quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Testemunha ocular

Ele estava no aeroporto. Acabara de chegar e ia tomar o avião para o Rio. Sim, porque esta história aconteceu em São Paulo.

Ele acabara de chegar no aeroporto, como ficou dito, quando viu um homem que se dirigia com passos largos, pisando duro, em direção à moça que estava ao seu lado, na fila para apanhar a confirmação de viagem. O sujeito chegou e não falou muito. Disse apenas:

— Sua ingrata. Não pense que vai fugir de mim assim não — e no que disse isso, tacou a mão na mocinha. Essa não era tão mocinha assim, pois soltou um xingamento desses que não se leva para casa nem quando se mora em pensão. E lascou a bolsa na cara do homem. Os dois se atracaram no mais belo estilo vale-tudo e ele — que assistia de perto — tentou separar o belicoso casal.

Houve o natural tumulto, veio gente, veio um guarda e a coisa acabou como acaba sempre: tudo no distrito.

Tudo no distrito, inclusive ele, que já ia tomar o avião, mas que teve de ir também, convocado pela autoridade na qualidade de testemunha ocular.

Em frente à mesa do comissário (um baixinho de bigode, doido para acabar com aquilo) o casal continuou discutindo e o homem mentiu, afirmando que fora agredido pela mulher. Ele — muito cônscio de sua condição de testemunha ocular — protestou:

— Não é verdade, seu comissário. Eu vi tudo. Foi ele que avançou para ela e deu um bofetão.

— CALE-SE!!! — berrou o comissário.

— Mas é que...

— CALE-SE!!! — tornou a berrar o distinto policial, com aquele tom educado das autoridades policiais.

Ele calou-se, já lamentando horrivelmente ter sido arrolado como testemunha ocular. Ficou calado, preferindo que todos se esquecessem de sua presença e ia-se dando muito bem com esta jogada até o momento em que a mulher que apanhara apontou para ele e disse para o comissário:

— Se esse cretino não se tivesse metido, não tinha acontecido nada disto.

— Eu??? — estranhou ele, apontando para o próprio peito.

— O senhor mesmo, seu intrometido.

— Mas foi ele quem a agrediu, minha senhora.

— Mentira — berrou o homem. — Eu apenas fui lá para impedir o embarque dela para a casa dos pais. Tivemos uma briguinha sem importância em casa e ela, coitadinha, que anda muito nervosa, quis voltar para casa dos pais. (Dito isto, abraçou a mulher que pouco antes chamara de ingrata e premiara com uma bolacha. Ela se aconchegou no abraço, a sem-vergonha.)

E ele ali, um misto de palhaço e testemunha ocular. Quis apelar para o guarda que o trouxera, mas este já retornara ao posto. Estava a procurá-lo com um olhar circulante pela sala, quando ouviu o comissário mandando o casal embora.

— Tratem de fazer as pazes e não perturbar em público.

O casal agradeceu e saiu abraçado, tendo a mulher, ao virar-se, lançado-lhe um olhar de profundo desprezo. E, quando os dois saíram, virou-se para o comissário e sorriu:

— Doutor, palavra de honra que eu...

Mas o comissário cortou-lhe a frase com um novo berro. Em seguida aconselhou-o a não se meter mais em encrencas por causa de briguinhas sem importância entre casais em lua-de-mel.

— Eu só vim aqui para ajudar — admitiu ele, com certa dignidade.

— CALE-SE!!! — berrou o comissário: — E some daqui antes que eu o prenda...

Não precisou ouvir segunda ordem. Apanhou a valise e saiu com ódio de si mesmo. "Bem feito" — ia pensando — "que é que eu tinha que entrar nessa encrenca?". Entrou em casa chateado, ainda mais porque perdera o avião e a hora em que tinha de estar no Rio para assinar as escrituras com o corretor. Tratou de afrouxar o laço da gravata e pedir uma ligação interurbana, a fim de dar uma explicação ao patrão.

Somente no dia seguinte retornou ao aeroporto para fazer a viagem. Saiu de casa cedo e foi para a esquina apanhar um táxi.

Foi quando houve o assalto. Ia passando por um café quando três sujeitos saíram lá de dentro, atirando a esmo, para abrir caminho. Ele — coitado — ficou entre os três, com a mão na cabeça sem saber se corria ou se encolhia. Os assaltantes entraram num carro que já os aguardava de motor ligado e sumiram no fim da rua. Logo acorreram pessoas de todos os lados, na base do que foi, do que não foi. Um guarda tentava saber o que acontecera, quando um senhor gordo, que parecia ser o dono do bar assaltado, apontou para ele e disse:

— Seu guarda, esse homem viu tudo. Os assaltantes passaram por ele.

