quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Toquinhos de braços

Foi um caso sério. Nove meses exatos depois do casamento, começaram as dores. E, como fosse o primeiro filho, telefonaram para o marido:

— Venha imediatamente!

O rapaz, lívido do outro lado da linha, perguntou:

— É pra já?

— Parece.

Ele se arremessou pela escada e acabou de vestir o paletó dentro do táxi. Outros parentes foram avisados, vizinhos, o diabo. Como Marieta era geralmente benquista, logo a casa se encheu de gente. A parteira já estava no quarto e passavam criadas, com bacias e jarros. Na sala, corredor e hall, havia a conjectura natural: “Menino? Menina?”. A prima solteirona, muito religiosa, fazia promessas. Então, começou a tragédia. Marieta gritou quatro dias e quatro noites. A criança não nascia e a jovem mãe dizia, num intervalo de um grito para outro: “Eu não posso, meu Deus, eu não agüento!”. O marido, descabelado e insone, soluçava na sala de jantar e no corredor, como uma criança. Veio o médico e nada: houve um momento em que a cesariana parecia inevitável. Finalmente, a criança nasceu. E morta.

A MATERNIDADE

Na manhã seguinte, a rua em peso romanceava aquele parto. As vizinhas, de janela em janela, trocavam impressões:

— Quantos pontos?

— Dezenove!

— Que barbaridade!

O marido, Durval, dava graças a Deus que a mulher tivesse escapado, viva, daquele sofrimento pavoroso. Em casa, com os parentes, foi categórico: “Nunca mais! Nunca mais!”. Com isso queria dizer que não queria mais filhos. Uns concordavam: — “Faz bem. É isso mesmo”. Outros suspiravam: “Tão triste um casal sem filhos!”. Quanto a Marieta, muito fraca, duma palidez apavorante, não estava ainda em condições de opinar. Parecia defunta. Sua convalescença foi bastante lenta. Um dia, passeava com o marido pelo jardim da casa. Ele, de braços com a mulher, repetiu: “Nunca mais, meu anjo, nunca mais!”. Marieta estacou e ergueu para ele o rosto pálido:

— Eu quero um filho. Pelo menos um!

— Mas você não pode, fulana!

E ela obstinada:

— Quero, sim, quero. Ouviu?

Vendo-a pálida, o lábio inferior tremendo, lágrimas nos olhos, Durval teve medo: “Está bem, minha filha, concordo, pronto”.

Três ou quatro meses depois, a notícia correu em meio dos amigos, vizinhos e parentes: “Marieta apanhou barriga outra vez”. Os mais assustadiços se perguntavam: “Será que vai ser a mesma agonia?”. Desta vez, fizeram tudo. Tratamento de sangue, visita ao médico de quinze em quinze dias, dieta, o diabo. O médico parecia otimista:

— Tudo OK. A criança está em boa posição. Por enquanto, não há novidade.

A roupinha toda do primeiro, do que nascera morto, estava lá intacta. Mas a moça, muito supersticiosa, comprou um novo enxoval, com medo de um azar possível. Fez promessas e não se separou do rosário e do livro de orações. Até que, na data prevista, começaram as dores. E foi matemático. Durante quatro dias e quatro noites, encheu a casa e as ruas com seus gritos. O marido abotoou o médico no corredor: “Se minha mu-lher morrer, eu te passo fogo!”. Quando Marieta já não tinha mais forças e voz, a criança nasceu e morta. O marido, na cozinha, chorava de cortar o coração:

— Mas por quê, meu Deus, por quê?

O que o aterrava era a constância da tragédia: dois filhos mortos! Quanto a Marieta, perguntava: “Que foi que eu fiz? Eu não fiz nada! Eu não merecia essa sorte!”. Ou, então, interpelava qualquer pessoa presente:

— Por que é que as outras têm filhos e eu não posso ter?

A EXPLICAÇÃO

Essa maternidade frustrada era uma humilhação para ela. Sentia-se inferiorizada perante as mulheres em geral e as vizinhas em particular. Uma dessas tornara-se sua inimiga e a deixara de cumprimentar: chamava-se d. Ifigênia, e entre uma e outra havia uma guerra contínua e indireta. As duas se hostilizavam através de terceiros. Esse pavoroso disse-que-me-disse excitava a rua inteira. Havia partidários de Marieta e de Ifigênia. Pois bem, pois bem. Quando morreu o seu primeiro filho, Marieta desabafou:

— Isso com certeza foi praga daquela cretina!

Praga ou não, o fato é que d. Ifigênia acompanhava, com o maior interesse, o martírio da inimiga. Segundo os maledicentes, d. Ifigênia, ao saber que o filho da outra morrera, fez o comentário: “Foi castigo!”. Seria verdade? Seria mentira? Quem sabe? Uma coisa, porém, era verdade: enquanto ela gritava com as dores, d. Ifigênia, em casa, cantava o “Danúbio azul”. E, agora, Marieta vivia com a idéia fixa:

— Já sei por que que meus dois filhos morreram!

— Por quê?

E ela:

— Por causa dessa jararaca. No mínimo, fez alguma macumba!

— Ora, que bobagem!

