Foi doce o meu encontro com o Varanda. Com esse nome paisagístico,
ventilado, é uma grande figura. E como não nos víamos há meses e meses,
houve, de parte a parte, uma festa imensa. Eu ria para ele e ele para
mim, como se o amigo fosse uma figura extremamente cômica. Súbito, o
Varanda pergunta:
— "Tens visto o Burlamaqui?".
Respondo:
— "Morreu".
O Varanda recua dois passos e avança outros dois. "Pálido de espanto", como no soneto, balbucia:
— "Quem morreu?".
Confirmei:
— "O Burlamaqui".
Pulou como o espectro da rosa. Agarrou-me:
— "Não é possível! Não pode ser!".
Houve, ali, dois espantos, o meu e o dele. Teimei:
— "Você não sabia? Morreu, rapaz, morreu!".
Desatinado, o outro dizia:
— "Só se morreu hoje, agora, neste momento!".
Desta feita, o assombrado fui eu. Disse-lhe:
— "Morreu há dois ou três anos. Dois. Dois, não. Três".
Esquecia-me de localizar o nosso encontro, no tempo e no espaço. Foi ontem, na esquina de Sete de Setembro com a Avenida, às quatro da tarde. Ao ouvir falar em "três anos", o Varanda perdeu de vez a paciência:
— "Estás fazendo molecagem comigo!".
Estendi a mão sobre uma Bíblia invisível:
— "Juro".
Varanda substituiu o espanto pelo furor:
— "Deixa de palhaçada!".
E eu, também exaltado, voltei à carga:
— "Rapaz! Eu fui ao enterro do Burlamaqui, mandei-lhe uma coroa, estive na missa! Está-me chamando de mentiroso?".
Em plena calçada, e aos berros, já fazíamos escândalo. Um senhor gordo, de óculos, com esparadrapo na testa, parou e ficou olhando. O Varanda estava quase chorando:
— "Pelo amor de Deus! Escuta! Estive com o Burlamaqui ontem, ontem. Sabe o que é ontem? Paguei-lhe o cafezinho. Tomou cafezinho comigo!".
Era demais. Estou repetindo:
— "Contigo, cafezinho, ontem? E não morreu?".
O Varanda estendia, as duas mãos crispadas:
— "Acredita em mim! Peço. Acredita em mim!".
E então, pela primeira vez, admiti a hipótese de um engano, sim, de um equívoco fatal. Era possível que a morte, o enterro, a missa do Burlamaqui fossem uma falsa lembrança, um sonho talvez da memória. Finalmente, capitulei:
— "Tens razão, tens razão! Eu me enganei. Não foi o Burlamaqui. Foi outro, um cara que tu não conheces".
Tive que inventar, às pressas, um defunto, que justificasse a confusão. Mas eu e ele estávamos exaustos e irritados com o equívoco. Nem o Varanda me reteve, nem eu a ele. Cada qual queria ver o outro pelas costas. E assim nos despedimos.
Pergunto: — como explicar que a memória invente uma morte, um enterro e uma missa? Só muito depois, em casa, entendi tudo.
Não há brasileiro que não tenha, entre suas relações, um "falso defunto". Não estou exagerando. "Falso defunto" é o que a gente pensa que já morreu umas cinco vezes, que já foi enterrado outras tantas. O sujeito imagina que já o viu de pés juntos e algodão nas narinas. No fim, fica provado que ninguém morreu e que se trata de uma pura e irresponsável fantasia da memória. E o Burlamaqui era, justamente, o "falso defunto". Não havia dúvida: — estaria tão vivo quanto eu e o leitor.
Vejam vocês: — no dia seguinte, estou em casa e bate o telefone. Alguém está dizendo:
— "Aqui fala a alma do Burlamaqui".
E, em seguida, veio a gargalhada, forte, tremenda, vital. E eu, rindo também:
— "Ah, como vai essa figura?".
O outro não parava:
— "Então, você me matou? Parei contigo!".