O guarda se encaminhou para ele e perguntou:

— O senhor viu quando eles deram os tiros?

E ele, com a cara mais cínica do mundo:

— Tiros? Que tiros???
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Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte: O MELHOR DE STANISLAW - Crônicas Escolhidas - Seleção e organização de Valdemar Cavalcanti - Ilustrações de JAGUAR - 2.a edição - Rio - 1979 - Livraria José Olympio Editora

Por que fevereiro tem apenas 28 dias?

No ano de 46 a.C. o imperador romano Júlio César promoveu uma reforma no calendário: um dia foi acrescentado a cada quatro anos – daí o ano bissexto – e os meses passaram a ter, alternadamente, trinta ou 31 dias. Nos anos bissextos, o mês de fevereiro, que já tinha 29 dias, ficava com trinta.

Em 44 a.C., no segundo ano de vigência desse calendário Juliano, o Senado decidiu homenagear o imperador e propôs que o mês Quintilis – que tinha 31 dias – passasse a se chamar Julius (julho).

Trinta e seis anos depois, em 8 a.C., o nome do oitavo mês, Sextilis, foi mudado para Augustus (agosto) em honra para o então imperador César Augusto. Mas, como o mês escolhido para homenagear Augusto tinha trinta dias, um a menos que o de Júlio César, optou-se por tirar um dia de fevereiro – que ficou com 28 dias – e adicioná-lo a Sextilis.

Para manter o critério de alternância do Calendário Juliano – um mês com trinta, outro com 31 dias –, já que agosto ficou com 31 dias, setembro passou a ter 30 e assim sucessivamente.

Fonte: Sobre Tudo Um Pouco.

Guerra de Tróia, mito ou realidade?

A guerra entre troianos e gregos talvez nem tenha acontecido. Se aconteceu, a causa pode não ter sido o rapto de Helena. Como pode não ter existido o famoso cavalo de madeira que iludiu os troianos: quem sabe os gregos atacaram pelo mar. “Quando a lenda fica mais interessante do que a realidade, publique-se a lenda”. (John Ford, cineasta americano).

Melhor exemplo dessa verdade não existe do que a Guerra de Tróia. com seu cavalo fantático, o rapto de Helena pelo apaixonado Páris, o herói Aquiles e seu calcanhar vulnerável, os deuses e as deusas do Olimpo assanhadíssimos, divididos entre gregos e troianos e fazendo, periodicamente, com que a sorte favorecesse um ou outro lado graças aos seus poderes divinos. Tudo isso está contado na Ilíada, poema épico de Homero, escrito aí pelo século IX a.C.

Mais recente e quase tão fantasiosa quanto a lenda que pretende conferir, é a batalha travada há bem uns cem anos por historiadores e arqueólogos em torno do que haveria de verdade nos episódios narrados por Homero. A lenda conta que a guerra foi provocada pelo rapto de Helena, a filha de Tíndaro, o rei de Esparta. Helena era tão bonita, tinha tantos pretendentes, que seu pai já previa alguma coisa desse tipo, tanto que promoveu uma grande reunião de todos os interessados e obteve deles um compromisso: qualquer que fosse o escolhido por Helena, os demais se comprometiam a defender o casal contra as ofensas que pudesse sofrer.

Helena escolheu Menelau, que graças a essa preferência tornou-se, além de seu marido, rei de Esparta. E a vida correu feliz e serena até o dia em que Páris, filho do rei de Tróia, Príamo, conheceu Helena e por ela se apaixonou. Páris não tinha sido um dos pretendentes preferidos, não estava amarrado ao compromisso por Tíndaro, e fez o que era muito comum na época: raptou Helena e levou-a para Tróia. Os gregos até que tentaram negociar e esquecer o episódio, mas os troianos não aceitaram.

Assim, Agamenon, irmão do ofendido Menelau, convocou todos os antigos pretendentes à mão de Helena, lembrou-lhes o pacto de fidelidade e organizou a primeira expedição contra Tróia. Foram dez longos anos de luta em que a sorte ora pendeu para um lado, ora para outro. E acabou sendo Ulisses, um guerreiro grego sem nenhum poder extraordinário, a não ser uma cabeça fértil para inventar truques e expedientes, quem pensou no estratagema que os levaria à vitória: construir um grande cavalo de madeira, capaz de abrigar, em seu interior, alguns guerreiros.

