Foi um caso sério. Nove meses exatos depois do casamento, começaram as
dores. E, como fosse o primeiro filho, telefonaram para o marido:
— Venha imediatamente!
O rapaz, lívido do outro lado da linha, perguntou:
— É pra já?
— Parece.
Ele se arremessou pela escada e acabou de vestir o paletó dentro do
táxi. Outros parentes foram avisados, vizinhos, o diabo. Como Marieta
era geralmente benquista, logo a casa se encheu de gente. A parteira já
estava no quarto e passavam criadas, com bacias e jarros. Na sala,
corredor e hall, havia a conjectura natural: “Menino? Menina?”. A prima
solteirona, muito religiosa, fazia promessas. Então, começou a tragédia.
Marieta gritou quatro dias e quatro noites. A criança não nascia e a
jovem mãe dizia, num intervalo de um grito para outro: “Eu não posso,
meu Deus, eu não agüento!”. O marido, descabelado e insone, soluçava na
sala de jantar e no corredor, como uma criança. Veio o médico e nada:
houve um momento em que a cesariana parecia inevitável. Finalmente, a
criança nasceu. E morta.
A MATERNIDADE
Na manhã seguinte, a rua em peso romanceava aquele parto. As vizinhas, de janela em janela, trocavam impressões:
— Quantos pontos?
— Dezenove!
— Que barbaridade!
O marido, Durval, dava graças a Deus que a mulher tivesse escapado,
viva, daquele sofrimento pavoroso. Em casa, com os parentes, foi
categórico: “Nunca mais! Nunca mais!”. Com isso queria dizer que não
queria mais filhos. Uns concordavam: — “Faz bem. É isso mesmo”. Outros
suspiravam: “Tão triste um casal sem filhos!”. Quanto a Marieta, muito
fraca, duma palidez apavorante, não estava ainda em condições de opinar.
Parecia defunta. Sua convalescença foi bastante lenta. Um dia, passeava
com o marido pelo jardim da casa. Ele, de braços com a mulher, repetiu:
“Nunca mais, meu anjo, nunca mais!”. Marieta estacou e ergueu para ele o
rosto pálido:
— Eu quero um filho. Pelo menos um!
— Mas você não pode, fulana!
E ela obstinada:
— Quero, sim, quero. Ouviu?
Vendo-a pálida, o lábio inferior tremendo, lágrimas nos olhos, Durval teve medo: “Está bem, minha filha, concordo, pronto”.
Três ou quatro meses depois, a notícia correu em meio dos amigos,
vizinhos e parentes: “Marieta apanhou barriga outra vez”. Os mais
assustadiços se perguntavam: “Será que vai ser a mesma agonia?”. Desta
vez, fizeram tudo. Tratamento de sangue, visita ao médico de quinze em
quinze dias, dieta, o diabo. O médico parecia otimista:
— Tudo OK. A criança está em boa posição. Por enquanto, não há novidade.
A roupinha toda do primeiro, do que nascera morto, estava lá intacta.
Mas a moça, muito supersticiosa, comprou um novo enxoval, com medo de um
azar possível. Fez promessas e não se separou do rosário e do livro de
orações. Até que, na data prevista, começaram as dores. E foi
matemático. Durante quatro dias e quatro noites, encheu a casa e as ruas
com seus gritos. O marido abotoou o médico no corredor: “Se minha
mu-lher morrer, eu te passo fogo!”. Quando Marieta já não tinha mais
forças e voz, a criança nasceu e morta. O marido, na cozinha, chorava de
cortar o coração:
— Mas por quê, meu Deus, por quê?
O que o aterrava era a constância da tragédia: dois filhos mortos!
Quanto a Marieta, perguntava: “Que foi que eu fiz? Eu não fiz nada! Eu
não merecia essa sorte!”. Ou, então, interpelava qualquer pessoa
presente:
— Por que é que as outras têm filhos e eu não posso ter?
A EXPLICAÇÃO
Essa maternidade frustrada era uma humilhação para ela. Sentia-se
inferiorizada perante as mulheres em geral e as vizinhas em particular.
Uma dessas tornara-se sua inimiga e a deixara de cumprimentar:
chamava-se d. Ifigênia, e entre uma e outra havia uma guerra contínua e
indireta. As duas se hostilizavam através de terceiros. Esse pavoroso
disse-que-me-disse excitava a rua inteira. Havia partidários de Marieta e
de Ifigênia. Pois bem, pois bem. Quando morreu o seu primeiro filho,
Marieta desabafou:
— Isso com certeza foi praga daquela cretina!
Praga ou não, o fato é que d. Ifigênia acompanhava, com o maior
interesse, o martírio da inimiga. Segundo os maledicentes, d. Ifigênia,
ao saber que o filho da outra morrera, fez o comentário: “Foi castigo!”.
Seria verdade? Seria mentira? Quem sabe? Uma coisa, porém, era verdade:
enquanto ela gritava com as dores, d. Ifigênia, em casa, cantava o
“Danúbio azul”. E, agora, Marieta vivia com a idéia fixa:
— Já sei por que que meus dois filhos morreram!
— Por quê?
E ela:
— Por causa dessa jararaca. No mínimo, fez alguma macumba!
— Ora, que bobagem!
