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sexta-feira, 3 de maio de 2013

O falso defunto

Foi doce o meu encontro com o Varanda. Com esse nome paisagístico, ventilado, é uma grande figura. E como não nos víamos há meses e meses, houve, de parte a parte, uma festa imensa. Eu ria para ele e ele para mim, como se o amigo fosse uma figura extremamente cômica. Súbito, o Varanda pergunta:

— "Tens visto o Burlamaqui?".

Respondo:

— "Morreu".

O Varanda recua dois passos e avança outros dois. "Pálido de espanto", como no soneto, balbucia:

— "Quem morreu?".

Confirmei:

— "O Burlamaqui".

Pulou como o espectro da rosa. Agarrou-me:

— "Não é possível! Não pode ser!".

Houve, ali, dois espantos, o meu e o dele. Teimei:

— "Você não sabia? Morreu, rapaz, morreu!".

Desatinado, o outro dizia:

— "Só se morreu hoje, agora, neste momento!".

Desta feita, o assombrado fui eu. Disse-lhe:

— "Morreu há dois ou três anos. Dois. Dois, não. Três".

Esquecia-me de localizar o nosso encontro, no tempo e no espaço. Foi ontem, na esquina de Sete de Setembro com a Avenida, às quatro da tarde. Ao ouvir falar em "três anos", o Varanda perdeu de vez a paciência:

— "Estás fazendo molecagem comigo!".

Estendi a mão sobre uma Bíblia invisível:

— "Juro".

Varanda substituiu o espanto pelo furor:

— "Deixa de palhaçada!".

E eu, também exaltado, voltei à carga:

— "Rapaz! Eu fui ao enterro do Burlamaqui, mandei-lhe uma coroa, estive na missa! Está-me chamando de mentiroso?".

Em plena calçada, e aos berros, já fazíamos escândalo. Um senhor gordo, de óculos, com esparadrapo na testa, parou e ficou olhando. O Varanda estava quase chorando:

— "Pelo amor de Deus! Escuta! Estive com o Burlamaqui ontem, ontem. Sabe o que é ontem? Paguei-lhe o cafezinho. Tomou cafezinho comigo!".

Era demais. Estou repetindo:

— "Contigo, cafezinho, ontem? E não morreu?".

O Varanda estendia, as duas mãos crispadas:

— "Acredita em mim! Peço. Acredita em mim!".

E então, pela primeira vez, admiti a hipótese de um engano, sim, de um equívoco fatal. Era possível que a morte, o enterro, a missa do Burlamaqui fossem uma falsa lembrança, um sonho talvez da memória. Finalmente, capitulei:

— "Tens razão, tens razão! Eu me enganei. Não foi o Burlamaqui. Foi outro, um cara que tu não conheces".

Tive que inventar, às pressas, um defunto, que justificasse a confusão. Mas eu e ele estávamos exaustos e irritados com o equívoco. Nem o Varanda me reteve, nem eu a ele. Cada qual queria ver o outro pelas costas. E assim nos despedimos.

Pergunto: — como explicar que a memória invente uma morte, um enterro e uma missa? Só muito depois, em casa, entendi tudo.

Não há brasileiro que não tenha, entre suas relações, um "falso defunto". Não estou exagerando. "Falso defunto" é o que a gente pensa que já morreu umas cinco vezes, que já foi enterrado outras tantas. O sujeito imagina que já o viu de pés juntos e algodão nas narinas. No fim, fica provado que ninguém morreu e que se trata de uma pura e irresponsável fantasia da memória. E o Burlamaqui era, justamente, o "falso defunto". Não havia dúvida: — estaria tão vivo quanto eu e o leitor.

Vejam vocês: — no dia seguinte, estou em casa e bate o telefone. Alguém está dizendo:

— "Aqui fala a alma do Burlamaqui".

E, em seguida, veio a gargalhada, forte, tremenda, vital. E eu, rindo também:

— "Ah, como vai essa figura?".

O outro não parava:

— "Então, você me matou? Parei contigo!".

Simplesmente, o Varanda armara toda uma alegre intriga entre nós dois. Rimos muito; perguntei-lhe:

— "Que fim levaste?".

E ele:

— "Moro em Brasília. Estou passando uns dias aqui, na casa do meu cunhado".

Quando lhe perguntei "Que tal Brasília?", ele explodiu:

— "Brasília é o ouro! O ouro!".

Indaguei se ele estava bem lá. Deu uma resposta triunfal:

— "Estou com a vida que pedi a Deus. Você precisava ir pra Brasília. O Rio é uma ilusão, São Paulo outra ilusão. Vai pra Brasília!".

Por fim, marcamos um encontro para logo depois. Esquecia-me de dizer que, antes de Brasília, o Burlamaqui pagara todos os seus pecados. Conheceu a fome. Certa vez passara 48 horas sem comer e sem beber. Um dia, entrou num boteco e pediu um copo de água da bica. Foi medonho.

O garçom deu-lhe o copo e ele não bebia. Simplesmente, mastigava a água e repito: — comia a água. Em outra ocasião, Burlamaqui agarrou-me. As lágrimas caíam-lhe de quatro em quatro. Disse, baixo:

— "Me empresta um dinheiro. Não vi nem o café da manhã".

Estava lívido, febril de fome. Hoje estava feliz; e eu percebera, em tudo o que dizia, uma prosperidade insolentíssima. Quando me viu, fez a pergunta afrontosa:

— "Precisas de dinheiro? Estamos aí".

E repetia, batendo no bolso:

— "Dinheiro há, dinheiro há!".

Tal generosidade era uma maneira de se compensar de velhas e santas humilhações. Repetia (e seu olhar vazava luz):

— "O ouro está lá! Está lá!".

Apontava na direção de Brasília. Quando lhe perguntei pelo mistério, deu risada. Contou que fora para Brasília morto de fome; e, agora, tinha três empregos e era fazendeiro. No meu espanto, gemi:

— "Mas é um milagre!".

Riu, com salubérrimo descaro:

— "A autora do milagre é Brasília".

Conversamos duas horas e o assunto obrigatório foi a capital. Eu só ouvia, numa impressão profunda. E, por tudo que contava o Burlamaqui, eu via Brasília como a imagem da pequena comunidade. Sim, a pequena comunidade é a soma de acomodações, de interesses, de egoísmos. Cada qual absolvia o próximo para ser também absolvido. O sujeito podia ter três, quatro empregos, porque os demais tinham três, quatro empregos. Quando falei na imprensa, o Burlamaqui dava gargalhadas de se ouvir no fim da rua.

Não saía de Brasília nenhuma notícia que a pudesse comprometer. Uma universitária sofreu uma curra homicida. Nunca ninguém, na Terra, foi tão humilhada e tão ofendida. O fato chegou ao Rio por via oral. Os jornais telefonaram. Resposta das sucursais:

— "Não há nada".

E se lá aparecesse um Jack, o Estripador, ou um conde Drácula, ninguém saberia, ninguém. As sucursais continuariam falando da Arena e do MDB. E o silêncio envolve os fatos indignos como um celofane. À sombra dos egoísmos solidários, ninguém julga ninguém, ninguém acusa ninguém. E, portanto, os curradores referidos continuam maravilhosamente impunes. E o Burlamaqui me diz:

— "Houve uma passagem comigo que... Foi o seguinte: — um cara folgou comigo. Dei-lhe uns tiros. E não me aconteceu nada. Vivo lá na minha fazenda, venho só receber dos três empregos, ninguém me aborrece".

Maravilhado, repito:

— "Mas é um milagre!".

O outro ri, sórdido:

— "Mais ou menos".

Já se despedia. Mas antes de partir, ainda me disse:

— "Larga tudo, vai pra lá. Todas as cidades pecam, menos Brasília".

Respira fundo e completa:

— "Em Brasília, somos todos inocentes e somos todos cúmplices".

O automóvel estava no estacionamento. Vi o "falso defunto" embarcar no carro. Já falei na sua Mercedes? Acho que falei. Não, não. Não falei.

Pois sua Mercedes tem cascata artificial, com filhote de jacaré.

[5/10/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo:  Companhia das Letras, 1995.
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terça-feira, 2 de abril de 2013

Revolucionário de festival

Repito que o grande momento do Festival foi o ódio de Geraldo Vandré. Era o talento ferido. E as vaidades do autor estavam mais eriçadas do que as cerdas bravas do javali. Pouco antes, ao executar o seu número, era o vencedor total. Vocês se lembram dos comícios do Brigadeiro. A massa gritava: — "Já ganhou, já ganhou!". Também domingo os fiéis de Vandré berraram: — "Já ganhou, já ganhou!".

E, finalmente, quando saiu o resultado, o autor de "Caminhando" foi o maior espanto da terra. Apunhalado por um segundo lugar — um torpe segundo lugar — quase desabou, fisicamente. E, em seguida, rompeu de suas entranhas um ódio que bem merecia estar inserido nas obras completas de William Shakespeare. O leitor, que é um simples, há de pedir um sinal exterior e concreto de sua ira. Não houve tal exteriorização. O ódio de Vandré permaneceu dentro de Vandré.

Mas dizia eu, na confissão de ontem, que as caras não mentem. E a jovem cara crispada de Vandré não fazia nenhum mistério. Bem sei que, da boca para fora, ele pedia aos seus devotos: — "Aplaudam Tom e Chico, como se fosse eu!". Mas a vaia explodiu. Ou por outra: — não sei se era mesmo vaia. Hoje, o povo aplaude como se vaiasse e vaia como se aplaudisse.

Contei o caso da universitária que, em São Paulo, arrancou os sapatos e batia com os saltos um no outro. Ninguém sabe, até hoje, se estava contra ou a favor. Outros assoviam, vaiando ou aplaudindo. E há os que fazem castanholas com a boca. No Maracanãzinho, sujeitos sapateavam como bailarinas de Sevilha.

Cabe então a pergunta: — e foi mesmo injustiça?

Admitamos que sim. Faz de conta que o segundo lugar é pior do que a lanterna. E que "Sabiá" não merecia nem a lanterna. Admitamos tudo isso. Mas, se houve injustiça, Vandré deve ser festejado e não chorado. Seus partidários devem recolher todos os palavrões. E, de fato, não há nada mais promocional do que a injustiça. O "injustiçado" assume uma dimensão inesperada e gigantesca. Quando passa, é lambido com a vista. Só uma coisa me espanta: — é que não tenham carregado o Vandré na bandeja, e de maçã na boca, como um leitão assado.

Todavia, já uma dúvida se insinua no meu espírito. "Para não dizer que não falei de flores" é uma bela canção. Não há dúvida. Bela canção. Mas ainda ontem dizia-me um amigo:

— "Sou contra 'A Marselhesa'! Não topei 'A Marselhesa!'".

Custei a entender que ele falava, justamente, da música de Vandré. E, sem o saber, o meu amigo deu-me a pista exata. Era uma deslavada "Marselhesa". Agora mesmo, ao bater estas notas, vejo toda a cena. Vandré está fazendo a música do Festival. Evidentemente, quer partir para o social, o político, o épico, o homérico, ou sei lá. O Chico, ou o Tom, pode encerrar-se no lirismo íntimo. Mas um rapsodo como o Vandré sonha com a grande comunicação. E, então, quis fazer "A Marselhesa". Eis aí, em rápidas pinceladas, o que foi a concepção, o que foi a execução de sua obra. Perdeu noites, na fremente elaboração. Mas quando acabou a sua "Marselhesa" — saiu-lhe a anti-"Marselhesa". Aí está, como eu dizia, o defeito.