Os troianos, que consideravam o cavalo um animal sagrado, recolheram o presente deixado diante do portão de suas muralhas, acreditando ser um reconhecimento da derrota por parte dos gregos, e passaram a noite comemorando a vitória. Os soldados escondidos dentro do cavalo aproveitaram a festa para sair, abriram os portões — e Tróia foi invadida e destruída. Nasceu ai a expressão presente de grego. Essa é a lenda, em linhas bem gerais.

Em 1870 o negociante alemão Heinrich Schliemann, autodidata e arqueólogo amador, após estudar detidamente os textos de Homero, lançou-se à localização de Tróia, fazendo escavações por conta própria. Detevesse na colina de Hissarlik, na entrada do estreito de Dardanelos, atual Turquia. Em companhia da mulher, Sofia, e de outros colaboradores, descobriu vasos de ouro, jarras de prata, braceletes e colares cuidadosamente fabricados. Deduziu, então, que teriam pertencido a um rico e poderoso senhor: seria o tesouro de Príamo, rei de Tróia e pai de Páris. Mas a declaração de Schliemann, de que havia encontrado Tróia e seu famoso tesouro, não resistiu aos ataques dos historiadores especializados.

Hoje, a maioria dos arqueólogos afirma que o tesouro apresentado por Schliemann não passava de um conjunto de peças isoladas recolhidas durante as escavações. O grande mérito do pesquisador alemão foi descobrir que na colina de Hissarlik existiram várias Tróias, cada uma construída sobre as ruínas da outra, e que a região estava habitada desde a Idade do Bronze, por volta de 3 000 a.C, até o ano 400 da nossa era. Ao todo existiram nove Tróias. As primeiras Tróias de I a V, correspondem à Idade do Bronze egeu; Tróia VI, ao Bronze médio e final; Tróia VII teria sido habitada por um povo diferente que deixou o local cerca de 700 a.C, época que corresponde ao início de Tróia VIII; e, por fim, Tróia IX, que era a cidade romana de Ilium Novum.

Como foi possível fazer de uma montanha a base de várias cidades? Especialistas explicam que Tróia I estava sobre a base e ali se levantaram casas feitas de pedra, terra, adobe, madeira e palha; pouco resistentes, eram sujeitas a incêndios que rapidamente as destruiam por estarem, além do mais, muito próximas umas das outras. Na época do cobre e do bronze, as cidades apenas começavam a se desenvolver. Se ocorria um terremoto ou um incêndio, tirava-se o que era aproveitável das ruínas, aplainava-se o que restara e construíam-se novas casas em cima. Assim, uma cidade se edificava sobre a outra. Era costume naquela época jogar no chão desde restos de comida até utensílios quebrados. Mas, a partir de determinado momento, ficava insuportável conviver com a sujeira e então cobria-se o chão com uma espécie de capa de barro e tudo ficava novo e limpo.

O pouco recomendável costume dos troianos teve pelo menos uma serventia: ajudou os arqueólogos a descobrir se as casas — das quais, na maioria das vezes, só ficavam os muros — foram habitadas por muito ou pouco tempo. Para Schliemann, a Tróia de Príamo era a Troía II. Depois de sua morte, em 1890, outro pesquisador, o arqueólogo Wilhelm Dörpfeld, também alemão, prosseguiu as escavações em 1892 e 1893 e estabeleceu que Tróia VI tinha sido o cenário da guerra. No entanto, pesquisadores da universidade norte-americana de Cincinatti, que ali realizaram escavações de 1932 a 1938, concluíram que Tróia VII era a Tróia de Príamo. A chave para se saber qual era a Tróia da guerra era provar a existência do inimigo, isto é, dos gregos do final da Idade do Bronze, a época de Tróia VII.

Tudo estaria esclarecido não fosse por uma questão: embora Homero diga que Tróia foi destruída por um incêndio, as últimas escavações provam que o que houve ali foi um terremoto e que depois os assentamentos continuaram. Diante disso, o historiador inglês Moses Finley, falecido em 1986, abriu fogo: "Não há uma só prova consistente de que a colina de Hissarlik coincida com a Tróia da Idade do Bronze que Homero descreve, nem de que a guerra entre troianos e gregos tenha alguma vez existido. Propomos tirar definitivamente a guerra de Tróia dos livros de História".