Tentavam dissuadi-la: — “Parece criança!”. Mas não havia raciocínio que a
impressionasse. Seu ideal era ter um terceiro filho, e vivo. Imaginava o
despeito da outra quando a visse na calçada com a criança. E já
antegozava: — “Ela vai ficar com cara de tacho!”. Durval, ao lado,
ponderava:
— Toma juízo, Marieta! E, afinal, vem cá. Você quer o filho para irritar a vizinha?
— Quem sabe?
Enfim, ela se preparou para o terceiro parto, embora sob os protestos do
marido. Novas promessas, novos cuidados. Quando, já deformada, passava
pela casa da outra e a via na janela, cruzava os dedos. Finalmente,
chegou a grande hora. Em meio do seu sofrimento, fazia o apelo interior:
“Tomara que viva! Tomara que viva!”. Não lhe saía da cabeça a imagem da
vizinha na janela. Mas teve o filho e morto. D. Ifigênia soube e pôs
todo o volume do rádio. Como era um programa carnavalesco, Marieta teve,
para sua tragédia, um fundo de sambas e marchas.
O MARIDO
Uma semana depois, apareceu uma parenta velha. Foi encontrá-la numa
tristeza obtusa, irremediável. De vez em quando, Marieta interrompia a
conversa para perguntar: “Que mal fiz eu a Deus?”. A pessoa que no
momento estivesse presente não sabia o que dizer. Ou se limitava a uma
exclamação inócua: — “Que coisa!”. Esta parenta, porém, foi mais longe.
Baixou a voz: — “Eu conheço um caso assim. Parecidíssimo!”.
— Conhece?
Explicou que conhecia, sim, e, a pedido de Marieta, forneceu detalhes.
Era uma moça que perdia um filho atrás do outro. Sabe por quê? E
cochichou:
— Porque o sangue do marido e o da mulher não combinavam. Depois ele
morreu e ela casou outra vez. Pois teve cinco filhos, vivinhos da Silva,
e uns filhos que eram uns amores!
— Ora veja!
Foi o comentário único e maravilhado de Marieta.
Quando a parenta saiu, mergulhou numa ardente meditação. Era então isso?
Via o marido com outros olhos. Ele, como sempre, inclinou-se para
beijá-la. Desta vez, porém, ela fugiu instintivamente com o rosto. Sem
desfitá-lo, balbuciou: “Meu sangue e o teu não combinam!”. Durval teve
um momento de surpresa: “Que besteira é essa?”. Não era besteira, era um
sentimento que nascia em Marieta e que rompia das profundezas de seu
ser. Durante quatro ou cinco dias, não pensou noutra coisa. E, além do
mais: ela e o marido eram primos. Esse frágil, esse tênue parentesco
parecia confirmar a hipótese da velha: — “É isso! Batata que é isso!”.
Aconteceu que, nessa fase, passou pela porta da vizinha e a viu lá.
Fosse ilusão ou não, julgou perceber na outra uns ríctus sardônicos.
Voltou para casa desesperada. O marido teve que explodir:
— Você parece maluca! Você só pensa nessa mulher!
O PECADO
Como andasse muito nervosa, o médico recomendou que passasse de quinze
dias a um mês na montanha. Foi sozinha, porque o marido não podia
acompanhá-la. Na estação, ao despedir-se dele, disse, com uma certeza
fanática: “Hei de ter um filho”. Durval saiu pensando que a mulher era
dominada por uma psicose. No hotel da montanha, Marieta fez novas
amizades. E era muito vista com um rapaz, corretor de imóveis e viúvo,
forte, bonito, de um élan vital tremendo. Um domingo, o filho do rapaz,
um garoto de sete anos, apareceu por lá com uma tia. Foi olhando a
criança, loura, sadia, ideal, que ela se decidiu.
Dias depois, voltava subitamente para a cidade. Vinha outra,
transfigurada, um olhar mais doce e mais intenso, como alguém que,
enfim, conquista uma certeza maravilhosa. O marido a esperava; ela o
beijou, sôfrega. Mudara muito, cantarolava o dia todo e nunca a sua
feminilidade fora tão encantada. O próprio Durval a interrogava: “Que é
que há contigo?”. Uma tarde fez a revelação: — “Acho que estou!”. O
marido não disse nada para não magoá-la. Fez, porém, o comentário
interior: “Espeto!”.
O PARTO
E só pensava na vizinha: “Desta vez, ela vai ficar com cara de besta!”.
Sua gravidez transcorria tranqüila e feliz. Durval coçava a cabeça,
inquieto; mas o próprio médico não escondia o otimismo: — “Está tudo
OK”. Até que chegou o dia. As dores se tornaram mais curtas e intensas.
Desta vez, Marieta conseguia não gritar. Mordia o lençol. E, assim,
sufocando os próprios gemidos, não deu a d. Ifigênia o gostinho de abrir
o rádio. A expectativa do marido, do resto da família, do próprio
médico era tremenda. Nasce a criança. E a jovem mãe ouve o seu choro.
Então, faz um esforço para exclamar:
— Graças, meu Deus, graças!
Ela pensa na vizinha que ficará possessa. Mas o médico e a parteira não
sabem o que dizer. O menino não tem braços, ou, por outra, tem uns
toquinhos no lugar dos braços.
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quarta-feira, 24 de agosto de 2011
Toquinhos de braços
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