Lenin falou no "ópio do povo". O que o Vandré fez é o que há de mais ópio, de mais sedativo, repousante, embalador, suavíssimo. É o tipo de música que o sujeito deve ouvir na rede, abanando-se com a Revista do Rádio. Quase uma berceuse. E o próprio Vandré a canta em surdina, como se estivesse fazendo o povo dormir.

Repito que nunca se viu uma "Marselhesa" tão pouco "Marselhesa", tão anti-"Marselhesa". Dirá alguém: — "E a letra?". De fato, há a letra. Mas é óbvio que o nosso "injustiçado" fez o libreto para a ópera errada. Há, sim, entre a música e o canto, o feio e cavo abismo das incompatibilidades totais. É só prestar atenção.

Uma coisa não tem nada a ver com outra. E já me parece certo o seguinte: — a sua música é o que há de mais impróprio, de mais ineficaz para resolver as cóleras, sim, as cóleras que dormem nas entranhas populares.

Todavia, o nosso Vandré não foi um caso único. E, súbito, explode na vida brasileira uma nova figura: — o "revolucionário de Festival". Vocês entenderam? Trata-se do herói sem risco. Claro que outros países, e os outros idiomas, também o têm. Foi assim na nova e jovem "Revolução Francesa". Milhões de franceses entraram no movimento. Pois bem. E não morreu ninguém. Não houve um morto e, ouso mesmo dizê-lo, não houve um ferido. Na França, morre-se muito de atropelamento. Mas como os estudantes viraram todos os carros, a "revolução" não teve nem os atropelados dos dias úteis. Eis o óbvio ululante: — o "revolucionário de Festival" não mata, nem morre. Põe entre a sua pessoa e o perigo uma sábia distância.

Por exemplo: — o Roldão. Fez outra "Marselhesa" que se chama "América, América". Vejam vocês: — temos, ali, nas nossas barbas cínicas, Magé. Todos conhecemos Magé. Magé, repito, está diante de nós, fisicamente próxima. Podemos apalpá-la, podemos farejá-la. Lá, de vez em quando, uma ratazana devora um recém-nascido. E vem o Roldão, com seu bigode boliviano, a falar de "América, América". Eis a verdade a um só tempo deplorável e patusca: — o "revolucionário de Festival" não toma conhecimento do Brasil.

Aqui mesmo, nesta coluna, contei um episódio que me pareceu uma obra-prima de alienação. Era uma passeata. E um rapaz empunhava este cartaz: — "Muerte" etc. etc. Adiante, outro: "Independiencia o muerte". E, de repente, graças às nossas esquerdas, o brasileiro se põe a odiar, a matar, a morrer em castelhano.

Eis a pergunta que, em casa, vendo o Festival, eu me fazia: — "Por que o nosso Roldão não vai cantar guarânia, ou bolero, ou tango?". Talvez, um dia, alguém se lembre de medir a distância que há entre as nossas esquerdas e esse pobre-diabo colossal, que é o Brasil. Ninguém apontará um "revolucionário de Festival" que mencione, ainda que de passagem, ainda que de raspão, esta mísera terra.

Vejamos o Vandré. Nem o Brasil, nem o brasileiro entram na sua berceuse.


[2/10/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo:  Companhia das Letras, 1995.

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terça-feira, 26 de março de 2013

A ira de Geraldo Vandré

Os que são velhos, como eu, conheceram os estertores das gerações românticas. Havia então uma permanente nostalgia do patético e do sublime. Morrer de amor, ou por amor, era uma honra; morrer simplesmente, sem amor, nem ódio, morrer de paratifo ou até de asma, era outra honra. E quando passava um enterro de virgem, com o caixão de arminho, as mocinhas dos sobrados invejavam a morta e gostariam de estar no imaculado caixão. Bom tempo, em que a morte era mais promocional do que a vida.

Mas quem conta episódios admiráveis da vida romântica é o Eça. Num dos seus livros, não sei se Os Maias, há uma cena deliciosa. Imaginem um rapaz vestido de negro e pálido como um santo. É uma festa. Ele está, na janela, maravilhosamente só. E ali, olhando a noite, que já vai para a madrugada, cheira uma flor, talvez camélia. Muito olhado pelas damas, exalava uma nobre e inconsolável melancolia. E, súbito, vem a dona da casa e pergunta:

— "Não dança?".

O rapaz ergue a fronte diáfana e responde:

— "Como posso eu dançar, se a Polônia sofre?".

Nesse rapaz que, junto à janela, beija uma camélia; e não pode sorrir porque a Polônia sofre, nesse rapaz está todo um Portugal, toda uma Europa. Outro que tem o mesmo valor social, humano, histórico, é o nosso Geraldo Vandré.

Quem não o conhece? Com o seu sucesso no Festival da Canção, o nosso Vandré tornou-se uma súbita figura nacional. Abram os jornais, as revistas, ouçam os rádios, vejam as TVs. A fulminante celebridade de Vandré é de uma evidência estarrecedora. E mais: — de domingo para cá, sempre que três brasileiros se juntam, o assunto obrigatório, fatal, é a vil injustiça que lhe fizeram.

Vandré concorria ao Festival com a sua "Pra não dizer que não falei de flores". Segundo se diz, ele devia tirar o primeiro lugar. Vai o júri e dá-lhe um mísero e franciscano segundo lugar. Antes, porém, de passar no Maracanãzinho, preciso dizer quem é e como é Vandré. Vamos lá.

Dias atrás, um amigo meu cruza com o compositor e diz-lhe:

— "Boa noite".

Ora, a um cumprimento responde-se com outro cumprimento. É o mínimo e o máximo que se pode fazer. O Vandré, porém, está bem acima de um automatismo tão crasso e tão ignaro. Assim saudado, ele se arremessa para o meu amigo, como se fosse agredi-lo. Agarra-o pelos dois braços, sacode-o; diz-lhe, embargado:

— "Como pode você me dar boa-noite se o mundo está em guerra?".

O outro tomou o maior susto:

— "Eu não tive intenção! Eu não tive intenção!".

E, realmente, o meu amigo não tivera nenhuma intenção, senão a de lhe dar boa-noite. E o Vandré, em arrancos:

— "Você não vê que estão morrendo no Vietnã?".

O autor do imprudente "boa-noite" quase correu, fisicamente, do Vandré.

Pode parecer talvez que eu esteja fazendo um exagero caricatural. Por sua vez, os idiotas da objetividade dirão que o Vietnã está lá e o compositor aqui. Mas saibam que, no caso do Vandré, a distância não influi nas leis da emoção ou da indignação. Ele reage como se o Vietnã fosse ali na esquina; e como se o chão que ele pisa estivesse juncado de vietcongs defuntos.

Narrei o episódio para caracterizar o artista: — será nosso contemporâneo apenas nos ternos, gravatas e sapatos; mas por dentro tem a estrutura das gerações românticas. Já os familiares e conhecidos evitam cumprimentá-lo, porque o Vietnã sofre. Dito isto, passo ao Maracanãzinho.

Domingo, ia ser escolhida a música brasileira para o Festival Internacional da Canção. Não sei por que, meteu-se na cabeça de muitos, inclusive do próprio Vandré, que sua letra e sua música iam ser as ganhadoras fatais.

Vocês entendem a minha perplexidade? Informa o senso comum que qualquer competição, seja o prêmio Nobel ou de cuspe à distância, tem os seus imponderáveis. A começar pelos juizes. São quinze sujeitos e temos de admitir a "verdade de cada um", verdade que foi, como se sabe, o ganha-pão de Pirandello. Todavia, Vandré e seus partidários, que eram numerosos e ululantes,
estavam maravilhosamente certos da vitória.

Daí a crudelíssima desilusão. Os jurados preferiram "Sabiá", de Chico e Tom. Ao nosso Vandré coube o segundo lugar. Outro qualquer estaria soltando os foguetes da vaidade, e telefonando para casa:

— "Tirei o segundo lugar! Tirei o segundo lugar!".

Seria uma glória para a família, para a namorada etc. etc. Mas Vandré não tem as reações de qualquer um. Assim como não admite que o cumprimentem, também não aceita um reles segundo lugar. O resultado doeu-lhe, fisicamente, como uma nevralgia. Estava falsamente derrotado. Na verdade, merecera uma colocação nobilíssima. Não tinha que sofrer como se o segundo lugar fosse a mais hedionda das lanternas.

Os que estavam lá, no Maracanãzinho, viram muito pouco. Havia entre a platéia e o palco uma deplorável distância visual. Ao passo que o vídeo amplia a cara, o gesto, o espanto. Eu, em casa, com a televisão ligada, vi tudo e com prodigiosa nitidez. E, sobretudo, vi a bela, forte, crispada e jovem cara de Vandré. Ele acabara de saber que era, apenas e miseravelmente, o segundo colocado. Os presentes não puderam sentir o seu patético, mas o telespectador, sim.

Para nós, de casa, a cara de Vandré tomou a expressão cruel, vingativa, de certas máscaras cesarianas. Lia-se tudo na jovem cara. Houve um momento em que, instigado pelos seus fiéis, Vandré perguntou, de si para si:

— "Abro ou não o verbo?".

Seria o comício. Nas velhas gerações, o brasileiro tinha sempre um soneto no bolso. Mas os tempos parnasianos já passaram. Hoje, ferozmente politizado, ele tem sempre, à mão, um comício. Outrora soneto, hoje comício. Eis a perplexidade que o telespectador percebia, com perfeita visibilidade: — por um lado, o comício fascinava Vandré como um abismo; por outro
lado, era amigo do Chico e do Tom.

Mas eis o que eu queria dizer: — um concorrente frustrado só devia aparecer de máscara, como nos vel hos carnavais. Apenas o primeiro colocado teria o direito de fotografar-se de rosto nu. Então o Vandré cometeu o erro de saudar os concorrentes vitoriosos. Só ele e Deus sabem o esforço braçal que lhe custou essa concessão às boas maneiras.

Mas um artista não pode ser convencional. Sei que, por um instante, quase partiu para o comício. Foi quando começou:

— "Nem tudo é festival!".

Disse isso e não foi além. Assim traiu a própria ira, traiu o próprio ressentimento. Ninguém pôs uma máscara compassiva no ódio tão forte, ingênuo e impotente.

Outro momento inesquecível: — a cara de Tom Jobim.

Ao saber-se premiado teve espasmos triunfais de víbora moribunda. Somos uma pátria de cavas depressões; e a cara de Tom Jobim, na vitória, devia ser exibida por todo o Brasil.

Como é trágica a euforia do subdesenvolvido premiado. O nosso Tom foi aos Estados Unidos, fez músicas para Sinatra, é uma glória internacional. Só faltou atirar beijos como uma menina de préstito carnavalesco. Um americano embolsa um prêmio com um tédio sarcástico. O francês recebe um favor como se estivesse fazendo um favor ao favor.

E o nosso Tom, ao impacto do triunfo, quase foi para a tenda de oxigênio.