Entretanto, uma descoberta do lingüista Calvert Watkins, professor da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, desmontou um dos principais argumentos dos críticos de Homero. Ao examinar primitivos documentos escritos em uma extinta língua da antiga Anatólia, na região orienta do que hoje é a Turquia, Watkins encontrou o seguinte fragmento de texto:"... quando vinham os alcantilado de Wilusa..." Para ele, o fragmento seria parte de uma primitiva Ilíada escrita em hitita, a língua dos troianos. Os alcantilados de Wilusa (que significam rochas escarpadas de Wilusa) são, segundo Watkins, os que aparecem na Ilíada como "os alcantilado’ de Ilíon". Tróia era também chamada de Ilíon. Tal descoberta derrubava a teoria de que uma cidade grande e poderosa como Tróia, que apoiava o império hitita, não constava dos testemunhos escritos sobre aquele povo. Os críticos de Homero também duvidavam da descrição dos funerais de Pátroclo — grande amigo do guerreiro Aquiles — mencionados no final da Ilíada O poema diz que ele foi cremado. Os céticos afirmavam que naquela época não era costume cremar os mortos.

Recentemente, porém, arqueólogos alemães, que há três anos realizam escavações no porto de Tróia, na baia de Besica, sob o comando do professor Manfred Körfmann, da Universidade de Tübigen, descobriram vestígios de piras onde os mortos eram cremados. Mas se Tróia existiu, será que isso quer dizer necessariamente que houve também a guerra de Tróia? Como e por que ela se deu? Ao que parece, os motivos foram mais banais do que o resgate da honra de Menelau e, sua mulher, Helena. Como a corrente marítima na parte mais estreita dos Dardanelos é muito mais forte, um barco mercante da Idade do Bronze só poderia chegar ao Mar Negro se contasse com bons ventos a seu favor. Mas, à excessão de uns poucos dias do ano, o vento sopra na direção oposta, de Leste a Oeste. Por isso, os gregos preferiam desembarcar suas mercadorias no porto de Tróia para que fossem transportadas até o Mar de Mármara — a meio caminho entre o estreito e o Mar Negro — através da planície troiana.

Mesmo que resolvessem esperar pelos ventos favoráveis os gregos dependiam dos troianos. E estes certamente cobravam pelos serviços prestados, tais como estadia na baia, abastecimento de água e alimentos, transporte de mercadorias por terra etc. E possível até que os troianos cobrassem pedágio ou saqueassem um barco de vez em quando. Do ponto de vista arqueológico não há nada que prove que Tróia fosse um covil de ladrões, mas é cabível que uma cidade situada no eixo do comércio entre o Mar Egeu e o Mar Negro representasse um problema para os gregos. Logo, qualquer pretexto servia para liquidar aqueles que tanto atrapalhavam seus negócios.

O historiador Francisco Murari Pires, professor de História Antiga da Universidade de São Paulo, acha provável que um evento como a guerra de Tróia tenha existido, embora o conjunto de documentos descobertos não permita uma afirmação exata, precisa. O que a lenda quer preservar, diz ele é que o fim da Idade do Bronze e o inicio da Idade do Ferro correspondem a um período de desestruturação do império hitita. Havia uma situação de conflito permanente entre hititas e gregos. Ambos disputavam o controle sobre os reinos que apoiavam tradicionalmente o império hitita e que, em conseqüência da atuação do gregos, começaram a se desestabilizar

Com base nos conhecimentos históricos e arqueológicos disponíveis, arqueólogo alemão Franz Stephan reconstituiu o que em sua opinião pode ter sido a guerra de Tróia: os tróianos, enfraquecidos por causa de um terremoto, não estavam preparados para enfrentar uma guerra. Os gregos, sabendo disso, atracaram no porto inimigo um veleiro com aparência de barco mercante; só que, em vez de mercadorias, transportava uma tropa de elite. Durante a noite o comando grego tomou a cidade.

Nessa versão, não há lugar para o Cavalo de Tróia. O professor Murari Pires diz que é impossível resolver essa questão. Mas, verdade histórica ou não, a lenda é importante por fixar o principio de que uma guerra não se decide só pela força. "Tanto o valor da astúcia, da manobra enganosa", observa Murari, "quanto o valor guerreiro propriamente dito estão em pé de igualdade."

Por mais que historiadores e arqueólogos tentem demonstrar a veracidade do episódio, o que parece prevalecer na memória do homem comum é a imagem poética da lenda, que tem contornos muito mais fortes do que a realidade. Por mais pesquisas que se façam, é pouco provável que um dia essa situação seja invertida.

Fonte: Superinteressante.

Órfãos de rosas

E, de repente, o sujeito fez um comício. Era um sarau de grã-finos.