Tentavam dissuadi-la: — “Parece criança!”. Mas não havia raciocínio que a impressionasse. Seu ideal era ter um terceiro filho, e vivo. Imaginava o despeito da outra quando a visse na calçada com a criança. E já antegozava: — “Ela vai ficar com cara de tacho!”. Durval, ao lado, ponderava:

— Toma juízo, Marieta! E, afinal, vem cá. Você quer o filho para irritar a vizinha?

— Quem sabe?

Enfim, ela se preparou para o terceiro parto, embora sob os protestos do marido. Novas promessas, novos cuidados. Quando, já deformada, passava pela casa da outra e a via na janela, cruzava os dedos. Finalmente, chegou a grande hora. Em meio do seu sofrimento, fazia o apelo interior: “Tomara que viva! Tomara que viva!”. Não lhe saía da cabeça a imagem da vizinha na janela. Mas teve o filho e morto. D. Ifigênia soube e pôs todo o volume do rádio. Como era um programa carnavalesco, Marieta teve, para sua tragédia, um fundo de sambas e marchas.

O MARIDO

Uma semana depois, apareceu uma parenta velha. Foi encontrá-la numa tristeza obtusa, irremediável. De vez em quando, Marieta interrompia a conversa para perguntar: “Que mal fiz eu a Deus?”. A pessoa que no momento estivesse presente não sabia o que dizer. Ou se limitava a uma exclamação inócua: — “Que coisa!”. Esta parenta, porém, foi mais longe. Baixou a voz: — “Eu conheço um caso assim. Parecidíssimo!”.

— Conhece?

Explicou que conhecia, sim, e, a pedido de Marieta, forneceu detalhes. Era uma moça que perdia um filho atrás do outro. Sabe por quê? E cochichou:

— Porque o sangue do marido e o da mulher não combinavam. Depois ele morreu e ela casou outra vez. Pois teve cinco filhos, vivinhos da Silva, e uns filhos que eram uns amores!

— Ora veja!

Foi o comentário único e maravilhado de Marieta.

Quando a parenta saiu, mergulhou numa ardente meditação. Era então isso? Via o marido com outros olhos. Ele, como sempre, inclinou-se para beijá-la. Desta vez, porém, ela fugiu instintivamente com o rosto. Sem desfitá-lo, balbuciou: “Meu sangue e o teu não combinam!”. Durval teve um momento de surpresa: “Que besteira é essa?”. Não era besteira, era um sentimento que nascia em Marieta e que rompia das profundezas de seu ser. Durante quatro ou cinco dias, não pensou noutra coisa. E, além do mais: ela e o marido eram primos. Esse frágil, esse tênue parentesco parecia confirmar a hipótese da velha: — “É isso! Batata que é isso!”. Aconteceu que, nessa fase, passou pela porta da vizinha e a viu lá. Fosse ilusão ou não, julgou perceber na outra uns ríctus sardônicos. Voltou para casa desesperada. O marido teve que explodir:

— Você parece maluca! Você só pensa nessa mulher!

O PECADO

Como andasse muito nervosa, o médico recomendou que passasse de quinze dias a um mês na montanha. Foi sozinha, porque o marido não podia acompanhá-la. Na estação, ao despedir-se dele, disse, com uma certeza fanática: “Hei de ter um filho”. Durval saiu pensando que a mulher era dominada por uma psicose. No hotel da montanha, Marieta fez novas amizades. E era muito vista com um rapaz, corretor de imóveis e viúvo, forte, bonito, de um élan vital tremendo. Um domingo, o filho do rapaz, um garoto de sete anos, apareceu por lá com uma tia. Foi olhando a criança, loura, sadia, ideal, que ela se decidiu.

Dias depois, voltava subitamente para a cidade. Vinha outra, transfigurada, um olhar mais doce e mais intenso, como alguém que, enfim, conquista uma certeza maravilhosa. O marido a esperava; ela o beijou, sôfrega. Mudara muito, cantarolava o dia todo e nunca a sua feminilidade fora tão encantada. O próprio Durval a interrogava: “Que é que há contigo?”. Uma tarde fez a revelação: — “Acho que estou!”. O marido não disse nada para não magoá-la. Fez, porém, o comentário interior: “Espeto!”.

O PARTO

E só pensava na vizinha: “Desta vez, ela vai ficar com cara de besta!”. Sua gravidez transcorria tranqüila e feliz. Durval coçava a cabeça, inquieto; mas o próprio médico não escondia o otimismo: — “Está tudo OK”. Até que chegou o dia. As dores se tornaram mais curtas e intensas. Desta vez, Marieta conseguia não gritar. Mordia o lençol. E, assim, sufocando os próprios gemidos, não deu a d. Ifigênia o gostinho de abrir o rádio. A expectativa do marido, do resto da família, do próprio médico era tremenda. Nasce a criança. E a jovem mãe ouve o seu choro. Então, faz um esforço para exclamar:

— Graças, meu Deus, graças!

Ela pensa na vizinha que ficará possessa. Mas o médico e a parteira não sabem o que dizer. O menino não tem braços, ou, por outra, tem uns toquinhos no lugar dos braços.

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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

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