Começou num ônibus de São Gonçalo (RJ). Lá vinha ele sacudindo a carcaça pelos buracos niteroienses, naquele calor da tarde. Os passageiros suados e sonolentos, jogados uns contra os outros, no desagradável contato da promiscuidade dos coletivos.
O soldado da Polícia Militar, Aroldo, era o único passageiro cujo coração pulsava além do indispensável para continuar vivendo até as palpitações de novas esperanças. É que no coração do guarda Aroldo já vivia essa esperança, na figura de Arinete, mulata boa que Deus a conserve no esplendor de tanta saúde. Nome todo: Arinete da Conceição, como convém as mulatas. E lá ia o velho ônibus de São Gonçalo (RJ), castigado pelos buracos niteroienses.
De vez em quando o braço nu de Arinete encostando na farda do Aroldo. Foi quando ela abriu a bolsa para retocar a maquiagem. Ao abri-la o espelhinho preso por dentro revelou lá no fundo a maior 45. Aroldo viu a pistola. Meteu o olho no espelhinho de novo e lá estava o reflexo: a maior 45.
Tinha que cumprir o seu dever e deter a mulata. Ia ser triste, prender aquilo para fins outros que não os que trazia em mente. Mas vem cá: e se prendesse a mulata e depois ficasse amiguinho dela e coisa e tal? Hem? Estava precisando de um pretexto, não estava? Não pensou duas vezes. Deu a voz de prisão e aí foi aquele delírio no Maracanã. Arinete era boa de tudo, inclusive de bronca. Falou que a arma era dela e daí? Que não era bandida não, mas tinha pistola para se defender dos vagabundos.
A plebe ignara em volta, cansada de tanto assalto, que assalto naquela zona é que nem quadro ruim no Museu de Belas-Artes — tem às pampas — a plebe ignara, eu repito, ficou logo a favor do guarda. Arinete da Conceição berrou mais alto: que em carro de radiopatrulha ela fazia um escândalo mas não entrava; que estava quieta no seu canto e ninguém, ouviu?, ninguém podia acusá-la de nada.
Aroldo Soares (o guarda) então propôs: "E se formos de braço dado até a delegacia, como um casal qualquer?" (Palavra de honra, tá aqui no jornal e não me deixa mentir). Arinete topou e assim foi: braço dado e a maior 45 na bolsa. Ao subdelegado Joel Machado, do 12 Distrito de Niterói, explicou que achara a pistola na rua: "E fiquei com ela pra mim pra proteger minha beleza. Graças a Deus nunca precisei usá-la, mas se for preciso eu uso".
O subdelegado explicou que não podia; a arma tinha que ser confiscada e — depois de sindicar — soube que Arinete tem mesmo ficha limpa. É doméstica correta e seus patrões não têm queixa dela. Foi liberada e saiu bamboleando aquilo tudo de mulata, para o seu domicílio.
Ao guarda Aroldo resta a esperança de muito brevemente andar de novo de braço dado com Arinete. Já então ela irá desarmada e o casal não estará caminhando rumo ao distrito. De jeito nenhum. Seu destino é outro, seu destino é outro.
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Por: Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte: FEBEAPÁ 1: primeiro festival de besteira que assola o país / Stanislaw Ponte Preta; prefácio e ilustração de Jaguar. — 12. ed. — Rio de Janeiro; Civilização Brasileira, 1996.