A dona da casa não fazia outra coisa senão passar. Estava com penteado de Josefina Bonaparte, decote de Josefina Bonaparte, vestido de Josefina Bonaparte (só a maquilagem é que era de cadáver). Falei das sandálias? Não, não falei das sandálias.

Sandálias também de Josefina Bonaparte. E o rapaz, dizia eu, fazia um comício.

Abro um parêntese para falar do rapaz. Chamá-lo de bêbedo é dizer muito pouco. O comum dos paus-d'água precisa beber. Esse, não. Sem tocar em álcool, sem tomar água da bica, está embriagado. Imaginem um bêbedo que não bebe ou, melhor dizendo, um bêbedo nato. Dirão que isso é impossível. Não sei. Simplesmente constatei. E, se quiserem, vão discutir com o fato. Fecho o parêntese.

Que dizia o pau-d'água nato e talvez hereditário? Dizia e repisava: — "A grã-fina não tem alma". Era falar de corda em casa de enforcado. Sem contar a dona da casa, que continuava passando, todos ali eram grã-finos. Mas ninguém se ofendeu. Um dos decotes presentes quis saber: — "Todas?". E o bêbedo, que também era grã-fino, teve um repelão feroz: — "Todas!".

Foi então que alguém objetou: — "É um erro generalizar".

Cada grã-fina, ah, estava lisonjeadíssima de não ter alma. O pau-d'água, na sua cólera fácil, explodiu: — "Erro, vírgula; erro, uma ova!". Foi aí que, dos presentes, um gordo, com uma papada de Nero de Cecil B. de Mille, interrompeu: — "Há uma exceção" — e repetiu, mexendo o gelo do uísque: — "Há uma exceção". Logo todo mundo quis saber que grã-fina, entre tantas, entre todas, tinha uma alma.

O Nero fez um suspense e o prolongou. Por fim, disse o nome: — "Fulana!". Os presentes se arremessaram. Queriam saber que ato, fato ou feito tinha cometido a Fulana para que lhe atribuíssem essa coisa preciosa, entre todas as coisas, que é uma alma. Atropelado por tantas curiosidades, o gordo dizia, risonhamente: — "Eu explico, eu explico!". E disse, por fim: — "Leu as orelhas de Marcuse!".

A anfitriã passou mais uma vez (e sua maquilagem de cadáver só não fazia mais efeito porque as outras usavam também uma hedionda máscara amarela). Desta vez, o próprio bêbedo nato balançou. Teve um movimento de fluxo e refluxo que quase o entorna em cima dos decotes. Houve uma certa aquiescência. Se lera as orelhas, tinha um certo direito à alma. O Nero deu outras informações, forneceu dados biográficos. De mais a mais, participara da última passeata.

Fora vista, entre os intelectuais, numa fotografia de Manchete. E eu, no meu canto, e só ouvindo, imaginava que o nosso grã-finismo ganhou uma George Sand na leitora de orelhas. Depois de negar a alma das grã-finas, o bêbedo hereditário passou a outro assunto. No meio da sala, pôs-se a declamar: — "Uma rosa é uma rosa, é uma rosa, é uma rosa, é uma rosa". Lera ou ouvira isso não sabia onde, nem quando. E ignorava se as rosas tinham ou não tinham as vírgulas que acrescentara. Repetiu: — "Uma rosa é uma rosa uma rosa uma rosa uma rosa" (tirou as vírgulas). Mas o bêbedo é um emotivo e já queria chorar. Achava justo que uma rosa fosse mil vezes rosa, e eternamente rosa.

Passava mais uma vez a dona da casa. Agarrou-a por um braço. Perguntou-lhe: — "A senhora tem uma rosa em seu jardim?". A máscara amarela sorria (cada vez mais cadavérica). Disse: — "O autor do meu jardim é o Burle Marx". Para o ébrio, a autoria não provava a existência de rosas. E já arrastava a anfitriã: — "Vamos ver! Quero ver!".

Organizou-se uma súbita expedição ao jardim do palácio. Ele exigia rosas, não abria mão das rosas. Desceram todos. Lá fora as estátuas morriam de frio na noite gelada. Dizia-se: — "O Burle Marx é um gênio! Um gênio!".

