Apanhou uma gripe danada. Contorcia-se nos acessos de tosse. E ela própria chamava o marido:
— Vem cá, Belmiro, vem cá.
Ele largava o jornal e vinha. A mulher pedia:
— Escuta só.
E, de fato, os brônquios de Zuleica só faltavam assoviar. Ela própria, no fim de cada crise, gemia:
— Acho que apanhei algum golpe de ar.
E Belmiro:
— Vou te levar ao médico.
— Médico pra quê, homem de Deus? Sossega!
Tinha
pavor de médicos, acusava-os de exploradores e dizia a todo mundo: “O
meu dinheiro é que eles não levam!”. Argumentava, fazia contas. Belmiro
ganhava pouco, uma miséria; e o dinheiro que ela fazia com a costura não
dava para nada. Discutia com o marido e era irredutível:
— Imagine se a gente for gastar dinheiro com médico e remédio.
Mas
a gripe não a largava. Estava com febre há uma porção de dias, a
respiração curta e suores frios noturnos. O pior de tudo, porém, era a
tosse, que estalava os pulmões e a asfixiava. Parecia até coqueluche.
Tentou um xarope, que lhe recomen¬daram. Não sentiu, porém, melhora
nenhuma. De noite, acordava e sentava-se na cama para tossir. No seu
desespero, chorava:
— Eu morro, meu Deus do céu! Morro!
O PULMÃO
Houve quem sugerisse:
— Por que a senhora não tira uma radiografia?
— E o dinheiro, criatura?
— Tire daquelas pequenininhas!
Zuleica
era teimosa, sempre fora teimosa. Preferia morrer a entregar os pontos.
Mas uma noite, depois de um acesso feroz, sentiu gosto de sangue na
boca. Numa desconfiança, acendeu a luz, passou a língua no lençol e viu a
saliva rósea no pano. Ela, que fingia não dar importância à doença,
tachando-a de “resfriado bobo”, tomou-se de um medo súbito e selvagem.
Lembrou-se de sua tia, irmã de sua mãe, que morrera doente do peito em
Campos do Jordão. Sacudiu o marido, que dormia ao lado, aos gritos de:
— Sangue! Sangue!
Não
dormiu mais, com a idéia fixa de tuberculose. E o gosto de sangue
continuava. Já estava de lenço na cama. Qualquer coisinha, acendia a
luz, e encostava a língua no lenço para ver a mancha cor-de-rosa. No dia
seguinte, pela manhã, decidiu:
— Vamos ao doutor Borborema, agora mesmo.
O marido ainda fez a objeção:
— O doutor Borborema?! Aquele boboca? Mas ele é um errado, minha filha!
— Outro, não! Quero o doutor Borborema!
Belmiro, enfiando-se nos lençóis, fez o comentário:
— Amarra-se o burro à vontade do dono!
Ora,
o dr. Borborema era um velhinho bastante gagá e de eficiência
ultraproblemática. Não curava ninguém, o diabo do homem; e, sem dúvida, a
sua maior virtude consistia nas caronas, o abatimento que conseguiam os
clientes menos favorecidos. Dava consultas num consultório onde a
imundície campeava íngreme; dizia-se até que foram encontrados, lá, não
sei se escorpiões ou lacraias. No caminho, Belmiro, resmungando:
— Um zebu, esse doutor Borborema!
E ela, pirracenta:
— Deixa, não faz mal!
Dentro
do consultório miserável, o velhinho forrou as costas de Zuleica com
uma toalha e fez ausculta. Como um médico do tempo de Dom João Charuto,
com o ouvido nas costas da doente, comandou:
— Diga trinta e três.
E ela:
— Trinta e três.
— Agora tussa.
Tossiu
várias vezes. E a tosse provocada acabou se tornando involuntária e
irresistível; contorcia-se, esteve em risco de se asfixiar. Na parede
estava emoldurado o seguinte dístico: “Enquanto no doente há vida, há
esperança”. Belmiro, impressionado, perguntou:
— Então, doutor?
O velhinho já estava redigindo a receita, com a sua caneta-tinteiro. Sem deixar de escrever, deu sua opinião:
— Isso passa! Isso passa!
Belmiro, com a pulga atrás da orelha, insistiu:
— Nada no pulmão?
— Nada.
E o rapaz:
— O senhor me tirou um peso, doutor.
O médico ainda veio levá-los até a porta. Além de não cobrar nada, ou cobrar pouco, era gentil, educadíssimo.
Com uma dentadura dupla, móvel, ele a deslocava continuamente, a título de distração e vício.
A TRAGÉDIA
Zuleica voltou pior. E agora era ela quem, numa reviravolta inexplicável, malhava o dr. Borborema:
— Um burro! Não entende nada!
— Não foi você quem escolheu, ora essa?
E a moça, cravando as unhas no braço do marido:
— Eu vou morrer, Belmiro! Vou morrer!
— Oh, deixa de bobagem! Morrer coisa nenhuma! Parece criança!
Mas
ela se entregava de corpo e alma à idéia fixa. E isso era mais que um
presságio, era uma convicção, uma certeza inapelável. Sentou-se na
cadeira de balanço na sala, e lá ficou horas a fio, numa meditação sem
fim.
