Quem ficou contente foi Bonifácio Ponte Preta (o Patriota), com a
inauguração da tal adutora do Guandu, que resolve o problema da água no
Rio de Janeiro até o ano 2000. Tudo que é noticiário da imprensa sobre o
assunto o Boni recorta e cola num álbum confeccionado por ele mesmo e
que tem uma bonita fita verde-amarela, badalando na capa.
Por exemplo aquele artigo do David Nasser, que saiu no "O Cruzeiro', sob
o título de “As águas da ingratidão", no qual o repórter começa assim:
"As águas da ingratidão municipal começaram a rolar" e depois diz que "a
obra do século", que quebrou o galho da falta de água até o ano 2000,
foi inaugurada e se esquece, deliberada, criminosa e vergonhosamente do
nome de Carlos Lacerda, que foi — segundo Nasser — o homem que botou o
cano lá no rio, pois esse ai ligo — eu dizia - o Bonifácio achou tão
bacana que comprou dez "O Cruzeiro" e colou tudo no álbum.
Estou contando o detalhe para mostrar que o patriótico Boni está
exagerando às pampas, no seu fervor cívico pela obra. Ele não fala
noutra coisa e ficou uma fera com o distraído Rosamundo, quando soube
que o coitado nem tinha sabido dessa inauguração:
— Perfile-se! — berrou o Boni, assustando o Rosa: — Fique sabendo que
estou lhe prestando uma informação que orgulha qualquer patrício, ouviu?
Saiba, o senhor, que inauguraram o Guandu. Teremos água até o ano 2000.
Rosamundo ficou besta com que o outro lhe contou. Que coisa, não é mesmo? Água até o ano 2000!
Mas Rosamundo mora na zona do Centro, pois ainda não percebeu que aquilo
não é zona residencial. Ontem ele passou os olhos pelos jornais e —
como sempre — nem notou o que estava lendo, passando-lhe despercebida a
notícia de que caiu uma ponte de Lajes, o que acarretou total falta de
água no lugar onde ele mora.
E quando Rosamundo chegou em casa, ainda impressionado com o que lhe
contara o patriótico Bonifácio sobre essa coisa de que não vai faltar
água até o ano 2000, e abriu o chuveiro para um banho reparador, só caiu
uma gotinha na cabeça dele e olhe lá.
Na sua proverbial vaguidão, ele comentou, apenas: — Puxa! Como os anos passaram depressa!
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quarta-feira, 24 de agosto de 2011
O correr dos anos
O passeio do pastor
Para um pastor, francamente, acabara de ter um comportamento indigno:
pulara o muro sorrateiramente e abandonara sua vigília, para farrear.
Mal se viu na rua, o pastor olhou para os lados e reparou que não havia
ninguém na rua que, de resto, àquela hora da madrugada costumava estar
sempre deserta.
O pastor ficou satisfeito de não ter sido pressentido e seguiu
caminhando junto ao muro, até atingir a esquina, onde parou indeciso.
Não parecia ter um caminho premeditado e, se alguém estivesse a
observá-lo, acharia que fugira por fugir, apenas para entregar-se à
aventura.
Afinal o pastor resolveu-se pela direita. Dobrou a rua e foi seguindo
lampeiro, gozando sua liberdade. Foi aí que pareceu vislumbrar alguém do
sexo oposto no jardim de uma bela residência. Parou e ficou observando.
Depois de alguns segundos atravessou a rua e tentou empurrar o portão do
jardim. Devia estar trancado, mas isto não era problema para um pastor
que, momentos antes, dera uma bela prova de destreza, galgando um muro
bem mais alto.
Era um pastor danado aquele. Recuou um pouquinho, tomou distância e,
pimba... pulou o portão e foi entrando pelo jardim tranqüilamente, para
namorar à vontade. O que aconteceu lá dentro eu não vou contar que não
estou aqui para dedurar pastor nenhum, mas que ele demorou lá dentro um
tempo comprometedor, isto eu não vou negar.
O que eu sei é que passada quase uma hora (pelo menos uns 45 minutos,
ele ficou lá dentro e os dois podiam ser vistos por um observador mais
atento entre as sombras dos ciprestes que se prestavam muito para cenas
românticas) mas — como eu dizia — passado o tempo comprometedor, o
pastor voltou pelo mesmo caminho, isto é, pulou o portão, como um ladrão
vulgar, e saiu para a rua.
Foi então que o pastor parou no poste e tornou a observar em volta, para
ver se havia alguém. Não havia, e ele, sem a menor cerimônia, "regou" a
base do poste e foi em frente.
Era, realmente, um pastor bacana. Um belo exemplar de cão pastor alemão.
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Toquinhos de braços
Foi um caso sério. Nove meses exatos depois do casamento, começaram as
dores. E, como fosse o primeiro filho, telefonaram para o marido:
— Venha imediatamente!
O rapaz, lívido do outro lado da linha, perguntou:
— É pra já?
— Parece.