Simplesmente, o Varanda armara toda uma alegre intriga entre nós dois. Rimos muito; perguntei-lhe:
— "Que fim levaste?".
E ele:
— "Moro em Brasília. Estou passando uns dias aqui, na casa do meu cunhado".
Quando lhe perguntei "Que tal Brasília?", ele explodiu:
— "Brasília é o ouro! O ouro!".
Indaguei se ele estava bem lá. Deu uma resposta triunfal:
— "Estou com a vida que pedi a Deus. Você precisava ir pra Brasília. O Rio é uma ilusão, São Paulo outra ilusão. Vai pra Brasília!".
Por fim, marcamos um encontro para logo depois. Esquecia-me de dizer que, antes de Brasília, o Burlamaqui pagara todos os seus pecados. Conheceu a fome. Certa vez passara 48 horas sem comer e sem beber. Um dia, entrou num boteco e pediu um copo de água da bica. Foi medonho.
O garçom deu-lhe o copo e ele não bebia. Simplesmente, mastigava a água e repito: — comia a água. Em outra ocasião, Burlamaqui agarrou-me. As lágrimas caíam-lhe de quatro em quatro. Disse, baixo:
— "Me empresta um dinheiro. Não vi nem o café da manhã".
Estava lívido, febril de fome. Hoje estava feliz; e eu percebera, em tudo o que dizia, uma prosperidade insolentíssima. Quando me viu, fez a pergunta afrontosa:
— "Precisas de dinheiro? Estamos aí".
E repetia, batendo no bolso:
— "Dinheiro há, dinheiro há!".
Tal generosidade era uma maneira de se compensar de velhas e santas humilhações. Repetia (e seu olhar vazava luz):
— "O ouro está lá! Está lá!".
Apontava na direção de Brasília. Quando lhe perguntei pelo mistério, deu risada. Contou que fora para Brasília morto de fome; e, agora, tinha três empregos e era fazendeiro. No meu espanto, gemi:
— "Mas é um milagre!".
Riu, com salubérrimo descaro:
— "A autora do milagre é Brasília".
Conversamos duas horas e o assunto obrigatório foi a capital. Eu só ouvia, numa impressão profunda. E, por tudo que contava o Burlamaqui, eu via Brasília como a imagem da pequena comunidade. Sim, a pequena comunidade é a soma de acomodações, de interesses, de egoísmos. Cada qual absolvia o próximo para ser também absolvido. O sujeito podia ter três, quatro empregos, porque os demais tinham três, quatro empregos. Quando falei na imprensa, o Burlamaqui dava gargalhadas de se ouvir no fim da rua.
Não saía de Brasília nenhuma notícia que a pudesse comprometer. Uma universitária sofreu uma curra homicida. Nunca ninguém, na Terra, foi tão humilhada e tão ofendida. O fato chegou ao Rio por via oral. Os jornais telefonaram. Resposta das sucursais:
— "Não há nada".
E se lá aparecesse um Jack, o Estripador, ou um conde Drácula, ninguém saberia, ninguém. As sucursais continuariam falando da Arena e do MDB. E o silêncio envolve os fatos indignos como um celofane. À sombra dos egoísmos solidários, ninguém julga ninguém, ninguém acusa ninguém. E, portanto, os curradores referidos continuam maravilhosamente impunes. E o Burlamaqui me diz:
— "Houve uma passagem comigo que... Foi o seguinte: — um cara folgou comigo. Dei-lhe uns tiros. E não me aconteceu nada. Vivo lá na minha fazenda, venho só receber dos três empregos, ninguém me aborrece".
Maravilhado, repito:
— "Mas é um milagre!".
O outro ri, sórdido:
— "Mais ou menos".
Já se despedia. Mas antes de partir, ainda me disse:
— "Larga tudo, vai pra lá. Todas as cidades pecam, menos Brasília".
Respira fundo e completa:
— "Em Brasília, somos todos inocentes e somos todos cúmplices".
