

Balbino, grave, admitiu uma exceção para o Otto, que, segundo concordou, falava bem “pra burro”. A conversa durou até alta madrugada. Na saída, o futuro sogro bateu-lhe nas costas:

— Venha sempre, rapaz!

A partir de então, todos os dias, Balbino ia para a casa da namorada. Começou a ser apresentado como “meu noivo”. E toda a rua sabia que Arlete estava de amores com um advogado.

Uma noite, a sogra vira-se para Balbino:

— Está de luto por quem?

O rapaz tomou um susto. Ele próprio não sabia. Estava de luto, eis tudo. E teve de confessar, vermelho, confuso:

— Por ninguém. Eu sou assim mesmo.

Foi bastante honesto com a família. Disse que se casaria quando melhorasse de situação. Fez mistério:

— Estou esperando por uma vaga. — E repetiu, baixando a vista: — Uma vaga.

Não se sabia, nem ele disse, que vaga seria essa. Mas os vizinhos, os parentes passaram a falar da “vaga” como de alguém, de uma pessoa. O tempo foi passando. Cinco, seis meses, oito e nada ainda. Já o interpelavam na calçada:

— Mas sai ou não sai essa vaga?

— Estou caprichando.

Até que o pai de Arlete avisou, piscando o olho:

— Estou mexendo também os meus pauzinhos. Tenho relações, amizades. — E baixava a voz: — Vem por aí uma bomba.

Uma tarde, Balbino entra e é abraçado, beijado, apalpado por todo mundo. Olha em torno: — “Mas o que é que há?” O sogro adiantou-se, de olho rútilo:

— Rapaz! Arranjei o teu emprego. E sabe onde? Na Procuradoria! Tu vais ser companheiro do Otto, do Laet, do Genolino. E olha: são Oitocentos pacotes!
Atônito, Balbino olha as caras que o cercavam. Alguém o puxa pelo braço. Desprende-se, num repelão:

— Com licença. Um momento. Meu sogro, há um equívoco. Eu não pedi nada. Eu estava esperando uma vaga e finalmente.

No seu assombro, o velho balbucia:

— Você recusa?

Explicou:

— Um momento. É que a tal vaga saiu, finalmente. Saiu hoje. Recebi esta tarde a comunicação.

O sogro aperta a cabeça entre as mãos:

— Quer dizer que... Então eu banquei o palhaço?

O outro perdeu a paciência:

— Escuta, escuta! Direito não é minha vocação. Entende? Não é minha vocação. Não dou para esse troço, juro. E tenho a minha vocação. Ouviu? Ponho a minha vocação acima de tudo! De tudo!

Esganiçou-se tanto que, afinal, conseguiu intimidar a família. Pausa. Ele arqueja. Um dos presentes pensa: — “Será que ele é epilético?”. O sogro o olhava, amargurado e mudo. Finalmente, o velho quer saber:

— Que vocação é essa? Pra ser melhor do que procurador do Estado, deve ser de rajá, de Rockefeller. Fala!

O genro ergue a fronte, enche o tórax e parece desafiar o mundo:

— Vocação de coveiro. Arranjei a vaga no São João Batista. Coveiro, sim! É a minha vocação. Coveiro!

Houve, ali, um silêncio maravilhado. Os presentes se entreolharam. O primeiro a se recuperar foi o velho. Abotoa Balbino:

— Isso é piada? Responde! É piada?

Berrou também:

— É a minha vocação! Todo mundo tem a sua. Eu também tenho a minha. Se Deus quiser, hei de enterrar muita gente boa.

Ia contar que tivera o primeiro aviso de sua predestinação quando, aos sete anos, enterrara um cachorro atropelado. Mas não teve tempo de nada. O velho passa-lhe, por baixo, um rapa tremendo. Caiu para se levantar e cair novamente. Saiu, de lá, a tapas, a pescoções. A sogra berrava da porta:

— Urubu! Urubu!
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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.