Ele se arremessou pela escada e acabou de vestir o paletó dentro do
táxi. Outros parentes foram avisados, vizinhos, o diabo. Como Marieta
era geralmente benquista, logo a casa se encheu de gente. A parteira já
estava no quarto e passavam criadas, com bacias e jarros. Na sala,
corredor e hall, havia a conjectura natural: “Menino? Menina?”. A prima
solteirona, muito religiosa, fazia promessas. Então, começou a tragédia.
Marieta gritou quatro dias e quatro noites. A criança não nascia e a
jovem mãe dizia, num intervalo de um grito para outro: “Eu não posso,
meu Deus, eu não agüento!”. O marido, descabelado e insone, soluçava na
sala de jantar e no corredor, como uma criança. Veio o médico e nada:
houve um momento em que a cesariana parecia inevitável. Finalmente, a
criança nasceu. E morta.
A MATERNIDADE
Na manhã seguinte, a rua em peso romanceava aquele parto. As vizinhas, de janela em janela, trocavam impressões:
— Quantos pontos?
— Dezenove!
— Que barbaridade!
O marido, Durval, dava graças a Deus que a mulher tivesse escapado,
viva, daquele sofrimento pavoroso. Em casa, com os parentes, foi
categórico: “Nunca mais! Nunca mais!”. Com isso queria dizer que não
queria mais filhos. Uns concordavam: — “Faz bem. É isso mesmo”. Outros
suspiravam: “Tão triste um casal sem filhos!”. Quanto a Marieta, muito
fraca, duma palidez apavorante, não estava ainda em condições de opinar.
Parecia defunta. Sua convalescença foi bastante lenta. Um dia, passeava
com o marido pelo jardim da casa. Ele, de braços com a mulher, repetiu:
“Nunca mais, meu anjo, nunca mais!”. Marieta estacou e ergueu para ele o
rosto pálido:
— Eu quero um filho. Pelo menos um!
— Mas você não pode, fulana!
E ela obstinada:
— Quero, sim, quero. Ouviu?
Vendo-a pálida, o lábio inferior tremendo, lágrimas nos olhos, Durval teve medo: “Está bem, minha filha, concordo, pronto”.
Três ou quatro meses depois, a notícia correu em meio dos amigos,
vizinhos e parentes: “Marieta apanhou barriga outra vez”. Os mais
assustadiços se perguntavam: “Será que vai ser a mesma agonia?”. Desta
vez, fizeram tudo. Tratamento de sangue, visita ao médico de quinze em
quinze dias, dieta, o diabo. O médico parecia otimista:
— Tudo OK. A criança está em boa posição. Por enquanto, não há novidade.
A roupinha toda do primeiro, do que nascera morto, estava lá intacta.
Mas a moça, muito supersticiosa, comprou um novo enxoval, com medo de um
azar possível. Fez promessas e não se separou do rosário e do livro de
orações. Até que, na data prevista, começaram as dores. E foi
matemático. Durante quatro dias e quatro noites, encheu a casa e as ruas
com seus gritos. O marido abotoou o médico no corredor: “Se minha
mu-lher morrer, eu te passo fogo!”. Quando Marieta já não tinha mais
forças e voz, a criança nasceu e morta. O marido, na cozinha, chorava de
cortar o coração:
— Mas por quê, meu Deus, por quê?
O que o aterrava era a constância da tragédia: dois filhos mortos!
Quanto a Marieta, perguntava: “Que foi que eu fiz? Eu não fiz nada! Eu
não merecia essa sorte!”. Ou, então, interpelava qualquer pessoa
presente:
— Por que é que as outras têm filhos e eu não posso ter?
A EXPLICAÇÃO
Essa maternidade frustrada era uma humilhação para ela. Sentia-se
inferiorizada perante as mulheres em geral e as vizinhas em particular.
Uma dessas tornara-se sua inimiga e a deixara de cumprimentar:
chamava-se d. Ifigênia, e entre uma e outra havia uma guerra contínua e
indireta. As duas se hostilizavam através de terceiros. Esse pavoroso
disse-que-me-disse excitava a rua inteira. Havia partidários de Marieta e
de Ifigênia. Pois bem, pois bem. Quando morreu o seu primeiro filho,
Marieta desabafou:
— Isso com certeza foi praga daquela cretina!
Praga ou não, o fato é que d. Ifigênia acompanhava, com o maior
interesse, o martírio da inimiga. Segundo os maledicentes, d. Ifigênia,
ao saber que o filho da outra morrera, fez o comentário: “Foi castigo!”.
Seria verdade? Seria mentira? Quem sabe? Uma coisa, porém, era verdade:
enquanto ela gritava com as dores, d. Ifigênia, em casa, cantava o
“Danúbio azul”. E, agora, Marieta vivia com a idéia fixa:
— Já sei por que que meus dois filhos morreram!
— Por quê?
E ela:
— Por causa dessa jararaca. No mínimo, fez alguma macumba!
— Ora, que bobagem!
