quarta-feira, 24 de agosto de 2011

O correr dos anos

Quem ficou contente foi Bonifácio Ponte Preta (o Patriota), com a inauguração da tal adutora do Guandu, que resolve o problema da água no Rio de Janeiro até o ano 2000. Tudo que é noticiário da imprensa sobre o assunto o Boni recorta e cola num álbum confeccionado por ele mesmo e que tem uma bonita fita verde-amarela, badalando na capa.

Por exemplo aquele artigo do David Nasser, que saiu no "O Cruzeiro', sob o título de “As águas da ingratidão", no qual o repórter começa assim: "As águas da ingratidão municipal começaram a rolar" e depois diz que "a obra do século", que quebrou o galho da falta de água até o ano 2000, foi inaugurada e se esquece, deliberada, criminosa e vergonhosamente do nome de Carlos Lacerda, que foi — segundo Nasser — o homem que botou o cano lá no rio, pois esse ai ligo — eu dizia - o Bonifácio achou tão bacana que comprou dez "O Cruzeiro" e colou tudo no álbum.

Estou contando o detalhe para mostrar que o patriótico Boni está exagerando às pampas, no seu fervor cívico pela obra. Ele não fala noutra coisa e ficou uma fera com o distraído Rosamundo, quando soube que o coitado nem tinha sabido dessa inauguração:

— Perfile-se! — berrou o Boni, assustando o Rosa: — Fique sabendo que estou lhe prestando uma informação que orgulha qualquer patrício, ouviu? Saiba, o senhor, que inauguraram o Guandu. Teremos água até o ano 2000.

Rosamundo ficou besta com que o outro lhe contou. Que coisa, não é mesmo? Água até o ano 2000!

Mas Rosamundo mora na zona do Centro, pois ainda não percebeu que aquilo não é zona residencial. Ontem ele passou os olhos pelos jornais e — como sempre — nem notou o que estava lendo, passando-lhe despercebida a notícia de que caiu uma ponte de Lajes, o que acarretou total falta de água no lugar onde ele mora.

E quando Rosamundo chegou em casa, ainda impressionado com o que lhe contara o patriótico Bonifácio sobre essa coisa de que não vai faltar água até o ano 2000, e abriu o chuveiro para um banho reparador, só caiu uma gotinha na cabeça dele e olhe lá.

Na sua proverbial vaguidão, ele comentou, apenas: — Puxa! Como os anos passaram depressa!
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Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).


Fonte: FEBEAPÁ 1: primeiro festival de besteira que assola o país / Stanislaw Ponte Preta; prefácio e ilustração de Jaguar. — 12. ed. — Rio de Janeiro; Civilização Brasileira, 1996.

O passeio do pastor

Para um pastor, francamente, acabara de ter um comportamento indigno: pulara o muro sorrateiramente e abandonara sua vigília, para farrear. Mal se viu na rua, o pastor olhou para os lados e reparou que não havia ninguém na rua que, de resto, àquela hora da madrugada costumava estar sempre deserta.

O pastor ficou satisfeito de não ter sido pressentido e seguiu caminhando junto ao muro, até atingir a esquina, onde parou indeciso.

Não parecia ter um caminho premeditado e, se alguém estivesse a observá-lo, acharia que fugira por fugir, apenas para entregar-se à aventura.

Afinal o pastor resolveu-se pela direita. Dobrou a rua e foi seguindo lampeiro, gozando sua liberdade. Foi aí que pareceu vislumbrar alguém do sexo oposto no jardim de uma bela residência. Parou e ficou observando.

Depois de alguns segundos atravessou a rua e tentou empurrar o portão do jardim. Devia estar trancado, mas isto não era problema para um pastor que, momentos antes, dera uma bela prova de destreza, galgando um muro bem mais alto.

Era um pastor danado aquele. Recuou um pouquinho, tomou distância e, pimba... pulou o portão e foi entrando pelo jardim tranqüilamente, para namorar à vontade. O que aconteceu lá dentro eu não vou contar que não estou aqui para dedurar pastor nenhum, mas que ele demorou lá dentro um tempo comprometedor, isto eu não vou negar.

O que eu sei é que passada quase uma hora (pelo menos uns 45 minutos, ele ficou lá dentro e os dois podiam ser vistos por um observador mais atento entre as sombras dos ciprestes que se prestavam muito para cenas românticas) mas — como eu dizia — passado o tempo comprometedor, o pastor voltou pelo mesmo caminho, isto é, pulou o portão, como um ladrão vulgar, e saiu para a rua.

Foi então que o pastor parou no poste e tornou a observar em volta, para ver se havia alguém. Não havia, e ele, sem a menor cerimônia, "regou" a base do poste e foi em frente.
Era, realmente, um pastor bacana. Um belo exemplar de cão pastor alemão.

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Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).


Fonte: FEBEAPÁ 1: primeiro festival de besteira que assola o país / Stanislaw Ponte Preta; prefácio e ilustração de Jaguar. — 12. ed. — Rio de Janeiro; Civilização Brasileira, 1996.