Decerto, o jardim era uma obra-prima. Mesmo porque o gênio de Burle Marx está acima de qualquer dúvida ou sofisma. Todavia, depois de meia hora de busca, fez-se a constatação vagamente humilhante: — não havia, ali, uma única rosa. Nenhuma, nenhuma. A mais espantada era a dona da casa. Dizia: — "É mesmo! É mesmo!". O Burle Marx esquecera as rosas, e mais: — os jardins de Burle Marx não têm flores. Houve um espanto, quase um terror. A anfitriã sentiu-se cruelmente órfã de rosas. O bêbedo exultava.

Dizia, em arrancos: — "O Brasil é um país sem rosas. Não há flores. Flores, flores!". Todos voltavam, sucumbidos. Alguém perguntava a um outro: — "Há quanto tempo você não vê uma rosa?". Um confessou que tinha que ir ao cemitério, no dia de Finados, para ver flores. E o bêbedo, com alegre crueldade, repetia: — "Por isso, esta droga não vai pra frente! O Brasil é um país perdido!".

Varado de indignação, berrava: — "Há gramados e não há flores. Mas para que grama, se não somos cabras?".

Interpelava os presentes, damas e cavalheiros: — "Somos cabras?". Embora parecesse óbvio que ninguém, ali, era cabra, vozes esclareceram: — "Não, não, não!".

E, de repente, o que era uma festa tornou-se uma sessão fúnebre.

Só quem falava era o bêbedo nato.

Argumentou com a Europa. Lá não havia uma varanda, ou uma janelinha, sem flores. E por que a tristeza das novas gerações brasileiras? Por que os gabinetes dos psicanalistas tinham filas? A depressão nacional achava uma razão nítida e profunda: — as rosas, as rosas, as rosas.

Os presentes concordavam em que o Brasil precisa, não de um estadista, mas de um jardineiro. Aqui, só os defuntos têm flores.

Eu continuava um maravilhado ouvinte de tantas opiniões ilustres. E não me lembro por que, de repente, os grã-finos saíram das flores para as passeatas. O Nero de Cecil B. de Mille tomou a palavra. Dizia, por outras palavras, o seguinte: — "As passeatas vão salvar o Brasil".

Alguém duvidou: — "Por que, meu Deus?". A papada do gordo vibrou: — "É o povo! É o povo!". Falava e o suor pingava da papada como um pranto.

E, então, o bêbedo teve outro rompante: — "A passeata não salva ninguém!". O gorducho bramava: — "É o povo! E o povo!". Quase se atracavam no meio do salão. Vozes concordavam em que era o povo. O ébrio teve um riso feroz: — "Povo nenhum! O povo não se meteu!". Na ira de sua embriaguez, teimou: — "Vocês viram? As fotografias? Não tinha um negro, um operário, um torcedor do Flamengo!".

Silêncio. E, realmente, ninguém se lembrava de ter visto um negro, um operário.

O pau-d'água começou a chorar: — "Sabem quem estava lá?". Suspense. Ele olha, uma por uma, as caras que o cercavam. A dona da casa, que vinha passando, parou. E o outro soluçando: — "Quem estava lá eram as classes dominantes! Foi a passeata das classes dominantes. Nenhum perna-de-pau, nenhum cabeça-de-bagre, nenhum pau-de-arara. Só as classes dominantes!".

E o bêbedo hereditário teve, ali, nas nossas barbas estarrecidas, o delirium tremens. Via as classes dominantes, em cima e embaixo, no asfalto e nas sacadas da Avenida.

As classes dominantes o atropelavam. Acabou vomitando no tapete.
[31/7/1968]

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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

Menino precoce

Diz que era um menino de uma precocidade extraordinária e vai daí a gente percebe logo que o menino era um chato, pois não existe nada mais chato que menino precoce e velho assanhado.

Todos devemos viver as épocas condizentes com as nossas idades; do contrário, enchemos o próximo.

Mas deixemos de filosofias sutis e narremos: diz que o menino era tão precoce que nasceu falando. Quando o pai soube disso não acreditou. O pai não tinha ido à maternidade, no dia em que o filho nasceu, não só porque não precisava, como também porque tinha que apanhar uma erva com o Zé Luís de Magalhães Lins, para pagar a "délivrance" que era quase o preço de um duplex, pois a mulher cismou de ir para a casa de saúde do Guilherme Romano.

Mas isto também não vem ao caso. O que importa é que o menino já nasceu falando.

Quando o pai soube da novidade, correu à maternidade para ouvir o que tinha o menino a dizer. Chegou perto da incubadeira e o garoto logo se identificou com um "Oba". O cara ficou assombrado e mais assombrado ficou quando o nenenzinho disse:

— Papai vai morrer às 2 horas! — dito o que, passou a chupar o bico da mamadeira e mais não disse nem lhe foi perguntado.