Tentavam dissuadi-la: — “Parece criança!”. Mas não havia raciocínio que a
impressionasse. Seu ideal era ter um terceiro filho, e vivo. Imaginava o
despeito da outra quando a visse na calçada com a criança. E já
antegozava: — “Ela vai ficar com cara de tacho!”. Durval, ao lado,
ponderava:
— Toma juízo, Marieta! E, afinal, vem cá. Você quer o filho para irritar a vizinha?
— Quem sabe?
Enfim, ela se preparou para o terceiro parto, embora sob os protestos do
marido. Novas promessas, novos cuidados. Quando, já deformada, passava
pela casa da outra e a via na janela, cruzava os dedos. Finalmente,
chegou a grande hora. Em meio do seu sofrimento, fazia o apelo interior:
“Tomara que viva! Tomara que viva!”. Não lhe saía da cabeça a imagem da
vizinha na janela. Mas teve o filho e morto. D. Ifigênia soube e pôs
todo o volume do rádio. Como era um programa carnavalesco, Marieta teve,
para sua tragédia, um fundo de sambas e marchas.
O MARIDO
Uma semana depois, apareceu uma parenta velha. Foi encontrá-la numa
tristeza obtusa, irremediável. De vez em quando, Marieta interrompia a
conversa para perguntar: “Que mal fiz eu a Deus?”. A pessoa que no
momento estivesse presente não sabia o que dizer. Ou se limitava a uma
exclamação inócua: — “Que coisa!”. Esta parenta, porém, foi mais longe.
Baixou a voz: — “Eu conheço um caso assim. Parecidíssimo!”.
— Conhece?
Explicou que conhecia, sim, e, a pedido de Marieta, forneceu detalhes.
Era uma moça que perdia um filho atrás do outro. Sabe por quê? E
cochichou:
— Porque o sangue do marido e o da mulher não combinavam. Depois ele
morreu e ela casou outra vez. Pois teve cinco filhos, vivinhos da Silva,
e uns filhos que eram uns amores!
— Ora veja!
Foi o comentário único e maravilhado de Marieta.
Quando a parenta saiu, mergulhou numa ardente meditação. Era então isso?
Via o marido com outros olhos. Ele, como sempre, inclinou-se para
beijá-la. Desta vez, porém, ela fugiu instintivamente com o rosto. Sem
desfitá-lo, balbuciou: “Meu sangue e o teu não combinam!”. Durval teve
um momento de surpresa: “Que besteira é essa?”. Não era besteira, era um
sentimento que nascia em Marieta e que rompia das profundezas de seu
ser. Durante quatro ou cinco dias, não pensou noutra coisa. E, além do
mais: ela e o marido eram primos. Esse frágil, esse tênue parentesco
parecia confirmar a hipótese da velha: — “É isso! Batata que é isso!”.
Aconteceu que, nessa fase, passou pela porta da vizinha e a viu lá.
Fosse ilusão ou não, julgou perceber na outra uns ríctus sardônicos.
Voltou para casa desesperada. O marido teve que explodir:
— Você parece maluca! Você só pensa nessa mulher!
O PECADO
Como andasse muito nervosa, o médico recomendou que passasse de quinze
dias a um mês na montanha. Foi sozinha, porque o marido não podia
acompanhá-la. Na estação, ao despedir-se dele, disse, com uma certeza
fanática: “Hei de ter um filho”. Durval saiu pensando que a mulher era
dominada por uma psicose. No hotel da montanha, Marieta fez novas
amizades. E era muito vista com um rapaz, corretor de imóveis e viúvo,
forte, bonito, de um élan vital tremendo. Um domingo, o filho do rapaz,
um garoto de sete anos, apareceu por lá com uma tia. Foi olhando a
criança, loura, sadia, ideal, que ela se decidiu.
Dias depois, voltava subitamente para a cidade. Vinha outra,
transfigurada, um olhar mais doce e mais intenso, como alguém que,
enfim, conquista uma certeza maravilhosa. O marido a esperava; ela o
beijou, sôfrega. Mudara muito, cantarolava o dia todo e nunca a sua
feminilidade fora tão encantada. O próprio Durval a interrogava: “Que é
que há contigo?”. Uma tarde fez a revelação: — “Acho que estou!”. O
marido não disse nada para não magoá-la. Fez, porém, o comentário
interior: “Espeto!”.
O PARTO
E só pensava na vizinha: “Desta vez, ela vai ficar com cara de besta!”.
Sua gravidez transcorria tranqüila e feliz. Durval coçava a cabeça,
inquieto; mas o próprio médico não escondia o otimismo: — “Está tudo
OK”. Até que chegou o dia. As dores se tornaram mais curtas e intensas.
Desta vez, Marieta conseguia não gritar. Mordia o lençol. E, assim,
sufocando os próprios gemidos, não deu a d. Ifigênia o gostinho de abrir
o rádio. A expectativa do marido, do resto da família, do próprio
médico era tremenda. Nasce a criança. E a jovem mãe ouve o seu choro.
Então, faz um esforço para exclamar:
— Graças, meu Deus, graças!
Ela pensa na vizinha que ficará possessa. Mas o médico e a parteira não
sabem o que dizer. O menino não tem braços, ou, por outra, tem uns
toquinhos no lugar dos braços.
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