[1/10/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo:
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terça-feira, 12 de março de 2013

Herói e mártir

Era uma avant-première de caridade. Todo o grã-finismo presente. Não se dava um passo sem esbarrar, sem tropeçar numa capa de Manchete. Diga-se de passagem que estou usando uma imagem hoje obsoleta. E, de fato, as grã-finas deixaram de ser capas de Manchete. Mas, como ia dizendo: — eu era, se bem me lembro, o único plebeu da festa.

E, súbito, passou por mim um colar de brilhantes. Pobre hereditário, sou um deslumbrado nato pelas jóias caras. E aquilo me ofuscou. Como um hipnotizado, fui atrás.

Mas, se me perguntarem quem era a dona do colar, e quem era o seu marido, não saberia dizê-lo. Um e outro pareciam secundários, nulos, diante da jóia. Ele, multimilionário, era como que um contínuo dos brilhantes. Fiquei, de longe, de olho no colar, como um Raffles (2).

Esquecia-me de dizer que sou também fascinado pelo preço das coisas. Fiz meus cálculos. A bela senhora trazia no pescoço uma fortuna delirante. E, súbito, alguém cochicha: — "Aquele colar custou trinta segundos da festa do Patino".

Quem me disse isso? Não sei. Foi talvez o próprio Satã.

O pretexto para a avant-première beneficente era um filme francês. E, depois do filme, ouvi não sei quantas opiniões. Alguém dizia, em arroubos: — "Que diálogo! Que diálogo!".

Houve um momento em que parou, perto de mim, o casal do colar. Em vez de se contentar com os brilhantes, a mulher também queria ser inteligente, e dizia: — "A mulher brasileira não chega aos pés da francesa". O culpado do colar, com um tédio de Nero, resmungou o que não ouvi.

E a mulher, com um frêmito nos brilhantes e no decote: — "o Brasil é um país de quinta ordem". E, então, o marido, obeso como um Nero de Hollywood, faz esta síntese crudelíssima: — "O brasileiro não sabe fazer uma frase".

A ser verdade esta impotência verbal do brasileiro, seria a nossa desgraça. Nenhum povo, nenhuma época, nenhuma classe conseguiriam viver sem frases. E eu, ao apanhar meu táxi, vim pensando na Itália, que é, exatamente, a pátria da frase. A outra pátria seria a França.

Quando o táxi passou pelo relógio da Glória, eu pensava em D'Annunzio e na sua prodigiosa magia verbal. Durante toda a belle époque, era uma honra ser amante do poeta. Os despeitados, que sempre os há, perguntavam: — "Por quê? Por quê?". Fisicamente, D'Annunzio era o antifauno — pequenino, de barbicha em ponta, uma calva que começava e não sabia onde acabar. Mas fazia frases. E a boa frase, em qualquer tempo ou em qualquer idioma, sempre fez adúlteras. Segundo a lenda, só uma senhora resistiu à frase de D'Annunzio. Vai o poeta e faz-lhe um soneto. Resistiu à frase, não resistiu ao soneto.

Falei do gênio verbal de um homem e passo a falar do gênio verbal de um povo: — o francês. Pode parecer exagero. Mas eis o que eu queria dizer: — a França é uma paisagem de frases. O francês não sabe amar, odiar, viver ou morrer sem a palavra. Nele, o gesto é apenas o reforço plástico da frase.

Vejam a última "Revolução Francesa". Evidentemente, ninguém queria cortar a cabeça de ninguém. E, de fato, ninguém morreu e ninguém matou. Mas os revolucionários lavaram a alma porque fizeram uma meia dúzia de frases. Uma delas, que está rolando por todos os idiomas, é a já insuportável "É proibido proibir". Essa frase já foi bonita. Mas, pichada em todos os muros, impressa por toda a parte — tornou-se de um tédio auditivo hediondo.

Logo se viu, porém, que era uma reles pose verbal da massa francesa. "É proibido proibir", mas os seus autores foram pichar telas antigas, por serem antigas, e as modernas, por serem modernas; e assim como proibiram a pintura, também proibiram o teatro, o cinema, a música. Naqueles dias, o vento da "jovem irracionalidade" varreu a França.

Deixemos as frases francesas e passemos às nossas. Será que elas existem? Afirmou o marido dos brilhantes que o brasileiro "não sabe fazer uma frase". Dirá um patriota de penacho: — "Mas é injusto! Injusto!". Nem tanto, nem tanto ou por outra: — talvez seja uma falsa injustiça. Acontecem coisas, no Brasil, que fazem desconfiar de nossa potência verbal.

Em várias ocasiões cívicas, o brasileiro faz o gesto, sem lhe acrescentar a frase que o justifique e o consagre. Imaginem vocês se Pedro I, nas margens do Ipiranga, puxasse a espada sem o grito. O gesto mudo significaria mais cem anos de colônia.

Todavia não precisamos recuar tanto na folhinha. Há pouquíssimo tempo houve aqui a passeata dos 100 mil. Era a primeira vez em que as nossas elites, depois de uma inércia paradisíaca de 468 anos, iam intervir na vida brasileira. E, súbito, em plena avenida Rio Branco, ocorre o milagre: — as elites brasileiras sentaram-se. E não em cadeiras, não em poltronas, não em sofás, não em divãs. Não. Tal não fariam as nossas elites. Vejam e pasmem: — exaustas de quase quinhentos anos de ociosidade, de praia, de Antonio's — elas saíram para descansar outros quinhentos anos. E sentaram-se no próprio chão, no próprio asfalto, no próprio meio-fio, na própria calçada.

E, se as nossas elites assim o fizeram, temos de admitir que devem ter razões históricas especialíssimas e inescrutáveis. Mas qualquer gesto, ainda o mais trivial, exige a frase correspondente. Foi o que faltou às elites do Brasil. E o gesto mudo nunca fez história. Por aí se vê que o grã-fino do colar não foi, como parecia, de uma inveracidade total. O brasileiro sente como ninguém. Na hora da frase, porém, cai na mais absurda esterilidade verbal.

Felizmente despontou o Festival da Canção. E como os concorrentes fazem frases! Pena é que vários tenham apelado para o "É proibido proibir". Pergunto: — por que não inventar uma frase nossa? Por que recorrer a uma tradução? Graças a Deus, outros, como o Vandré, são de uma fascinante originalidade. Ah, fiquei tocado pela sua integridade autoral. Não há um verso que não seja dele, dele mesmo e arrancado de suas entranhas vivas. E as frases jorram de sua canção, assim como a água jorra da boca dos tritões, sim, dos tritões de chafariz. Ao mesmo tempo, é a letra de um centauro de artista e de herói.

Todavia, quer-me parecer que as letras políticas, ideológicas do Festival apresentam um defeito que escapou, certamente, aos seus autores. Vou explicar. No episódio dos 100 mil houve o gesto e faltou a frase. Na canção do Vandré só há frases e nenhum gesto. O sujeito, depois de escrever o que Vandré escreveu, e de cantar o que ele cantou, não pode ficar no Maracanãzinho recebendo corbeilles como na ópera.

É pouco. O leitor e ouvinte imagina que ele ouviu tudo aquilo numa sessão espírita, como um médium de Guevara. Depois de tal canção, só lhe resta uma saída: — correr para se encontrar com o próprio martírio na primeira esquina.

(2) Personagem criado por E. W. Hornung, Raffles é um aristocrata inglês arruinado que, para manter-se condizente com a sua condição social, torna-se um sofisticado ladrão. [Nota Guinefort]
[28/9/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

O único De Gaulle

Uma das maiores festas populares do velho Rio era o "grande enterro". Não sei se me faço entender. Falo de uma cidade ou de um Brasil que passou até o último vestígio. Era ainda o tempo do barão do Rio Branco, de Pinheiro Machado, de Oswaldo Cruz, Patrocínio, Rui (digo os nomes, ao acaso, sem nenhuma cronologia). E, quando morria um dos citados, a cidade vinha, radiante, enterrar o "grande homem".

Claro que ninguém chorava o defunto oficial. E, por todo o itinerário fúnebre, ou falsamente fúnebre, havia uma euforia louca. Os moleques, trepados nos postes e nas árvores, avisavam: — "Evém! Evém!".

Mas eu disse que ninguém chorava o "grande homem" e já retifico: — as velhinhas choravam, sim, o cadáver monumental. Foi assim quando morreu o barão do Rio Branco.

Naquela época, ainda tínhamos o instrumento da reverência, que era o chapéu. Podia ser um enterro de quinta classe. E cada qual se descobria diante da morte. Ninguém morria sem que toda uma cidade o cumprimentasse.

Mas eu estava falando de que mesmo? Ah, de Rio Branco. Segundo se afirma, foi o maior enterro do Brasil, em qualquer tempo. O velho barão era o "grande homem" até fisicamente. Bem me lembro de que, na minha infância, o que mais me fascinava em Rio Branco era a barriga. Hoje, temos um preconceito cardíaco, não sei se justo ou iníquo, contra o barrigudo. Os clínicos costumam fazer a restrição pressaga: — "Você está muito gordo".

No velho Rio, porém, a barriga era um mérito a mais do ministro, do homem de Estado, do senador. E, naquele dia, ninguém ficou em casa, ninguém, e só as velhinhas choravam. O resto exultava com a mise-en-scène funeral. Mas eis o que eu queria dizer: — hoje, seria talvez impossível um enterro parecido. Cabe então a pergunta: — e por quê?

Vejamos. Outro dia fui a um sarau de grã-finos na Lagoa. Houve um momento em que faltou assunto. E, então, alguém falou, precisamente, dos velhos enterros do Brasil.

Citou os do Barão, de Rui, de Pinheiro Machado etc. etc. Havia lá um escultor português. Este gostaria de ter assistido aos funerais de Inês de Castro. A dona da casa (bonita demais para ser feliz) confessou que não vira, jamais, um "grande enterro".

Em seguida, alguém propôs uma revisão dos nossos "grandes homens". Houve a dúvida: — "Vivos ou mortos?".

Convencionou-se que só interessavam os vivos. E começou uma busca frenética. No fim de uma hora os nomes lembrados dariam para encher uma lista telefônica. E começou um processo de angústia. Mais um pouco e se insinuou a dúvida: — "Será que, no Brasil, ninguém é grande homem?". Até que, cerca das quatro da manhã, chegou-se à síntese desesperadora: — não temos o grande enterro porque nos falta o grande morto. O anfitrião repetia, vagamente humilhado: — "O Brasil não tem um grande homem para
enterrar".

Saímos já ao amanhecer. Vim, com mais dois ou três, numa carona amiga. O dono do carro ainda gemia, numa irada frustração: — "É impossível que o Brasil não tenha um grande homem". Nenhum povo pode viver sem o grande homem. Um outro sugeriu a hipótese consoladora: — "Quem sabe se não há, por aí, um gênio inédito?". Protesto do dono da carona: — "A primeira virtude do grande homem é não ser inédito".

Quando saltei do carro, na porta de casa, já tínhamos renunciado ao grande homem brasileiro. E, agora mesmo, ao bater estas notas, estou com o problema na cabeça. Lembro-me então de uma das recentes passeatas, justamente a mais concorrida, a dos "100 mil".

Estavam, ali, eretas as nossas elites. Eram estudantes, poetas, romancistas, professores, sacerdotes, arquitetos, médicos, sociólogos, intelectuais de todos os tipos, cineastas.