O cara voltou para casa inteiramente abilolado. Sem conter o nervosismo, não contou pra ninguém a previsão do menininho precoce, mas ficou remoendo aquilo. Dez e meia, onze, meio-dia... e o cara começou a suar frio.

Uma da tarde, o cara já estava suando mais que o marcador de Pelé.

Quando deu duas horas ele estava praticamente arrasado e quando passou da hora prevista um minuto ele começou a se sentir mais aliviado.

E estava dando o seu primeiro suspiro, quando ouviu um barulho na casa do vizinho. Uma gritaria, uma choradeira. Correu para ver o que era: o dono da casa tinha acabado de falecer.
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Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte: O MELHOR DE STANISLAW - Crônicas Escolhidas - Seleção e organização de Valdemar Cavalcanti - Ilustrações de JAGUAR - 2.a edição - Rio - 1979 - Livraria José Olympio Editora

A atriz inteligente

Não há dúvida que se cavou um abismo, um voraz abismo, entre o antigo teatro e o novo. (Pode parecer que eu esteja aqui dizendo o óbvio ululante. Paciência). E não se trata do estilo de representação.

Outrora, um ator entrava em cena com uma saúde e um estardalhaço de centauro. E o último suspiro da Dama das camélias era um rugido. Hoje, berra-se pouco, urra-se menos. Sim, o artista é mais sóbrio, mais contido. Morre e mata com mais cerimônia e polidez. Sua tensão é superiormente controlada.

Mas o que me impressiona não é a dessemelhança de comportamento cênico. O artista mudou até na vida real.

Voltemos, por um momento, à belle époque, Faz de conta que ainda não houve a primeira batalha do Marne, nem os táxis de Paris salvaram a França. Imaginemos por um momento que Mata-Hari, a espiã de um seio só, ainda não foi fuzilada, e que tampouco ocorreu a primeira audição do Danúbio azul.

Pergunto: — e que fazia então, no palco e fora dele, uma atriz? Qual o seu tipo de vida? As prima-donas vinham realizar, cá fora, todo o patético e todo o sublime dos papéis românticos. Uma Sarah Bernhardt amava mais no mundo do que no palco. Seria uma humilhação para uma atriz passar quinze minutos sem uma paixão suicida e homicida. O que a Duse amou D'Annunzio! O grande homem estava, então, em furioso apogeu.

Durante vinte anos, o poeta reinou em toda a Europa. Era uma vergonha não ser amante de D'Annunzio. E a Duse o amou e, pior do que isso, deu-lhe dinheiro. Não satisfeita, a trágica mandava o seu "relações-públicas" espalhar que pagava o esteta. A humilhação também era promocional. Vejam bem: — uma atriz precisava ter, por fundo, amores reais e crudelíssimos. Ou ateava paixões e suicídios ou deixava de ser bilheteria.

Hoje, não há mais similitude entre o real e o ideal. A ficção vai para um lado e a vida para outro. Vejam o teatro brasileiro. As nossas musas não amam ou, se amam, ninguém sabe. Dirá alguém que, hoje, o sexo é menos promocional. Pode ser, quem sabe? E, realmente, depois de Freud, o homem passou a amar menos.

Ainda outro dia, uma mocinha, em pânico, correu à mãe. Soluçava: — "Estou amando! Estou amando!". A mãe tremeu em cima dos sapatos, horrorizada. O pai soube e também pôs as mãos na cabeça. Foi chamado, às pressas, um psiquiatra. Finalmente, a menina recebeu um tratamento de choques para se curar do amor. O amor virou doença.

Volto ao teatro. Há uns meses que faço a pergunta, sem lhe achar a resposta: — "O que é que mudou essencialmente nas atrizes, nos atores, nos diretores?". Outra pergunta: — "E por que não há mais Duse, nem há mais D'Annunzio?".

Imaginem vocês que, de repente, descobri toda a verdade.

Ontem, eu ia ver, no Teatro Jovem, a peça de José Wilker, Trágico acidente destronou Teresa. (Um texto admirável. Resta saber que tratamento lhe deu Kleber Santos). Mas aconteceu não sei o que e fiquei em casa. Ligo a televisão. E, por felicidade, vi e ouvi a entrevista da sra. Maria Fernanda. Foi aí que, de supetão, descobri qual é, exatamente, a dessemelhança entre a atriz moderna e a da belle époque. Uma é inteligente e a outra não.