O automóvel estava no estacionamento. Vi o "falso defunto" embarcar no carro. Já falei na sua Mercedes? Acho que falei. Não, não. Não falei.
Pois sua Mercedes tem cascata artificial, com filhote de jacaré.
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— "Tens visto o Burlamaqui?".
Respondo:
— "Morreu".
O Varanda recua dois passos e avança outros dois. "Pálido de espanto", como no soneto, balbucia:
— "Quem morreu?".
Confirmei:
— "O Burlamaqui".
Pulou como o espectro da rosa. Agarrou-me:
— "Não é possível! Não pode ser!".
Houve, ali, dois espantos, o meu e o dele. Teimei:
— "Você não sabia? Morreu, rapaz, morreu!".
Desatinado, o outro dizia:
— "Só se morreu hoje, agora, neste momento!".
Desta feita, o assombrado fui eu. Disse-lhe:
— "Morreu há dois ou três anos. Dois. Dois, não. Três".
Esquecia-me de localizar o nosso encontro, no tempo e no espaço. Foi ontem, na esquina de Sete de Setembro com a Avenida, às quatro da tarde. Ao ouvir falar em "três anos", o Varanda perdeu de vez a paciência:
— "Estás fazendo molecagem comigo!".
Estendi a mão sobre uma Bíblia invisível:
— "Juro".
Varanda substituiu o espanto pelo furor:
— "Deixa de palhaçada!".
E eu, também exaltado, voltei à carga:
— "Rapaz! Eu fui ao enterro do Burlamaqui, mandei-lhe uma coroa, estive na missa! Está-me chamando de mentiroso?".
Em plena calçada, e aos berros, já fazíamos escândalo. Um senhor gordo, de óculos, com esparadrapo na testa, parou e ficou olhando. O Varanda estava quase chorando:
— "Pelo amor de Deus! Escuta! Estive com o Burlamaqui ontem, ontem. Sabe o que é ontem? Paguei-lhe o cafezinho. Tomou cafezinho comigo!".
Era demais. Estou repetindo:
— "Contigo, cafezinho, ontem? E não morreu?".
O Varanda estendia, as duas mãos crispadas:
— "Acredita em mim! Peço. Acredita em mim!".
E então, pela primeira vez, admiti a hipótese de um engano, sim, de um equívoco fatal. Era possível que a morte, o enterro, a missa do Burlamaqui fossem uma falsa lembrança, um sonho talvez da memória. Finalmente, capitulei:
— "Tens razão, tens razão! Eu me enganei. Não foi o Burlamaqui. Foi outro, um cara que tu não conheces".
Tive que inventar, às pressas, um defunto, que justificasse a confusão. Mas eu e ele estávamos exaustos e irritados com o equívoco. Nem o Varanda me reteve, nem eu a ele. Cada qual queria ver o outro pelas costas. E assim nos despedimos.
Pergunto: — como explicar que a memória invente uma morte, um enterro e uma missa? Só muito depois, em casa, entendi tudo.
Não há brasileiro que não tenha, entre suas relações, um "falso defunto". Não estou exagerando. "Falso defunto" é o que a gente pensa que já morreu umas cinco vezes, que já foi enterrado outras tantas. O sujeito imagina que já o viu de pés juntos e algodão nas narinas. No fim, fica provado que ninguém morreu e que se trata de uma pura e irresponsável fantasia da memória. E o Burlamaqui era, justamente, o "falso defunto". Não havia dúvida: — estaria tão vivo quanto eu e o leitor.
Vejam vocês: — no dia seguinte, estou em casa e bate o telefone. Alguém está dizendo:
— "Aqui fala a alma do Burlamaqui".
E, em seguida, veio a gargalhada, forte, tremenda, vital. E eu, rindo também:
— "Ah, como vai essa figura?".
O outro não parava:
— "Então, você me matou? Parei contigo!".
Simplesmente, o Varanda armara toda uma alegre intriga entre nós dois. Rimos muito; perguntei-lhe:
— "Que fim levaste?".
E ele:
— "Moro em Brasília. Estou passando uns dias aqui, na casa do meu cunhado".