Do alto de uma sacada, um observador podia imaginar: — "São os que pensam". E, de fato, era o Brasil pensante que desfilava. Pasmado, cochichei para o meu companheiro Raul Brandão, o pintor das igrejas e das grã-finas: — "Vai haver o  O meu raciocínio era justo. Cem mil brasileiros não se juntam para nada. Imaginei que ia começar, ali, a "Grande Revolução".

Até que se ouviu a palavra de ordem: — "Vamos sentar". A docilidade foi total. E as nossas elites sentadas eram de um efeito plástico inesquecível. E, depois, veio a ordem inversa: — "Levantar". Tal e qual no anúncio do "senta e levanta". Ninguém queria tomar o poder, absolutamente. Uma vez que se tinham sentado e levantado, os 100 mil se deram por satisfeitos e cada qual foi para casa.

Se os que pensam agem e reagem assim, que dizer dos que não pensam? Sim, que dizer do pobre-diabo, do homem de rua, do pé-rapado, do sujeito mais obscuro do que um cachorro atropelado?

Finda a passeata das elites, o Raul Brandão esbravejou: — "O importante, no Brasil, não é o grande homem, mas, inversamente, o pobre-diabo, o homem comum, o torcedor do Flamengo, o analfabeto". Arquejava de uma fúria sagrada contra as elites.

Eis o que eu gostaria de dizer: — passou a época do grande homem, e não só no Brasil. Também no mundo. Recentemente, vimos a nova "Revolução Francesa". Os estudantes viravam a pátria de pernas para o ar; e, logo, 12 milhões de operários entraram em
greve.

Estudantes chamavam De Gaulle de "o assassino". O poder estava indefeso. Mas ninguém o tomou, ninguém. E por quê? Simplesmente porque, entre milhões, não havia um único e escasso grande homem. A França teve que se atirar, outra vez, nos braços de De Gaulle. Sim, o velho De Gaulle, único grande homem francês.

Na minha mesa está uma revista de Paris. E, lá, vem um artigo confessional de Jean-Louis Barrault. Já falei, aqui, da sua "morte". Durante a "jovem revolução", o famoso ator, com um oportunismo muito pusilânime, tratou de adular a massa estudantil. O teatro Odeon, que ele dirigia, estava ocupado pelos jovens. E, então, Barrault subiu ao palco. Foi patético. Declarou que, a partir daquele momento, deixava de ser Barrault. De fronte alçada, completou: — "Barrault morreu". Saiu dali e foi comer um bom bife na esquina.

Quinze dias depois, não havia mais greve, não havia mais nada. Barrault, falso grande ator, falso grande homem, teve o seu prêmio. Um outro intelectual, André Malraux, o chamou e deve ter dito mais ou menos isto: — "Rua! Rua!". E o artigo do  "morto" vem plangente de uma funda e inconsolável nostalgia do salário.

Seja como for, a "jovem revolução" ensinou-nos que a França é uma paisagem sem franceses ou, por outra, é a paisagem de um único francês: — Charles de Gaulle.

[27/9/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Os centauros

Caetano Veloso - 1968
Fala-se em "Poder Jovem", na "Jovem Revolução" e um padre de passeata, em seu veemente sermão, chamou Nossa Senhora de "a mãe do Jovem Salvador". Vejam: — é tão importante ser jovem que já se providenciou uma idade promocional para Jesus. Há também os que proclamam a razão da idade. Nada tenho a objetar. Que seja dado o poder aos jovens, e que eles o exerçam, e que façam o mundo à sua imagem e semelhança.

A meu ver, porém, chegou a hora de se falar também da "jovem obtusidade". Que ela existe como uma realidade concreta, que se pode apalpar, farejar, não há dúvida. Basta olhar e faremos a singela, a tranqüila constatação visual. Se me pedirem fatos, eu direi: — "Vamos aos fatos".

Sábado, fiquei em casa. Fazia um frio cadavérico. Tenho um amigo que se refere ao frio em termos de "julgamento moral". Quando a aragem vai gelando os edifícios e as esquinas, ele põe-se a esbravejar:

— "Ah, frio canalha! Ah, frio indecente!".

Para a sua indignação, o frio era "torpe", era "obsceno", era "sórdido".

Sábado, tive também vontade de xingar o frio dessa forma direta, pessoal e crudelíssima. Fiquei vendo televisão, com três suéteres. Ia passar o teipe do Festival da Canção. Não sei se não teria preferido um bangue-bangue.

Mas, vamos lá. Começa o festival com uma panorâmica da platéia. Verificou-se, ao primeiro olhar, que todo mundo lá era jovem. Só rapazes, só mocinhas. É apavorante. No passado ocorria o inverso: — o Brasil era uma paisagem de velhos. Nos bondes, só os velhos vinham sentados; os jovens ficavam de fora, pendurados no balaústre. E as senhoras grávidas pediam para o filho já nascer setuagenário e de guarda-chuva, como o personagem de Gogol.

Hoje, o velho tem vergonha de o ser. O padre de passeata precisa fazer uma plástica em Jesus e remoçá-lo (talvez assim o Salvador se salve, sobreviva etc. etc.). Mas, como ia dizendo: — não havia na platéia um sujeito de meia-idade, uma viúva, ou, como quer a gíria perversa, um coroa. Uma platéia sem coroa e ocupada por uma mocidade ululante e salubérrima. Imaginei que estaria, ali, a melhor juventude paulista.

E era de um óbvio escandaloso a politização dos presentes. Sempre que uma letra fazia uma insinuação política, ou tinha um arroubo ideológico, ou rosnava para os Estados Unidos — a audiência vinha abaixo. Que pasionarias eram as meninas! Lembro-me de uma que assim se manifestava: — tirando os sapatos e batendo com os saltos, um no outro. Ninguém sabia se estava aplaudindo ou vaiando.

Ah, os rapazes, os rapazes! Cavalgavam as cadeiras e atiravam patadas como rútilos centauros.

Mas todas essas impressões paisagísticas são secundárias, irrelevantes. De um altíssimo patético foi a aparição do sr. Caetano Veloso. Ah, esquecia-me de Vandré. Seus versos tinham o seguinte título, de uma malícia ou, melhor dizendo, de uma ironia finíssima: — "Pra não dizer que não falei de flores". E, realmente, para nosso pasmo, ele faz um artigo de fundo contra as flores. Até hoje ainda não sei o que é que o nosso libertário propõe.

Vejamos algumas hipóteses: — quererá ele dizer que a "Grande Revolução" vai acabar com as flores? Ou que só a burguesia mais reacionária aprecia as rosas e, por carambola, a beleza? E que o revolucionário é tão obtuso, tão bestial, tão abjeto que não pode ver uma flor sem chutá-la?

Sim, há várias metáforas no editorial do Vandré e todas absolutamente inescrutáveis. Só uma coisa é certa: — sem que o próprio autor o perceba, tais metáforas são absolutamente contra-revolucionárias.

Mas vejamos o sr. Caetano Veloso. A vaia selvagem com que o receberam já me deu uma certa náusea de ser brasileiro. Dirão os idiotas da objetividade que ele estava de salto alto, plumas, peruca, batom etc. etc. Era um artista. De peruca ou não, era um artista. De plumas, mas artista. De salto alto, mas artista. E foi uma monstruosa vaia.

A menina, já citada, batia com os saltos dos sapatos, em delírio. Mas era um concorrente que vinha, ali, cantar; simplesmente cantar.

Mas os jovens centauros não deixaram. Na minha casa, lembrei-me de uma velha solenidade nazista: — a queima de livros. Imaginei que, a qualquer momento, a guarda vermelha ia subir ao palco para queimar o próprio Caetano Veloso. Não me admiraria nada que, no futuro, os nossos jovens socialistas queimem poetas no meio da rua.

Mas estou aqui fazendo uma defesa inútil de Caetano Veloso. Ninguém reage melhor do que ele mesmo. Quis cantar e esmagaram seu canto. A massa coral repetia, em furiosa cadência, uma obscenidade espantosa. Era o massacre de um artista, um desesperado artista que se propunha a cantar o "É proibido proibir".

A canção era a flor que o nosso Vandré quer expulsar do seu horrendo paraíso socialista. Já nenhum telespectador suportava mais a humilhação, que se transferia para as casas. (E a jovem massa insistia no refrão torpe).

Súbito, os brios de Caetano Veloso se eriçaram mais que as cerdas bravas do javali. Ele começou a falar. Era um contra 1500. E um que dizia a sua feroz mensagem nos trajes mais impróprios para o seu rompante.

Sim, estava de peruca, plumas, batom, salto alto etc. E disse as verdades que estavam mudas, sim, as verdades que precisavam ser ditas — urgentes, inadiáveis e santas verdades. Ainda bem que milhões de telespectadores as ouviram. Se bem me lembro, eis as suas palavras:

— "É isso a juventude? E vocês são políticos? Querem o poder! Vocês não sabem nada, não entendem nada! Analfabetos em política e arte! Se entendem de política como entendem de música, desgraçado Brasil!".

Não me lembro de tudo. Houve um momento em que Caetano Veloso comparou, e com exemplar justiça, as duas vergonhas: — a vaia obscena e a invasão do Teatro Ruth Escobar.

Naquela ocasião, depois do espetáculo de Roda viva, uns quarenta bandidos espancaram o elenco. Havia uma atriz grávida, que gritou: — "Estou grávida!". Levou um chute na barriga. Foi pisada como uma flor do nosso Vandré.

E dizia Caetano Veloso:

— "Vocês não são melhores! São iguaizinhos!".

Os idiotas da objetividade hão de perguntar:

— "E a peruca? E as plumas? E o batom? E o salto alto?".

Eu responderia que qualquer um pode ter uma indignação à Zola. Quando morreu o autor de Germinal, disse alguém, à beira do túmulo:

— "Zola foi um momento da consciência humana".

No teipe de sábado tivemos, pela fúria de Caetano Veloso, um momento da consciência brasileira. E vimos como a sua implacável lucidez acuou e bateu a "jovem obtusidade".

[26/9/1968] 
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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El arzobispo de la revolución

Quando era crítico teatral, Paulo Francis disse certa vez: — "O hospital é mais importante do que o teatro". Não me lembro se escreveu exatamente assim, mas o sentido era este. E o articulista tinha a ênfase, a certeza de quem anuncia uma verdade inapelável e eterna.

Ao acabar o texto, voltei à frase e a reli: — "O hospital é mais importante do que o teatro".

Fiz para mim mesmo a pergunta: — "Será?".

Já me pareceu imprudente que se comparassem funções e finalidades diferentes. Para que serve um teatro e para que serve um hospital? Por outro lado, não vejo como um crítico de teatro, no gozo de plena saúde, possa preferir uma boa rede hospitalar às obras completas de William Shakespeare.

De mais a mais, o teatro era, na pior das hipóteses, o seu ganha-pão. Imaginem um médico que, de repente, no meio de uma operação, começasse a berrar: — "Viva o teatro e abaixo o hospital!".

A mim, parecem gêmeas as duas contradições: — de um lado, o crítico que prefere o hospital; de outro lado, o cirurgião que prefere o teatro. É óbvio que a importância das coisas depende de nós.