Não exagero. No antigo teatro, a atriz não pensava, simplesmente não pensava. A maioria absoluta, para não dizer a unanimidade, nascia, vivia e morria sem ter arriscado jamais uma frase própria. Graças a Deus, não havia rádio, nem televisão. E, na hora de dar uma entrevista, a diva chamava o poeta mais à mão e este redigia, com o maior rigor estilístico, as suas declarações. Mas, no teatro moderno, a atriz pensa como nunca. E as que não pensam pensam que pensam. (Desculpem o jogo de palavras).

Pois bem. O que a televisão nos mostrou foi a sra. Maria Fernanda pensando. O repórter e deputado Amaral Neto fazia as perguntas. E justiça se lhe faça: — como a atriz falou bem! Não me refiro somente às idéias, todas de uma fascinante originalidade. Há também a considerável vantagem do métier, que é a inflexão. E como a TV é imagem, a atriz faz uma composição cênica da mais fina qualidade. Assim o sorriso, e o olhar, e o movimento das mãos e, mesmo, o clima que se evolava da entrevistada. O fato é que a sra. Maria Fernanda não dizia duas ou três frases sem lhes salpicar outras duas ou três
verdades eternas.

A notável atriz está representando, no momento, uma peça do falso grande dramaturgo Arthur Miller. E discorreu, exatamente, sobre esse texto e respectiva encenação. O repórter Amaral Neto pediu-lhe que resumisse a mensagem do drama. Outra qualquer se teria arremessado em uma fulminante resposta. Não a sra. Maria Fernanda. Fez uma pausa de duração calculada. E, por fim, respondeu: — "A peça é o problema de opção".

Nos lares, as donas de casa, os chefes de família, as tias se entreolharam. Rola, por toda a cidade, um suspense atroz. Mas havia mais, havia mais. E a sra. Maria Fernanda varreu todas as dúvidas: — "O problema da nossa época é a opção". Alguns descontentes, que sempre os há, poderão insinuar que a atriz não disse nada, nem de novo, nem de profundo.

Vejamos: — "O problema de nossa época é a opção". Isso, dito por qualquer outra, não teria maior transcendência. Mas, em teatro, a inflexão é tudo. Um vago "bom-dia", dito da maneira certa, adquire uma profundeza inimaginável. E a "opção" da sra. Maria Fernanda deu-nos uma vertigem de abismo. Ao mesmo tempo, ela parecia ter, na testa, a seguinte manchete: — "Inteligência aqui é mato".

Sim, subiu muito o nosso nível intelectual. Contei o caso daquela grã-fina que leu as orelhas de Marcuse. Leu as orelhas e saiu, na passeata, ao lado dos intelectuais e como um deles. Mas voltemos ao nosso teatro.

Tenho um amigo que é um retrógrado, um obscurantista, que os íntimos chamam de "a própria Idade Média". Ele mesmo, antes de opinar, faz sempre a ressalva: — "Eu, que sou a Idade Média" etc. etc. Esse amigo relembrava, com inconsolável nostalgia, as gerações românticas.

Naquela época, o ator era grande porque não pensava. E essa radiante obtusidade dava-lhe a tensão dionisíaca que a poesia dramática exige. Quanto à "opção", não sei se ela existe. A meu ver, nunca optamos tão pouco. Somos pré-fabricados.

É difícil para o homem moderno ousar um movimento próprio. Nossa vida é a soma de idéias feitas, de frases feitas, de sentimentos feitos, de atos feitos, de ódios feitos, de angústias feitas. A última passeata mostrou como é rala a nossa autodeterminação.

Eis o fato: — no meio do caminho, o líder Vladimir Palmeira trepou no automóvel e disse: — "Estamos cansados". Ninguém estava cansado. Mas, como ele o dizia, começamos a arquejar de uma dispnéia induzida. (Parecíamos uns barqueiros do Volga).

Em seguida, ele acrescentou: — "Vamos sentar". Falava para a parte mais lúcida do Brasil. Ali, estavam médicos, romancistas, poetas, atores, atrizes, arquitetos, professores, sacerdotes, estudantes, engenheiros (só não víamos um único preto ou
um único operário).

Como reagiu a elite espiritual do país? Sentando-se no asfalto e no meio-fio. A única que permaneceu de pé e assim ficou foi uma grã-fina, justamente a que lera as orelhas de Marcuse. Estava com um vestido chegado de Paris. E não quis amarrotar a saia.

Todos sentados, e ela, alta, ereta, numa solidão de Joana D'Arc.

[30/7/1968] 
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.