Quando lhe perguntei "Que tal Brasília?", ele explodiu:
— "Brasília é o ouro! O ouro!".
Indaguei se ele estava bem lá. Deu uma resposta triunfal:
— "Estou com a vida que pedi a Deus. Você precisava ir pra Brasília. O Rio é uma ilusão, São Paulo outra ilusão. Vai pra Brasília!".
Por fim, marcamos um encontro para logo depois. Esquecia-me de dizer que, antes de Brasília, o Burlamaqui pagara todos os seus pecados. Conheceu a fome. Certa vez passara 48 horas sem comer e sem beber. Um dia, entrou num boteco e pediu um copo de água da bica. Foi medonho.
O garçom deu-lhe o copo e ele não bebia. Simplesmente, mastigava a água e repito: — comia a água. Em outra ocasião, Burlamaqui agarrou-me. As lágrimas caíam-lhe de quatro em quatro. Disse, baixo:
— "Me empresta um dinheiro. Não vi nem o café da manhã".
Estava lívido, febril de fome. Hoje estava feliz; e eu percebera, em tudo o que dizia, uma prosperidade insolentíssima. Quando me viu, fez a pergunta afrontosa:
— "Precisas de dinheiro? Estamos aí".
E repetia, batendo no bolso:
— "Dinheiro há, dinheiro há!".
Tal generosidade era uma maneira de se compensar de velhas e santas humilhações. Repetia (e seu olhar vazava luz):
— "O ouro está lá! Está lá!".
Apontava na direção de Brasília. Quando lhe perguntei pelo mistério, deu risada. Contou que fora para Brasília morto de fome; e, agora, tinha três empregos e era fazendeiro. No meu espanto, gemi:
— "Mas é um milagre!".
Riu, com salubérrimo descaro:
— "A autora do milagre é Brasília".
Conversamos duas horas e o assunto obrigatório foi a capital. Eu só ouvia, numa impressão profunda. E, por tudo que contava o Burlamaqui, eu via Brasília como a imagem da pequena comunidade. Sim, a pequena comunidade é a soma de acomodações, de interesses, de egoísmos. Cada qual absolvia o próximo para ser também absolvido. O sujeito podia ter três, quatro empregos, porque os demais tinham três, quatro empregos. Quando falei na imprensa, o Burlamaqui dava gargalhadas de se ouvir no fim da rua.
Não saía de Brasília nenhuma notícia que a pudesse comprometer. Uma universitária sofreu uma curra homicida. Nunca ninguém, na Terra, foi tão humilhada e tão ofendida. O fato chegou ao Rio por via oral. Os jornais telefonaram. Resposta das sucursais:
— "Não há nada".
E se lá aparecesse um Jack, o Estripador, ou um conde Drácula, ninguém saberia, ninguém. As sucursais continuariam falando da Arena e do MDB. E o silêncio envolve os fatos indignos como um celofane. À sombra dos egoísmos solidários, ninguém julga ninguém, ninguém acusa ninguém. E, portanto, os curradores referidos continuam maravilhosamente impunes. E o Burlamaqui me diz:
— "Houve uma passagem comigo que... Foi o seguinte: — um cara folgou comigo. Dei-lhe uns tiros. E não me aconteceu nada. Vivo lá na minha fazenda, venho só receber dos três empregos, ninguém me aborrece".
Maravilhado, repito:
— "Mas é um milagre!".
O outro ri, sórdido:
— "Mais ou menos".
Já se despedia. Mas antes de partir, ainda me disse:
— "Larga tudo, vai pra lá. Todas as cidades pecam, menos Brasília".
Respira fundo e completa:
— "Em Brasília, somos todos inocentes e somos todos cúmplices".
O automóvel estava no estacionamento. Vi o "falso defunto" embarcar no carro. Já falei na sua Mercedes? Acho que falei. Não, não. Não falei.
Pois sua Mercedes tem cascata artificial, com filhote de jacaré.
[5/10/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.