Toquinhos de braços

Foi um caso sério. Nove meses exatos depois do casamento, começaram as dores. E, como fosse o primeiro filho, telefonaram para o marido:

— Venha imediatamente!

O rapaz, lívido do outro lado da linha, perguntou:

— É pra já?

— Parece.

Ele se arremessou pela escada e acabou de vestir o paletó dentro do táxi. Outros parentes foram avisados, vizinhos, o diabo. Como Marieta era geralmente benquista, logo a casa se encheu de gente. A parteira já estava no quarto e passavam criadas, com bacias e jarros. Na sala, corredor e hall, havia a conjectura natural: “Menino? Menina?”. A prima solteirona, muito religiosa, fazia promessas. Então, começou a tragédia. Marieta gritou quatro dias e quatro noites. A criança não nascia e a jovem mãe dizia, num intervalo de um grito para outro: “Eu não posso, meu Deus, eu não agüento!”. O marido, descabelado e insone, soluçava na sala de jantar e no corredor, como uma criança. Veio o médico e nada: houve um momento em que a cesariana parecia inevitável. Finalmente, a criança nasceu. E morta.

A MATERNIDADE

Na manhã seguinte, a rua em peso romanceava aquele parto. As vizinhas, de janela em janela, trocavam impressões:

— Quantos pontos?

— Dezenove!

— Que barbaridade!

O marido, Durval, dava graças a Deus que a mulher tivesse escapado, viva, daquele sofrimento pavoroso. Em casa, com os parentes, foi categórico: “Nunca mais! Nunca mais!”. Com isso queria dizer que não queria mais filhos. Uns concordavam: — “Faz bem. É isso mesmo”. Outros suspiravam: “Tão triste um casal sem filhos!”. Quanto a Marieta, muito fraca, duma palidez apavorante, não estava ainda em condições de opinar. Parecia defunta. Sua convalescença foi bastante lenta. Um dia, passeava com o marido pelo jardim da casa. Ele, de braços com a mulher, repetiu: “Nunca mais, meu anjo, nunca mais!”. Marieta estacou e ergueu para ele o rosto pálido:

— Eu quero um filho. Pelo menos um!

— Mas você não pode, fulana!

E ela obstinada:

— Quero, sim, quero. Ouviu?

Vendo-a pálida, o lábio inferior tremendo, lágrimas nos olhos, Durval teve medo: “Está bem, minha filha, concordo, pronto”.

Três ou quatro meses depois, a notícia correu em meio dos amigos, vizinhos e parentes: “Marieta apanhou barriga outra vez”. Os mais assustadiços se perguntavam: “Será que vai ser a mesma agonia?”. Desta vez, fizeram tudo. Tratamento de sangue, visita ao médico de quinze em quinze dias, dieta, o diabo. O médico parecia otimista:

— Tudo OK. A criança está em boa posição. Por enquanto, não há novidade.

A roupinha toda do primeiro, do que nascera morto, estava lá intacta. Mas a moça, muito supersticiosa, comprou um novo enxoval, com medo de um azar possível. Fez promessas e não se separou do rosário e do livro de orações. Até que, na data prevista, começaram as dores. E foi matemático. Durante quatro dias e quatro noites, encheu a casa e as ruas com seus gritos. O marido abotoou o médico no corredor: “Se minha mu-lher morrer, eu te passo fogo!”. Quando Marieta já não tinha mais forças e voz, a criança nasceu e morta. O marido, na cozinha, chorava de cortar o coração:

— Mas por quê, meu Deus, por quê?

O que o aterrava era a constância da tragédia: dois filhos mortos! Quanto a Marieta, perguntava: “Que foi que eu fiz? Eu não fiz nada! Eu não merecia essa sorte!”. Ou, então, interpelava qualquer pessoa presente:

— Por que é que as outras têm filhos e eu não posso ter?

A EXPLICAÇÃO

Essa maternidade frustrada era uma humilhação para ela. Sentia-se inferiorizada perante as mulheres em geral e as vizinhas em particular. Uma dessas tornara-se sua inimiga e a deixara de cumprimentar: chamava-se d. Ifigênia, e entre uma e outra havia uma guerra contínua e indireta. As duas se hostilizavam através de terceiros. Esse pavoroso disse-que-me-disse excitava a rua inteira. Havia partidários de Marieta e de Ifigênia. Pois bem, pois bem. Quando morreu o seu primeiro filho, Marieta desabafou:

— Isso com certeza foi praga daquela cretina!

Praga ou não, o fato é que d. Ifigênia acompanhava, com o maior interesse, o martírio da inimiga. Segundo os maledicentes, d. Ifigênia, ao saber que o filho da outra morrera, fez o comentário: “Foi castigo!”. Seria verdade? Seria mentira? Quem sabe? Uma coisa, porém, era verdade: enquanto ela gritava com as dores, d. Ifigênia, em casa, cantava o “Danúbio azul”. E, agora, Marieta vivia com a idéia fixa:

— Já sei por que que meus dois filhos morreram!

— Por quê?

E ela:

— Por causa dessa jararaca. No mínimo, fez alguma macumba!

— Ora, que bobagem!