Se somos doentes, o hospital está acima de tudo e de todos; caso contrário, um filme de mocinho, ou uma Vida de Cristo ali no República, ou uma burleta de Freire Júnior, é uma delícia total. Mas volto ao Paulo Francis.

Alguém que lesse o artigo citado havia de pensar: — "Bem. Esse crítico deve estar no fundo da cama, moribundo, já com a dispnéia pré-agônica. E, por isso, prefere o hospital". Engano. Repito que, ao escrever aquilo, Paulo Francis nadava em saúde. E por que o disse?

O leitor, em sua espessa ingenuidade, não imagina, como nós, intelectuais, precisamos de poses. Cada frase nossa, ou gesto, ou palavrão é uma pose e, diria mesmo, um quadro plástico.

Ah,as nossas posturas ideológicas, literárias, éticas etc. etc. Agimos e reagimos de acordo com os fatos do mundo. Se há o Vietnã nós somos vietcongs; mas se a Rússia invade a Tchecoslováquia, vestimos a pose tcheca mais agressiva. E as variações do nosso histrionismo chegam ao infinito.

Imagino que, ao desdenhar do teatro, o Paulo estivesse fazendo apenas uma pose.

Bem. Fiz as divagações acima para chegar ao nosso d. Hélder. Está aqui na minha mesa um jornal colombiano. É um tablóide que... Um momento. Antes de prosseguir, preciso dizer duas palavras.

Domingo, na TV Globo, o Augusto Melo Pinto chamou-me num canto e cochichou:

— "Você precisa parar com o d. Hélder".

Faço um espanto: — "Por quê?".

E ele: — "Você está insistindo demais". Pausa e completa: — "Você acaba fazendo de d. Hélder uma vítima".

Disse-lhe da boca para fora: — "Você tem razão, Gugu". E paramos por aí. Mas eis a verdade: — o meu amigo não tem nenhuma razão. Gugu inverte as posições. Se há uma vítima, entre mim e d. Hélder, sou eu.

Outrora, Victor Hugo vivia bramando: — "Ele! Sempre ele!". Falava de Napoleão, o Grande, que não lhe saía da cabeça. Com todo o universo nas suas barbas a inspirá-lo, Hugo só via na sua frente o imperador. Bem sei que não sou Hugo, nem d. Hélder, Bonaparte. Mas eu podia gemer como o autor de Os miseráveis: — "Ele! Sempre ele!". Realmente, sou um território solidamente ocupado pelo querido padre.

Dia após dia, noite após noite, ele obstrui, engarrafa todos os meus caminhos de cronista. É, sem nenhum favor, uma presença obsessiva, sim, uma presença devoradora.

Ainda ontem, aconteceu-me uma impressionante. Tarde da noite, estava eu acordado. Ai de mim, ai de mim! Sofro de insônias. Graças a Deus, me dou bem com as minhas insônias e repito: — nós nos suportamos com uma paciência recíproca e quase doce. Mas não conseguia dormir e levantei-me. Fui procurar uma leitura. Procura daqui, dali e acabei apanhando um número de Manchete.

E quem havia de brotar, da imagem e do texto? O nosso arcebispo. Quatro páginas de d. Hélder! E, súbito, minha insônia foi ocupada pela sua figura e pela sua mensagem. Primeiro, entretive-me em vê-lo; em seguida passei à leitura. E há um momento em que o arcebispo diz, por outras palavras, o seguinte: — o mundo pensa que o importante é uma possível guerra entre Leste e Oeste. E d. Hélder acha uma graça compassiva em nossa infinita obtusidade.

Se a Rússia e os Estados Unidos se engalfinharem; se as bombas de cobalto caírem nos nossos telhados ou, diretamente, em nossas cabeças; se a OTAN começar a disparar foguetes como um Tom Mix atômico — ninguém se assuste. O perigo não está aí. Não. O perigo está no subdesenvolvimento.

Leio a fala de d. Hélder e a releio. Eis a minha impressão: — esse desdém pelas armas atômicas não me parece original. Sim, não me parece inédito.

E, súbito, um nome e, mais do que um nome, uma barriga me ocorre: — Mao Tsé-tung. Certa vez, Mao Tsé-tung chamou liricamente a bomba atômica de "tigre de papel". Foi uma imagem engenhosa e até delicada. E vem d. Hélder e, pela Manchete, diz, por outras palavras, a mesmíssima coisa.

O homem pode esquecer o seu pueril terror atômico. Quem o diz é o arcebispo e ele sabe o que diz.

Mas objetará o leitor: — e aquela ilha em que a criança é cancerosa antes de nascer? Exato, exato. Vejam bem o milagre: — ainda não nasceu e já tem o câncer. O leitor, que é um piegas, perguntará por essas crianças. Mas ninguém se aflija, ninguém se preocupe. A guerra nuclear não importa.

Eis o que eu não disse ao Gugu: — como esquecer uma figura que diz coisas tão corajosas, inteligentes, exatas, coisas que só ele, ou Mao Tsé-tung, ousaria dizer? Sabemos que o ser humano não diz tudo.

Jorge Amado tem uma personagem que vive puxando barbantes imaginários que a enrolam. Os nossos limites morais, espirituais, humanos, ou que outro nome tenham, os nossos limites são esses barbantes. Há coisas que o homem não diz, e há coisas que o homem não faz. Mas deixemos os atos e fiquemos nas palavras. O que me espanta é a coragem que leva d. Hélder a dizer tanto. Há um élan demoníaco nessa capacidade de falar demais. Continuemos, continuemos.

No dia seguinte, veio o "Marinheiro Sueco" trazer-me, em mão, um jornal colombiano. E, novamente, agora em castelhano, aparecia d. Hélder. Ele começava na manchete: — "EL ARZOBISPO DE LA REVOLUCIÓN". Em seguida, outra manchete, com a declaração do arzobispo: — "ES MÁS IMPORTANTE FORMAR UN SINDICATO DO QUE CONSTRUIR UN TEMPLO".

Eis o que eu gostaria de notar: — na "Grande Revolução", os russos substituíam, nos vitrais, o rosto da Virgem Maria por um focinho de vaca. Jesus tinha a cara de boi, com as ventas enormes. Mas a "Grande Revolução" se fez contra Deus, contra a Virgem, contra o Sobrenatural etc. etc. e, como se verificaria em seguida, contra o Homem. Portanto, ela podia incluir Jesus, os santos, num elenco misto de bois e vacas.

Mas um católico não pode agredir a Igreja com esta manchete: — "Es Más Importante Formar un Sindicato que Construir un Templo". E se o nosso Hélder o diz, estejamos certos:

— é um ex-católico e, pior, um anticatólico.

[25/9/1968] 
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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quarta-feira, 21 de novembro de 2012

O espantoso silêncio

Hoje, a praça de São Marcos tem mais turista americano do que pombo. E muitos, inadvertidamente, dão milho aos americanos e deixam os pombos a ver navios.

Graças a Deus, a nossa Cinelândia ainda não foi invadida pelos nossos irmãos do Norte. De sorte que, lá, os pombos ainda constituem uma sólida maioria. Diria mesmo que a Cinelândia tem mais pombos do que o soneto de Raimundo Correia. E são tão mansos, de uma tal docilidade, que parecem amestrados.

Todas as manhãs e todas as tardes vem uma mão anônima e amorosa dar-lhes milho. O que então acontece é uma espécie de milagre, de suave milagre. Às centenas, aos milhares, sei lá, descem pombos de não sei que misteriosos telhados, de que encantados beirais. É lindo vê-los dando pulinhos e bicando o milho.

Mas não é bem isso que eu queria dizer. O que eu queria dizer é que os pombos da Cinelândia devem ter visto coisas do arco da velha. Temos três locais altamente politizados: — o largo de São Francisco, o largo da Carioca e a Cinelândia. Os dois primeiros ainda estão ressoantes de velhos comícios espectrais. Em especial, o largo de São Francisco.

Certamente, vocês já ouviram falar na "Primavera de sangue". Foi metáfora e foi manchete. Mas vamos aos fatos.

Há uns quarenta anos, ou cinqüenta, os estudantes resolveram fazer o enterro simbólico do então chefe de Polícia. Foi proibida a passeata ou por outra: — não foi proibida. O chefe de Polícia autorizou-a. E, então, os estudantes concentraram-se, exatamente, no largo de São Francisco. Lá estavam o caixão, as velas acesas, com os estudantes chorando falsamente o pseudo-defunto. Quando, porém, saiu o enterro, três ou quatro policiais, à paisana, infiltrados na massa, esfaquearam e mataram dois estudantes.

Um dos repórteres presentes dispara para a redação. Lá chegando deu à luz a metáfora:

— "Primavera de sangue".

O diretor do jornal, num arroubo perdulário, puxou uma cédula e a enfiou na mão do estilista. No dia seguinte, a manchete sangrava no alto da primeira página. A metáfora quase pôs abaixo o governo. E, até hoje, há sempre um velho profissional, que se lembra da "Primavera de sangue".

Também na Cinelândia houve memoráveis explosões cívicas. E os pombos de lá, como uma alada platéia, a tudo assistiam, arrulhando os seus aplausos e as suas vaias. E, se um deles tivesse de redigir suas memórias, havia de conceder um especial destaque ao comício da escola de belas-artes.

Trata-se de um episódio que, na época, encheu a cidade de um divertido horror.

Eis o caso: — certo dia, os pombos da Cinelândia foram surpreendidos por uns trinta ou quarenta rapazes. Num golpe de mão, os jovens ocuparam as escadarias do Municipal. Os pombos imaginaram que a rapaziada ia falar do Vietnã, o assunto da moda. Engano. Simplesmente, estavam ali para um comício de um tipo jamais suspeitado. Ninguém xingou os Estados Unidos. O primeiro orador anunciou a morte da palavra. O segundo também anunciou a morte da palavra. E assim o terceiro, o quarto, o quinto oradores. Como fizeram cinco discursos e todos vociferando a mesma coisa, pode-se dizer que a palavra morreu cinco vezes.

Os pombos se entreolhavam, num mudo escândalo desolado. Não entendiam nada. Mas nisto chegou o momento do milho. Dez minutos depois, voltam os pombos. Eis o que viram: — os rapazes estavam rasgando poemas de amor. Com tal gesto queriam demonstrar que a nossa época não comporta nem a palavra, nem o amor. Era meio estranho que latagões, aparentemente válidos, tivessem tal desgosto do amor e, por conseqüência, da mulher.

Por fim, retiraram-se, gloriosamente, os rapazes. E, então, ruflando as asas e sacudindo as penas, os pombos voltaram para o soneto de Raimundo Correia. Passou.

De vez em quando, porém, lembro-me do episódio e faço da "morte da palavra" um tema de meditação fúnebre. Até hoje, não sei se a palavra está morta. Admito que se possa fazer um romance sem palavras, um conto sem palavras, um soneto sem palavras e até um recibo sem palavras. Admito que, futuramente, um novo Tolstoi venha a fazer uma outra Guerra e paz sem título e com 1200 páginas em branco. Não consigo imaginar, porém, que certas situações vitais possam dispensar a palavra.