Quando o marido falou em aviar a receita, opôs-se:
— Não quero!
— Não queres por quê? Tem cada uma!
Baixou a voz numa obsessão:
— Porque é jogar dinheiro fora. Porque eu sei que vou morrer...
Belmiro
ainda ligou para uma novela, que ambos ouviam. Ela, na sua tristeza de
condenada, pensou que não poderia seguir as novelas, que escutava em
horas diferentes. Nessa noite, não conseguiu dormir. Primeiro, por causa
da tosse amaldiçoada; depois, porque queria pensar muito nesse mundo,
que em breve ia deixar. E, na vigília, imaginou várias coisas, inclusive
o próprio enterro. Queria que fosse muito bonito, de maneira a
impressionar a rua inteira, sobretudo uma vizinha com quem se
indispusera. Pena que os enterros modernos não fossem como os antigos,
em que os carros fúnebres eram puxados por cavalos brancos empenachados.
Súbito, ocorreu-lhe o problema: — e o dinheiro? Onde, como e quando
Belmiro poderia conseguir o dinheiro para o enterro de luxo? Até o sol
raiar, ela não pensou senão nos meios de que ele poderia lançar mão para
os funerais. Queria que eles fossem espetaculares o bastante para
humilhar a tal vizinha. E tanto pensou que, descobrindo uma solução,
acordou Belmiro. Ele, com um sono danado, virou-se, agressivo,
malcriado. Mas quando a ouviu falar em morte, controlou-se. Então, doce,
persuasiva, Zuleica disse-lhe que queria um enterro bonito. Mas como
sabia que ele não tinha dinheiro, ela sugeria que recorresse a Humberto.
O marido pulou da cama:
— Mas eu nem conheço esse cara! Um sujeito metido a besta, só porque tem dinheiro!
E ela:
— Quando ele souber que é para mim, que é para meu enterro, te dá, Belmiro, paga tudo! Te juro pela minha salvação!
Só então Belmiro teve a suspeita:
— Mas vem cá! Dá dinheiro por quê? Hein? Por quê? O que que esse palhaço é teu?
Não
sei se Zuleica diria ou não. Mas quando ia abrir a boca teve uma
violentíssima hemoptise. Diante do sangue, que vinha em golfadas
medonhas, dissolveram-se os ciúmes de Belmiro. Ele gritou; acudiram os
vizinhos. Deram injeção, cálcio, puseram saco de gelo, mas quem disse
que o sangue estancava? Nas hemoptises sucessivas, Zuleica só pensava na
vizinha antipática e, mais do que nunca, desejou deslumbrá-la com um
grande enterro. Olhava para o marido como se dissesse: “Quero um enterro
de luxo!”. Se pudesse falar teria ampliado seu pedido para uma missa de
sétimo dia, com violino, canto e não sei quantos coroinhas. Acabou não
resistindo; fez um esforço supremo e sussurrou:
— Um enterro... bonito... missa, missa e...
Já
suas unhas estavam roxas, e esse esforço a matou mais depressa. Diante
da morte, Belmiro caiu numa crise violentíssima e teve que ser arrastado
à força do quarto. Meia hora depois, na sala, enquanto cá no quarto se
vestia a morta, ele pensava em Humberto. Era evidente que... Um vizinho
interrompeu o curso de suas reflexões oferecendo-se para tratar do
enterro. Sobressaltou-se:
— Obrigado, fulano. Mas eu mesmo trato disso.
OS FUNERAIS
Foi
bem estranho o que aconteceu. Humberto, que Belmiro mal conhecia de
vista, recebeu-o com certo espanto e, pelo que o outro pôde deduzir, com
certo pânico. Ao receber, porém, a notícia da morte da Zuleica, teve,
ali mesmo, na frente do marido espantado, quase que uma crise de
loucura. E dizia com eloqüência justamente:
— Coitadinha! Coitadinha!
Ainda chorava quando soube dos últimos desejos da morta: o enterro caro e a missa.
Declarou que fazia questão de arcar com todas as despesas. Belmiro, com o máximo de discrição, disse:
— Vou saber quanto é, e volto já.
Na
Santa Casa, a seu pedido, deram o orçamento de dois enterros: o mais
caro e o mais barato. O primeiro fazia um total de quinze contos.
Belmiro encomendou o mais barato, com grande espanto do agente
funerário. Voltou ao escritório de Humberto, de quem recebeu os quinze
contos e mais três para a compra de uma coroa monumental. No dia
seguinte pela manhã saía, da casa de Belmiro, o coche fúnebre, quase de
indigente. A vizinha, que não se dava com Zuleica, estava na janela
quando passou o enterro. Na volta do cemitério, o viúvo já pensava na
missa. Felizmente, Humberto não aparecera, por naturais escrúpulos. E,
assim, Belmiro pôde procurá-lo, dias após, no escritório. Trouxe
dinheiro para uma missa com três padres, cinco coroinhas, canto, violino
etc. etc.
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A
coroa de orquídeas e outros contos de A vida como
ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro.
— São Paulo: Companhia das Letras, 1993.