Pablo Neruda |
Um dia, o Real Madrid contratou Didi. Lá foi ele. No Brasil, era um craque plástico, e ástico, acrobático. Quando entrava em campo, a própria bola o reconhecia e vinha lamber-lhe as botas como uma cadelinha amestrada. E, súbito, conhece Didi a solidão do frio europeu. Deixou de ser o grande Didi. Uma aragem fina e leve já o deprimia e já o derrotava. Nos grandes jogos parecia um entrevado. E o que o liquidava era a nostalgia crudelíssima do sol brasileiro. Gostava mesmo de se incendiar na luz brutal.
Repito que sou igualmente canicular. Só entendo o verão. E, por isso, nada me espantou mais do que o nosso último inverno. Só conhecíamos o falso inverno da folhinha. Pela primeira vez fazia frio na cidade e, repito, um frio cadavérico. O próprio sol era gelado. E esse frio foi uma experiência inédita para os cariocas. Senti então uma inconsolável saudade dos bons tempos em que o sol brasileiro derretia as catedrais.
Até que, um dia, saio de casa e dou de cara com uma vizinha. É uma senhora gorda e patusca como uma viúva machadiana. Deve ter varizes. Eu não as vi, mas deve ter varizes.
Ia Passando e parou no portão do meu edifício. Conversamos uns três minutos. E eu não tirava a vista do seu pescoço. Eis o que via: — um colar de brotoejas. Manhã gelada. Mas as brotoejas eram um sinal profético de calor. Eu tinha hora marcada e já me despedia. Foi então que a vizinha suspirou e disse: — "Tudo é possível, tudo é possível". E paramos por aí.
Vejam vocês as voltas em que se perde uma crônica.
Falei da canícula carioca, de Didi, o artista plástico da folha seca; mencionei a frase da vizinha e seu colar de brotoejas. Mas não disse uma palavra sobre o personagem que inspirou a presente "confissão".
Falo de Neruda, Pablo Neruda, o homem que, segundo Sartre, está merecendo um urgente prêmio Nobel. Neruda não é um chileno como outro qualquer. Seria mais exato chamá-lo de poeta do mundo. Há muito que o nosso Pablo assumiu a dimensão da poesia social. Houve um tempo, todavia, em que ele fazia versos à maneira do nosso J. G. de Araújo Jorge. Bem me lembro de um dos seus lamentos mais dilacerados. Dizia assim: — "Tão curto o amor e tão longo o esquecimento".
Essa era a melancolia do antigo Neruda e, ouso mesmo dizê-lo, do ex-Neruda. Dizia-me meu amigo: — "Neruda é um Rubem Braga de penacho". Vou ser franco: — Prefiro o Rubem Braga.
Mas o poeta que aqui desembarcou, de sopetão, não tem nada a ver com o do "amor tão curto" e do "esquecimento tão longo". Só não mudou fisicamente. A mesma cara forte, vital e bovina. Exatamente, bovina. Sempre o achei parecido e não sabia com quem. Aquela cara enorme, o beiço largo, o perfil, o pescoço, um certo peso, o olhar — tudo me lembrava alguém. Mas quem? Até que, ontem, morreu o suspense.
Vi a sua cara na primeira página de O Globo; e percebi toda a semelhança. Lembra o boi e, repito, um boi admirável, quase divino, mas indubitavelmente um boi.
E aconteceu o que era fatal: — a entrevista coletiva.
Juntou-se na casa do Rubem Braga a rapaziada do jornal, do rádio e da televisão. Todos presentes, inclusive fotógrafos, o futuro prêmio Nobel dispôs-se a responder. A primeira pergunta - ou uma das primeiras — foi sobre a Tchecoslováquia. Justiça se lhe faça: — a princípio, Neruda não queria responder. Era apenas um poeta que vinha falar dos seus livros. Só dos livros? Só dos livros.
Era pouco para a fome da reportagem. Ante a cruel insistência dos rapazes, o poeta resolveu falar sobre tchecos e russos. Lendo sua entrevista, pensei na vizinha: — "Tudo é possível".
Antes não o fizesse. E mais uma vez percebemos que não há opinião intranscendente. O simples fato de opinar compromete ao infinito. Quando vetara o assunto, Neruda foi de uma sábia, de uma clarividente pusilanimidade. Mas se definiu. Eis o que ficou evidentíssimo: — a pusilanimidade do silêncio teria sido mais digna do que a coragem de dizer o seguinte: — "Eu estou com os dois lados. Com a Rússia e com a Tchecoslováquia".
Explicou: — "Sou amigo da Tchecoslováquia, país que me deu asilo quando dele precisei, e também sou amigo da União Soviética". Por isso, quando perguntam com quem está, ele não se aperta e responde: — com os russos e com os tchecos. Por outras palavras: — está com o crime e com a vítima, com a vítima do estupro e com o autor do estupro etc.etc.
Disse eu que, em certos casos, é melhor a covardia do silêncio do que a coragem de certas opiniões. Já retifico. Em verdade, não houve coragem nenhuma. A frase deve ser lida assim: — pior do que a pusilanimidade do silêncio foi a pusilanimidade da resposta.
Se a Rússia pode invadir a Tchecoslováquia, tudo é permitido. Trata-se de um crime que envolve o próprio destino da pessoa humana. E vem o nosso Pablo e diz que "a Tchecoslováquia deve compreender". Vejam: — ainda por cima, "deve compreender". Quem o diz é o poeta, e o poeta sabe o que diz. Cabe então a pergunta: — e o que é que os miseráveis tchecos "devem compreender"? Responde Neruda:
— que a Rússia perdeu muitos homens na guerra. Ah, perdeu? Também os Estados Unidos perderam, e a Inglaterra perdeu, e a França, e outros, e outros. Portanto, vamos nos invadir uns aos outros.
Apenas o poeta se esquece de que a Rússia fez o pacto germânico-soviético; que se tornou aliada de Hitler; que colaborou lealmente no esforço de guerra nazista. E afirma o nosso ilustre hóspede que a Rússia libertou os tchecos. Não libertou ninguém. O que a Rússia vinha fazendo era a cínica e brutal exploração da Tchecoslováquia. Esta foi uma nação escrava com os nazistas e continuou escrava com os comunistas.
Vejam vocês: — os jornais gastam tinta e papel; a televisão gasta a sua imagem; o rádio gasta os seus microfones; nós gastamos a nossa paciência. E tudo para Neruda proclamar que está com os dois lados. Só imagino a amarga perplexidade do leitor, do ouvinte, do telespectador.
Pablo Neruda é um dos maiores poetas do mundo; quase prêmio Nobel; amigo de Sartre e por Sartre amado; homem de ensibilidade, de pensamento, de imaginação. Era de se esperar que visse a invasão através de uma óptica própria e monumental.
Sim, ele saberia dizer verdades jamais suspeitadas. Muito bem: — e o poeta me sai um Luvizaro. Ou por outra: — nem o Luvizaro teria descaro tamanho. E é um intelectual.
Chamado a opinar sobre o expurgo de intelectuais, diz: — não pode condenar a Rússia, porque tem amigos lá; tampouco pode condenar a Tchecoslováquia, porque também tem amigos na Tchecoslováquia. Agora compreendo o desespero de um amigo meu. Fez dois ou três ensaios literários e desistiu da literatura. Um dia, alguém o apresentou como "intelectual". Corrigiu:
— "Não sou intelectual". O outro insiste: — "É intelectual, sim". O meu amigo apontou o dedo: — "Se me chamar de intelectual outra vez, parto-lhe a cara", É triste, é humilhante ser Neruda.
[13/9/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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