Pode-se admitir um flerte mudo. Todavia, não se conhece um flerte eterno ou, pelo menos, que tenha chegado às bodas de prata ou de ouro. Um flerte dura escassamente os quarenta minutos de um chá, de um desfile, jantar etc. etc. Em seguida, tem de entrar a palavra. Homem e mulher não podem ficar eternamente olhando um para o outro.

Conheci um paulista que era, por índole e por fatalidade geográfica, um introvertido. Falava pouquíssimo. Um dia, apaixonou-se. Não tirava a vista do ser amado. O pior é que a moça estava achando o silêncio uma prova de alma profunda, inescrutável e fascinante. Até que, um dia, o paulista resolve falar. Aproxima-se da bem-amada e sussurra-lhe: — "Rua tal, número tal, apartamento 1015, última porta à direita. Cinco da tarde".

Para um paulista, ainda mais quatrocentão, era um esforço vocal insuportável. E teve que se sentar, mais adiante, com as pernas bambas e a vista turva.

Claro que esse mutismo atroz é, no amoroso, uma exceção escandalosa. Seja como for, mesmo o paulista citado teve que dizer um endereço e uma hora. A dama achou, com isso, que o ser amado era de uma prolixidade inefável. Normalmente, ninguém ama sem uma inestancável torrente verbal.

Tive um colega que dava para a namorada telefonemas de oito horas. Nem ele nem ela faziam uma pausa. Falavam ao mesmo tempo, e tanto a pequena como o rapaz não entendiam o que o outro dizia. Mas falei do paulista e agora me lembrei: — há pior, há pior.

Quem me contou o episódio foi Marcos André. Vocês conhecem, decerto, o admirável colunista. Eu o admiro por vários motivos e mais este: — Marcos André andou pela China, pelo Japão, por Formosa. Viu paisagens, flores, lagos jamais sonhados. Quando o leio lembro-me do nome azulado, lunar, de Pierre Loti. E, como este, Marcos André conhece a China anterior a Mao Tsé-tung e, portanto, a China do ópio.

Em Hong Kong, o colega foi testemunha da mais linda e silenciosa história de amor. Conta Marcos André que certo milionário brasileiro foi traído pela esposa. Quis gritar, mas a infiel disse-lhe sem medo: — "Eu não amo você, nem você a mim. Não temos nenhum amor a trair". O marido baixou a cabeça. Doeu-lhe, porém, o escândalo. Resolveu viajar para a China, certo de que a distância é o esquecimento.

Primeiro, andou em Hong Kong. Um dia, apanhou o automóvel e correu como um louco. Foi parar quase na fronteira com a China. Desce e percorre, a pé, uma aldeia miserável. Viu, por toda a parte, as faces escavadas da fome. Até que entra na primeira porta. Tinha sede e queria beber. Olhou aquela miséria abjeta. E, súbito, vê surgir, como num milagre, uma menina linda, linda. Aquela beleza absurda, no meio de sordidez tamanha, parecia um delírio.

O amor começou ali. Um amor que não tinha fim, nem princípio, que começara muito antes e continuaria muito depois. Não houve uma palavra entre os dois, nunca. Um não conhecia a língua do outro. Mas, pouco a pouco, o brasileiro foi percebendo esta verdade: — são as palavras que separam. Durou um ano o amor sem palavras.

Os dois formavam um maravilhoso ser único. Até que, de repente, o brasileiro teve que voltar para o Brasil. Foi também um adeus sem palavras. Quando embarcou, ele a viu num junco que queria seguir o navio eternamente. Ele ficou muito tempo olhando. Depois não viu mais o junco. A menina não voltou. Morreu só, tão só. Passou de um silêncio a outro silêncio mais profundo.

[22/9/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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Admirável defunto

Uma coluna diária precisa ter um elenco variadíssimo. Sim, um elenco colorido de mágicos, trapezistas, clowns, arquitetos, cineastas, heróis, estudantes, intelectuais e pulhas.

Quando o colunista precisa de um mímico, tem o mímico; e se é cineasta, vem o cineasta; e se é o intelectual, há o intelectual.

Fiz esta breve introdução para concluir: — as minhas confissões vivem de um elenco assim. Meus protagonistas e meus comparsas dariam para lotar uma platéia de Fla-Flu. E um dos meus personagens mais fascinantes é exatamente o "defunto vocacional".

Não sei se me entendem. Imagino mesmo que o leitor há de perguntar: — "Por que defunto e por que vocacional?".

Tentarei explicar.

Outro dia cruzo na Avenida com um morto. Passou por mim e acenou-me com os dedos: — "Salve!".

Balbuciei, lívido: — "Salve". E fiquei olhando o outro afastar-se e sumir na multidão. Mas por que o meu espanto e por que o meu horror? Era um sujeito que eu já velara, e chorara, e florira umas cinco vezes.

Dirá alguém: — "Ilusão". Seja ilusão. Mas o "defunto vocacional" cumprimenta como os outros, e calça como os outros, e tem gravata como os outros. E dá sempre a sensação de que já o vimos de pés juntos e de algodão nas narinas. Sua cara é hirta e feia como uma máscara, sim uma máscara da cor de certas pinceladas amarelas de Van Gogh.

Mas por que estou dizendo tudo isso? Ah, já sei.

Imaginem vocês que recebi um telefonema fantástico. Era alguém que desejava de mim uma entrevista imaginária. O sujeito falava de maneira especialíssima. Era uma voz fininha de criança que baixa em centro espírita. Fiz-lhe a pergunta assustada:

— "O senhor tem mesmo essa voz?".

Jurou que tinha. E eu: — "Mas quem é o senhor?".

Veio a resposta terrível: — "Sou o homem de bem".

Ora, eu estava certo de que o homem de bem era, precisamente, "O Grande Defunto". Ninguém tão morto e ninguém tão enterrado. Lembrava-me da missa mandada rezar pelo seu eterno repouso. E me parecia irritante que alguém saísse da tumba e pedisse uma entrevista imaginária. Seriam ambos imaginários: — a entrevista e o homem de bem.

Tive de usar de franqueza: — "Meu amigo, vai-me desculpar, mas o senhor já morreu".

Há uma pausa lúgubre. E, depois do suspense, diz o homem de bem: — "Obrigado pela informação". E desligou.

Viro-me para os colegas e, puxando um cigarro, digo-lhes: — "O homem de bem é um cadáver mal-informado. Não sabe que morreu".

Volto para a minha mesa. Bate novamente o telefone.

Aviso: — "Se for o homem de bem, não estou". Felizmente, não era o falecido. O contínuo pergunta: — "Quem quer falar com ele?". Pausa. O contínuo repete: — "Quem? O canalha?".

Alguém que se dizia "o canalha" queria falar comigo. Levanto e vou atender. Mas achava curioso que no mesmo dia, na mesma hora, fosse eu solicitado pelo falecido homem de bem e por um salubérrimo canalha.

Do outro lado da linha, diz alguém: — "Seu Nelson Rodrigues? Eu queria dar uma entrevista imaginária. Pode ser?".

Fiz-lhe a primeira pergunta: — "Quem é o senhor?".

E o outro, com a voz de quem está mascando chicletes: — "Já disse. Sou o canalha".

Tive de explicar-lhe: — "Meu amigo, já temos um canalha oficial. Nunca ouviu falar no Palhares, o que não respeita nem as cunhadas?".

Respondeu, com radiante vaidade: — "Sou muito pior do que o Palhares". Era uma bravata óbvia. Digo:

— "Escuta. O Palhares beijou a cunhada no corredor. E o senhor? Vamos lá. Qual foi a sua ignomínia?".

O outro dá uma risadinha de Chaliapine em Mefistófeles: — "Só responderei no terreno baldio".

Faço uma pausa. Estou achando a voz muito moça. Pergunto:

— "Afinal, que idade tem o senhor?".

Eis a resposta:

— "Dezessete anos".

Ao ouvir falar em "dezessete" tremo em cima dos sapatos. Faço-lhe reverências de Michel Zevaco:

— "Peço-lhe mil desculpas. Eu não sabia que o senhor era o jovem. Pode vir. O terreno baldio jamais fechará suas portas para o jovem".

Expliquei-lhe que as entrevistas imaginárias devem começar à meia-noite, hora que, segundo Machado de Assis, apavora. O jovem foi sarcástico:

— "A meia-noite é uma ilusão". Seja como for, foi magnânimo; e aceitou o tenebroso horário.

Assim me despedi: — "Salve, jovem canalha!".

Imediatamente, liguei para o contra-regra do terreno baldio:

— "Sou eu. Manda providenciar papel picado e listas telefônicas. Vamos receber a mais ilustre visita de toda a história do terreno baldio".

Pergunta, pálido, o contra-regra: — "Quem?". Imaginou, por certo, que seria um rajá montado num elefante. Disse-lhe:

— "O jovem canalha!".

Era honra demais para o contra-regra. Sob violenta dispnéia emocional, quase desfaleceu no telefone:

— "Não merecemos tanto".

Trato de instigá-lo:

— "Capricha, capricha!".

Saio do telefone, ponho o paletó e embaixo apanho o primeiro táxi. Arquejo:

— "Me leva no terreno baldio. Chispa".

Salto lá. A cabra, os gafanhotos, os sapos, as pulgas, os caramujos estão assanhadíssimos:

— "Cadê o jovem canalha?". Tenho que pedir calma. Chamo as pulgas:

— "Modos, hem, modos".

Ao longe, como no soneto do Alencar de Os Maias, um burro, pensativo, pastava. E, súbito, a cabra põe a boca no mundo: — "Evém o jovem canalha!". Era a pura verdade.

Vinha ele e com as costeletas ao vento. Mas não vinha só. Uma massa o seguia, berrando como nos comícios do Brigadeiro:

— "Já ganhou! Já ganhou!".

De um lado do jovem canalha marchava o dr. Alceu; de outro lado vinha d. Hélder. E ambos abanavam o pulha com uma Revista do Rádio. Foi sublime quando o patife entrou no terreno baldio. Num desvairado arroubo, o dr. Alceu forrou o chão com o próprio paletó para o jovem pisar. Do alto, choviam listas telefônicas e papel picado.

Finalmente, pedi silêncio. E então o mestre-de-cerimônias anunciou os títulos do entrevistado:

— "É estudante, mas não sabe nada, porque onde se viu estudante estudar? Nunca leu um livro. Só lê manchete".

Palmas, vivas, foguetes. Dr. Alceu começa a gritar:

— "Tem a razão da idade!".

A massa coral de gafanhotos, sapos, pulgas, camaleões, pôs-se a repetir:

— "Tem a razão da idade! Tem a razão da idade!".

E, súbito, fez-se o maior silêncio da terra. O "jovem canalha", de viva voz, ia contar o feito que estava justificando aquela apoteose. Com radiante modéstia, disse tudo:

— "Não fiz nada demais. Estão exagerando. Simplesmente, havia uma menina reacionária. Tão reacionária e obscurantista que namorava de mãos dadas. Eu e mais uns sete pegamos a menina. Batemos no namorado".

Pausa, suspense. E, então, limpando as unhas com um pau de fósforo, concluiu:

— "Eu sou um co-autor do jovem estupro".

Em delírio, a multidão avançou. O co-autor foi carregado na bandeja, e de maçã na boca, como um leitão assado. Assim fez, pelo terreno baldio, a triunfal volta olímpica.