Tentavam dissuadi-la: — “Parece criança!”. Mas não havia raciocínio que a impressionasse. Seu ideal era ter um terceiro filho, e vivo. Imaginava o despeito da outra quando a visse na calçada com a criança. E já antegozava: — “Ela vai ficar com cara de tacho!”. Durval, ao lado, ponderava:

— Toma juízo, Marieta! E, afinal, vem cá. Você quer o filho para irritar a vizinha?

— Quem sabe?

Enfim, ela se preparou para o terceiro parto, embora sob os protestos do marido. Novas promessas, novos cuidados. Quando, já deformada, passava pela casa da outra e a via na janela, cruzava os dedos. Finalmente, chegou a grande hora. Em meio do seu sofrimento, fazia o apelo interior: “Tomara que viva! Tomara que viva!”. Não lhe saía da cabeça a imagem da vizinha na janela. Mas teve o filho e morto. D. Ifigênia soube e pôs todo o volume do rádio. Como era um programa carnavalesco, Marieta teve, para sua tragédia, um fundo de sambas e marchas.

O MARIDO

Uma semana depois, apareceu uma parenta velha. Foi encontrá-la numa tristeza obtusa, irremediável. De vez em quando, Marieta interrompia a conversa para perguntar: “Que mal fiz eu a Deus?”. A pessoa que no momento estivesse presente não sabia o que dizer. Ou se limitava a uma exclamação inócua: — “Que coisa!”. Esta parenta, porém, foi mais longe. Baixou a voz: — “Eu conheço um caso assim. Parecidíssimo!”.

— Conhece?

Explicou que conhecia, sim, e, a pedido de Marieta, forneceu detalhes. Era uma moça que perdia um filho atrás do outro. Sabe por quê? E cochichou:

— Porque o sangue do marido e o da mulher não combinavam. Depois ele morreu e ela casou outra vez. Pois teve cinco filhos, vivinhos da Silva, e uns filhos que eram uns amores!

— Ora veja!

Foi o comentário único e maravilhado de Marieta.

Quando a parenta saiu, mergulhou numa ardente meditação. Era então isso? Via o marido com outros olhos. Ele, como sempre, inclinou-se para beijá-la. Desta vez, porém, ela fugiu instintivamente com o rosto. Sem desfitá-lo, balbuciou: “Meu sangue e o teu não combinam!”. Durval teve um momento de surpresa: “Que besteira é essa?”. Não era besteira, era um sentimento que nascia em Marieta e que rompia das profundezas de seu ser. Durante quatro ou cinco dias, não pensou noutra coisa. E, além do mais: ela e o marido eram primos. Esse frágil, esse tênue parentesco parecia confirmar a hipótese da velha: — “É isso! Batata que é isso!”. Aconteceu que, nessa fase, passou pela porta da vizinha e a viu lá. Fosse ilusão ou não, julgou perceber na outra uns ríctus sardônicos. Voltou para casa desesperada. O marido teve que explodir:

— Você parece maluca! Você só pensa nessa mulher!

O PECADO

Como andasse muito nervosa, o médico recomendou que passasse de quinze dias a um mês na montanha. Foi sozinha, porque o marido não podia acompanhá-la. Na estação, ao despedir-se dele, disse, com uma certeza fanática: “Hei de ter um filho”. Durval saiu pensando que a mulher era dominada por uma psicose. No hotel da montanha, Marieta fez novas amizades. E era muito vista com um rapaz, corretor de imóveis e viúvo, forte, bonito, de um élan vital tremendo. Um domingo, o filho do rapaz, um garoto de sete anos, apareceu por lá com uma tia. Foi olhando a criança, loura, sadia, ideal, que ela se decidiu.

Dias depois, voltava subitamente para a cidade. Vinha outra, transfigurada, um olhar mais doce e mais intenso, como alguém que, enfim, conquista uma certeza maravilhosa. O marido a esperava; ela o beijou, sôfrega. Mudara muito, cantarolava o dia todo e nunca a sua feminilidade fora tão encantada. O próprio Durval a interrogava: “Que é que há contigo?”. Uma tarde fez a revelação: — “Acho que estou!”. O marido não disse nada para não magoá-la. Fez, porém, o comentário interior: “Espeto!”.

O PARTO

E só pensava na vizinha: “Desta vez, ela vai ficar com cara de besta!”. Sua gravidez transcorria tranqüila e feliz. Durval coçava a cabeça, inquieto; mas o próprio médico não escondia o otimismo: — “Está tudo OK”. Até que chegou o dia. As dores se tornaram mais curtas e intensas. Desta vez, Marieta conseguia não gritar. Mordia o lençol. E, assim, sufocando os próprios gemidos, não deu a d. Ifigênia o gostinho de abrir o rádio. A expectativa do marido, do resto da família, do próprio médico era tremenda. Nasce a criança. E a jovem mãe ouve o seu choro. Então, faz um esforço para exclamar:

— Graças, meu Deus, graças!

Ela pensa na vizinha que ficará possessa. Mas o médico e a parteira não sabem o que dizer. O menino não tem braços, ou, por outra, tem uns toquinhos no lugar dos braços.

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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.