[21/9/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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terça-feira, 18 de setembro de 2012

O cafajeste não viaja

Qualquer um pode viajar, menos o brasileiro. O inglês pode ir para a China e jamais será mandarim. Do mesmo modo, a inglesa. Uma inglesa, em Tóquio, não será jamais uma madame Butterfly. E assim o francês, ou o alemão, ou a alemã. Ao passo que o brasileiro, a partir do Méier, começa a usar os sotaques do seu itinerário turístico. E, por vezes, não é preciso nem a viagem. Basta um telegrama.

Recentemente, os estudantes franceses fizeram uma singular revolução francesa. Tudo consistia em arrancar paralelepípedos e virar carros. Foi talvez a primeira revolução feita sem uma única idéia. Os jovens arrancavam os paralelepípedos, viravam os carros e nada mais. Exatamente: — nada mais.

E houve um momento em que o poder ficou vago. A história pensou: — "Vem por aí um novo De Gaulle". E o velho De Gaulle não moveu uma palha, não tirou uma cadeira do lugar. O poder estava lá, nas alegres barbas da "jovem revolução" e repito: — o poder oferecia-se como um fruto maduro, próximo e indefeso. Bastava o simples gesto de colhê-lo. E ninguém fez esse gesto. Nem estudantes, nem socialistas, nem comunistas, nem intelectuais, nem operários. Ninguém.

Um conhecido meu abria os braços e perguntava: — "Mas como? Uma potência espiritual, como a França, não tinha ninguém?". Era a humilhante verdade: — ninguém. Ou por outra: — tinha o velho De Gaulle e só De Gaulle. E, portanto, foi o Herói que, com o seu tédio sardônico, ficou com o poder não possuído por ninguém.

Mas não era isso que eu queria dizer. O que eu queria dizer é que os nossos jovens se embebiam das notícias de Paris. Vejam vocês: — é possível, pelo telégrafo, mudar as nossas idéias, sentimentos, valores.

E, então, começou aqui uma efervescência feroz. Também carros virados. Ninguém arrancou os paralelepípedos, porque somos uma cidade asfaltada.

Fez-se uma "jovem revolução" liderada por telegramas. Pode-se dizer que tudo era apócrifo. Aqui, ninguém teve um gesto próprio, uma fúria autêntica, um palavrão original e profundo.

Imaginem agora o brasileiro que sai de sua rua, de sua paisagem, de sua cidade e de seu idioma. Como reagirá ele, em Paris, Londres, Berlim ou Nova York? Está lá submetido a pressões insuportáveis.

Bem me lembro do meu amigo Otto Lara Resende. Passou dois anos na Europa. E, quando voltou, era outro Otto. Fomos passear em Ipanema. Diante do poente do Leblon, inaugurou ele uma de suas frases máximas: — "Paisagem é verba!".

Insinuei que o nosso poente não faz vergonha. Mas ele insistiu: — "Poente é verba!".

E, mais uma vez, verifiquei que raríssimos brasileiros podem viajar além de Bangu.

O outro caso. Há três ou quatro meses, o meu amigo Carlos Heitor Cony bateu-me o telefone:

— "Nelson, vim me despedir". Como seu tom era meio lúgubre, ainda brinquei: — "Vais te matar?". Respondeu: — "Ainda não. Vou viajar". Protestei: — "Não faça isso".

Conversamos uma meia hora. Insistia eu: — "O brasileiro que viaja volta mais burro". Jurei: — "Não conheço um brasileiro que não voltasse mais burro". Ele resistiu até o fim: — "Você exagera. Não é nada disso". Quanta coisa ouviu o Cony de mim! Cheguei a dizer-lhe que ele precisava ser o cafajeste total. Não exagerava. De fato, um maravilhoso cafajeste está inserido nele, está enterrado nele como um sapo de macumba. E o cafajeste não viaja.

O pior é que a viagem ia ser imensa. Passaria por Berlim, Paris, Moscou, Londres e, até, Pólo Norte. Imaginei que voltaria um ex-Cony, um anti-Cony. E me preocupava também o destino do seu riso. O meu amigo tem uma gargalhada absurda. Sim, ele ri como os antigos sátiros vadios. Imaginei que a viagem pudesse emudecer-lhe o riso.

E o Cony partiu. Três meses de ausência densa, cruel, desesperadora como a morte.

Outro dia, paro num sinal fechado. Estou em cima do meio-fio, esperando, quando um automóvel encosta e alguém anuncia: — "O Cony chegou! O Cony chegou!".

Pouco depois, entro na redação e ligo para o amigo. Ia perguntar-lhe: — "Como é? Ficaste mais burro?". Mas não estava. Deixei o meu nome. E esperei em vão que me telefonasse. Nada. No dia seguinte, ligo outra vez. Também não estava. Liguei outras vezes. Nunca estava. Ele, aqui, a dois passos, parecia longínquo como se ainda existisse entre nós dois a distância que vai de Ipanema ao Pólo, do Castelinho a Cingapura.

Sou um pessimista e logo imaginei: — "É outro Hélio Pellegrino".

Já falei do abismo ideológico que se cavou entre mim e o Hélio. Tenho escrito sobre passeatas, d. Hélder e dr. Alceu. Em confissões sucessivas, acusei as esquerdas de uma alienação monstruosa etc. etc. O Hélio não gostou. Dizia-me com a sua bela voz de Paul Robeson branco: — "Não é o momento! Não é o momento!". Enquanto o Hélio falava assim, em arroubos, eu pensava nos meus mortos e nos meus vivos; sofri demais por uns e por outros. Ferido como estou, não ouso trapacear comigo mesmo e com os demais. Digo o que sinto e o que penso. Apenas.

Todavia, na véspera dos meus anos, o Hélio ligou para mim. Ninguém mais doce: — "Pode dizer nos seus artigos que você é dos meus amigos fundamentais". Dias antes, de público, eu o desafiara a jantar comigo no meu aniversário. E o Hélio explicava: — "Mas não posso jantar contigo amanhã, porque vou sair do Rio". Era o décimo encontro que ele adiava. Jurou, porém: — "Janto contigo na semana que vem". Isso foi no dia seguinte. Não me concedeu um mísero telefonema. Se eu fosse esperar por ele, e seu prodigioso jantar, estaria morto de fome.

E já me parecia que, como o bom Hélio Pellegrino, o Cony fugisse de mim. Não queria, decerto, conspurcar-se com o meu "oba" ou com o meu aperto de mão. Pois bem. Até que há o temido encontro.

A coisa ocorreu no Museu da Imagem e do Som. Ele ia depor sobre a figura e a obra de Mário Filho. Assim que o vi, e ele me viu, houve o suspense de um ou dois segundos. Em seguida, veio o abraço desesperado, o riso violento e recíproco e a certeza de que éramos amigos para sempre. Disse-me Cony: — "Recebi o teu recado. Mas não telefonei, de propósito. Não queria ver ninguém. Por enquanto, não".

Foi aí que eu reparei: — era um outro Cony que estava na minha frente, talvez mais atormentado e talvez mais puro. Sim, um Cony trabalhado pela solidão, um Cony de uma outra densidade. Perguntei, aflito: — "E a viagem? E a viagem?". Varara o mundo e fora até ao Pólo Norte. E eu: — "Que tal? Que tal?".

Respondeu sério, cruel: — "Tudo a mesma coisa! Tudo a mesma coisa!". Vira a Vênus de Milo: — "Tem erisipela". E da Gioconda: — "Tem mau hálito". "O Louvre, uma impostura." Estava triste e exausto de tudo o que vira. Passara na Rússia, na França, na Inglaterra, na Tchecoslováquia.

E, por fim, fez um resumo desesperado de tudo: — "O homem fracassou".

[18/9/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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Os dois namorados

Há coisas que um grã-fino só confessa num terreno baldio, à luz de archotes, e na presença apenas de uma cabra vadia.

Lembro-me de uma festa na casa não sei de quem (só sei que era grã-fino). Na altura das três da manhã, o dono da casa põe mais gelo no uísque e diz: — "Na minha casa só as criadas vêem televisão". Os circunstantes concordaram em que a televisão é uma ignomínia.

E, no entanto, vejam vocês: — o anfitrião estava bêbedo da cabeça aos sapatos. Mas o grã-fino preserva, ainda no pileque, uma série de poses fundamentais. Uma delas é o falso desprezo pela TV e seus programas. Disse eu que o grã-fino só diz certas coisas num terreno baldio etc. etc. Já retifico. Nem no terreno baldio. Ele só dirá que gosta de televisão ao médium, depois de morto.

É, repito, uma pose. Na verdade, o meu anfitrião não perdia uma da Dercy, uma do Chacrinha, uma do Raul Longras. Quanto a mim, sou franco: — não preciso do terreno baldio, nem do médium. O fato de ser apenas um pequeno-burguês, sem nenhum laivo de grã-finismo, dá-me descaro bastante para confessar, aos quatro ventos: — vejo televisão e, pior, gosto de televisão.

Dirá um intelectual ou um grã-fino: — "Mas, e o nível? O nível?".

Ao que eu responderia, com a mais límpida e casta objetividade, que o tal nível, que se atribui às nossas TVs, é muito relativo. Acusamos o nível das emissoras e ninguém fala do nosso. Há uma reciprocidade de níveis. A televisão é assim porque o telespectador também o é. Uma coisa depende da outra e as duas se justificam e se absolvem.

Muitos abominam o Chacrinha e adoram d. Hélder. E há coisas que d. Hélder faz e que o Chacrinha jamais ousou.

Por exemplo: — um dia, abro O Jornal e vejo na seção "Eles disseram" algumas declarações do grande arcebispo. Dizia ele, em resumo, que era perfeitamente legítima a "missa ao som de cuíca, tamborim, reco-reco", etc. etc. Um católico e, ainda mais, um sacerdote propunha a "missa de gafieira". Portanto, é lícito dizer-se que certas posições de d. Hélder estão abaixo do nível do Chacrinha. Mas falo, falo, e esqueci o meu assunto.

Vou falar, hoje, do padre Ávila. (Se não me engano, é da PUC). Mas, vejam vocês: — o nosso Ávila, além de ser padre, é sociólogo. Há um ano, um ano e pouco, estava eu assistindo a um programa de TV. E eis que aparece quem? Justamente o padre-sociólogo.

É um sociólogo que está radiante de o ser. E ele não diz um "oba" sem lhe pingar sociologia. No programa referido discorreu, exatamente, sobre o jovem. Que dizia o padre e que dizia o sociólogo? Não me lembro textualmente de suas palavras. Mas o padre Ávila começou dizendo, se não me engano, que "os tempos estão duros".

Até aí concordei. De fato, acontecem coisas, em nossa época, que desafiam toda a nossa experiência e todo o nosso raciocínio. E, a propósito do jovem, ele referiu um episódio muito curioso. Certo rapaz cometeu, contra um amigo, um ato de extrema vileza. Pouco depois, o padre Ávila conversou com o culpado. Perguntou-lhe: — "Você não acha que foi uma deslealdade com o seu amigo?". O rapaz, mascando goma, saiu-se com esta: — "E é preciso ser leal?".

O padre não se espantou. Um sociólogo não se espanta. Se lhe servirem, no jantar, um ensopadinho de abóbora com ratazana, ele não concederá ao fato um único e reles ponto de exclamação.

Pois bem. Até aquele momento não entendera o gesto do jovem. E transmitiu ao telespectador a sua perplexidade. Nem o entrevistado, nem o público perceberam o óbvio ululante. Quem se escondia, ou por outra, quem não se escondia por trás do ato vil era um velho conhecido nosso — o pulha.

Mas, pergunto: — por que o nosso Ávila não reconheceu a vileza como tal?

É sacerdote e, ao mesmo tempo, um sábio e, ao mesmo tempo, um professor e, ao mesmo tempo, um sociólogo. E não sabe que a infâmia é infâmia, que a indignidade é indignidade, que o cinismo é cinismo. Diante da evidência espetacular, faz-se de cego. E o padre Ávila não será o único.

Há milhares, há milhões de ávilas. Por toda parte, e a começar na família, só esbarramos e só tropeçamos em ávilas de ambos os sexos. Os pais são ávilas, as mães são ávilas, e as tias, e as cunhadas. Todos são ávilas sem batina, sem sociologia etc. etc. Também nas escolas, nas universidades, nos escritórios, nas redações os ávilas são a maioria, quase a unanimidade.

O dr. Alceu fala, sem rebuços, na razão da idade. É um ávila. E como existem alceus e ávilas em todos os idiomas, ninguém julga o jovem, Não ocorre a ninguém que o jovem pode ser um santo, um herói, um justo e, também, um canalha. É um crime dar-lhe uma razão absoluta, isto é, dar razão a quem não a tem. E assim se criou uma figura sinistra, difusa, irresponsável, que ninguém ousaria julgar.

Realmente, o jovem está diante de nós sagrado, intangível.

Um coroinha julga o papa. O padre de passeata condena 2 mil anos de cristianismo. Todos os valores são questionados, refutados. Só ao jovem tudo é permitido. Há coisas, porém, que justificam a nossa desesperada meditação. Quero falar de um fato concreto.

Para evitar que se identifiquem as vítimas, não direi nem quando, nem onde ocorreu. Foi numa universidade que o leitor não saberá se daqui, de São Paulo, Brasília ou Belo Horizonte. Imaginem um casal de namorados de menos de vinte anos, estudantes e católicos. Um dia, o rapaz e a menina são cercados por um bando de colegas marxistas (digamos, marxistas de galinheiro). O que estes exigem dos namorados é um atestado de ideologia.

Para não tomar o tempo do leitor, direi que o primeiro a ser agredido, por uns oito ou dez, foi o rapaz. A namorada, na sua desesperada fragilidade, quis socorrê-lo. Foi logo agarrada, imobilizada. Apanhou na boca. E quase mataram o namorado, a socos, pontapés, chutes. Já sem sentidos, levou o último pé na cara. Mas não foi tudo. Lá estava o rapaz, quase morto. E, então, os outros arrastaram a menina. Também a socos, a patadas. Ah, eu sei que tudo se publica.

Mas o que fizeram com a adolescente não pode ser impresso em idioma nenhum. Muito tempo depois, alguém descobriu os namorados, ainda desmaiados. Uma ambulância, ou táxi, sei lá, os levou. O crime não mereceu nenhuma imprensa e explico: — os bandidos tinham a razão da idade. O jovem estupro, por ser jovem, está acima do bem e do mal.

Mas há de chegar um dia em que a juventude será julgada.
[19/9/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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sexta-feira, 18 de maio de 2012

É triste ser Neruda

Pablo Neruda
Sou, como Didi, um brasileiro canicular. (Falo do grande Didi, o bicampeão do mundo, o virtuose, o estilista que inventou a folha seca). Já apresentei o autor, preciso falar da obra. A chamada folha seca é uma bola que desenha uma curva encantada; e vai-se enfiar na última gaveta etc. etc. Resta dizer que última gaveta é uma imagem da gíria futebolística.

Um dia, o Real Madrid contratou Didi. Lá foi ele. No Brasil, era um craque plástico, e ástico, acrobático. Quando entrava em campo, a própria bola o reconhecia e vinha lamber-lhe as botas como uma cadelinha amestrada. E, súbito, conhece Didi a solidão do frio europeu. Deixou de ser o grande Didi. Uma aragem fina e leve já o deprimia e já o derrotava. Nos grandes jogos parecia um entrevado. E o que o liquidava era a nostalgia crudelíssima do sol brasileiro. Gostava mesmo de se incendiar na luz brutal.

Repito que sou igualmente canicular. Só entendo o verão. E, por isso, nada me espantou mais do que o nosso último inverno. Só conhecíamos o falso inverno da folhinha. Pela primeira vez fazia frio na cidade e, repito, um frio cadavérico. O próprio sol era gelado. E esse frio foi uma experiência inédita para os cariocas. Senti então uma inconsolável saudade dos bons tempos em que o sol brasileiro derretia as catedrais.

Até que, um dia, saio de casa e dou de cara com uma vizinha. É uma senhora gorda e patusca como uma viúva machadiana. Deve ter varizes. Eu não as vi, mas deve ter varizes.

Ia Passando e parou no portão do meu edifício. Conversamos uns três minutos. E eu não tirava a vista do seu pescoço. Eis o que via: — um colar de brotoejas. Manhã gelada. Mas as brotoejas eram um sinal profético de calor. Eu tinha hora marcada e já me despedia. Foi então que a vizinha suspirou e disse: — "Tudo é possível, tudo é possível". E paramos por aí.

Vejam vocês as voltas em que se perde uma crônica.

Falei da canícula carioca, de Didi, o artista plástico da folha seca; mencionei a frase da vizinha e seu colar de brotoejas. Mas não disse uma palavra sobre o personagem que inspirou a presente "confissão".

Falo de Neruda, Pablo Neruda, o homem que, segundo Sartre, está merecendo um urgente prêmio Nobel. Neruda não é um chileno como outro qualquer. Seria mais exato chamá-lo de poeta do mundo. Há muito que o nosso Pablo assumiu a dimensão da poesia social. Houve um tempo, todavia, em que ele fazia versos à maneira do nosso J. G. de Araújo Jorge. Bem me lembro de um dos seus lamentos mais dilacerados. Dizia assim: — "Tão curto o amor e tão longo o esquecimento".

Essa era a melancolia do antigo Neruda e, ouso mesmo dizê-lo, do ex-Neruda. Dizia-me meu amigo: — "Neruda é um Rubem Braga de penacho". Vou ser franco: — Prefiro o Rubem Braga.

Mas o poeta que aqui desembarcou, de sopetão, não tem nada a ver com o do "amor tão curto" e do "esquecimento tão longo". Só não mudou fisicamente. A mesma cara forte, vital e bovina. Exatamente, bovina. Sempre o achei parecido e não sabia com quem. Aquela cara enorme, o beiço largo, o perfil, o pescoço, um certo peso, o olhar — tudo me lembrava alguém. Mas quem? Até que, ontem, morreu o suspense.

Vi a sua cara na primeira página de O Globo; e percebi toda a semelhança. Lembra o boi e, repito, um boi admirável, quase divino, mas indubitavelmente um boi.

E aconteceu o que era fatal: — a entrevista coletiva.

Juntou-se na casa do Rubem Braga a rapaziada do jornal, do rádio e da televisão. Todos presentes, inclusive fotógrafos, o futuro prêmio Nobel dispôs-se a responder. A primeira pergunta - ou uma das primeiras — foi sobre a Tchecoslováquia. Justiça se lhe faça: — a princípio, Neruda não queria responder. Era apenas um poeta que vinha falar dos seus livros. Só dos livros? Só dos livros.

Era pouco para a fome da reportagem. Ante a cruel insistência dos rapazes, o poeta resolveu falar sobre tchecos e russos. Lendo sua entrevista, pensei na vizinha: — "Tudo é possível".

Antes não o fizesse. E mais uma vez percebemos que não há opinião intranscendente. O simples fato de opinar compromete ao infinito. Quando vetara o assunto, Neruda foi de uma sábia, de uma clarividente pusilanimidade. Mas se definiu. Eis o que ficou evidentíssimo: — a pusilanimidade do silêncio teria sido mais digna do que a coragem de dizer o seguinte: — "Eu estou com os dois lados. Com a Rússia e com a Tchecoslováquia".

Explicou: — "Sou amigo da Tchecoslováquia, país que me deu asilo quando dele precisei, e também sou amigo da União Soviética". Por isso, quando perguntam com quem está, ele não se aperta e responde: — com os russos e com os tchecos. Por outras palavras: — está com o crime e com a vítima, com a vítima do estupro e com o autor do estupro etc.etc.

Disse eu que, em certos casos, é melhor a covardia do silêncio do que a coragem de certas opiniões. Já retifico. Em verdade, não houve coragem nenhuma. A frase deve ser lida assim: — pior do que a pusilanimidade do silêncio foi a pusilanimidade da resposta.

Se a Rússia pode invadir a Tchecoslováquia, tudo é permitido. Trata-se de um crime que envolve o próprio destino da pessoa humana. E vem o nosso Pablo e diz que "a Tchecoslováquia deve compreender". Vejam: — ainda por cima, "deve compreender". Quem o diz é o poeta, e o poeta sabe o que diz. Cabe então a pergunta: — e o que é que os miseráveis tchecos "devem compreender"? Responde Neruda:

— que a Rússia perdeu muitos homens na guerra. Ah, perdeu? Também os Estados Unidos perderam, e a Inglaterra perdeu, e a França, e outros, e outros. Portanto, vamos nos invadir uns aos outros.

Apenas o poeta se esquece de que a Rússia fez o pacto germânico-soviético; que se tornou aliada de Hitler; que colaborou lealmente no esforço de guerra nazista. E afirma o nosso ilustre hóspede que a Rússia libertou os tchecos. Não libertou ninguém. O que a Rússia vinha fazendo era a cínica e brutal exploração da Tchecoslováquia. Esta foi uma nação escrava com os nazistas e continuou escrava com os comunistas.

Vejam vocês: — os jornais gastam tinta e papel; a televisão gasta a sua imagem; o rádio gasta os seus microfones; nós gastamos a nossa paciência. E tudo para Neruda proclamar que está com os dois lados. Só imagino a amarga perplexidade do leitor, do ouvinte, do telespectador.

Pablo Neruda é um dos maiores poetas do mundo; quase prêmio Nobel; amigo de Sartre e por Sartre amado; homem de ensibilidade, de pensamento, de imaginação. Era de se esperar que visse a invasão através de uma óptica própria e monumental.

Sim, ele saberia dizer verdades jamais suspeitadas. Muito bem: — e o poeta me sai um Luvizaro. Ou por outra: — nem o Luvizaro teria descaro tamanho. E é um intelectual.

Chamado a opinar sobre o expurgo de intelectuais, diz: — não pode condenar a Rússia, porque tem amigos lá; tampouco pode condenar a Tchecoslováquia, porque também tem amigos na Tchecoslováquia. Agora compreendo o desespero de um amigo meu. Fez dois ou três ensaios literários e desistiu da literatura. Um dia, alguém o apresentou como "intelectual". Corrigiu:

— "Não sou intelectual". O outro insiste: — "É intelectual, sim". O meu amigo apontou o dedo: — "Se me chamar de intelectual outra vez, parto-lhe a cara", É triste, é humilhante ser Neruda.

[13/9/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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