segunda-feira, 12 de setembro de 2011

O desgraçado

Numa roda de amigos, queixou-se amargamente. Rosnava para um e outro:

— Vivo uma tragédia! — E repetia, com o olho rútilo: — Uma tragédia!

Então, um dos presentes, o Pimentel, bate-lhe nas costas e passa-lhe um pito jucundo:

— Você fala de barriga cheia! Tragédia de araque! Um sujeito como tu, cheio de mulheres! Escuta, Peixoto. Você não sabe o que fazer de tanta mulher!

Peixoto abre os braços:

— Pimentel, olha. Escuta, Pimentel. Aí é que está. A minha tragédia é justamente essa. Entende? Essa! Tenho mulher demais! Deixa eu falar! Eu nasci com um temperamento que Deus me livre. Não posso ver uma. Enfrento buchos horrorosos!

Em redor, houve um espanto divertido:

— Chuta tuas mulheres! Passa adiante!

Assim espicaçado, ele começou a dar chutes no ar. Estava ridículo e terrível:

— Chuto, sim. Estou disposto. Ouve aqui. Estou disposto a fazer uma liquidação das minhas mulheres! — E trincava os dentes: — Uma liquidação de mulheres na avenida Passos!

DOENÇA

Pouco depois, abandonava o grupo. O Pimentel, que tinha um encontro, o acompanhou. E o Peixoto, particularmente deprimido, fez-lhe confidencias ainda mais dramáticas:

— Imagina tu. Vê se pode. Hoje, em minha casa. No meu próprio lar, Pimentel!

O amigo pensou na empregada. Mas Peixoto foi taxativo:

— Antes fosse a empregada. Antes fosse. Cunhada, Pimentel! Percebeste? Cunhada!

— Qual delas?

Param numa esquina, à espera do sinal. Peixoto esbraveja:

— A viúva! Perdeu o marido há dois meses. Ou nem isso. E, hoje, eu quase pulo no pescoço da infeliz. Se minha mulher não aparece. Por acaso, foi uma casualidade. Se não aparece, eu atacava! E já imaginaste o bode?

Pimentel pigarreia: — “Bem, mas. A tua cunhada vale. De mais a mais, o luto desperta, inspira”. Peixoto respira fundo:

— Qual nada! Isso é doença! Vou ao médico! Doença, no duro! Até logo, lembranças, até logo!

O MÉDICO

No dia seguinte, consultou os colegas do escritório:

— Qual é o médico que trata de sujeito que só pensa em mulher?

O subcontador, o Carvalhinho, faz espanto: — “Isso é doença, é?”. Peixoto rosna:

— Não faz piada! No meu caso, é doença!

Ante a alegre curiosidade dos amigos, explicou que era portador de um desejo indiscriminado e universal. Não fazia discriminação de cor, de idade, de estado civil, de nada. Repetia para os colegas: — “Isso não é normal, não pode ser normal!”. Deixa passar um momento e torna: — “Deve haver um remédio. É impossível que não haja um remédio!”. O Carvalhinho deu a idéia:

— Vai ao Ribas. Psiquiatra de mão cheia. 

Quis saber: — “É caro?”. E o Carvalhinho:

— Puxado, mas vale.

Depois do almoço, lá foi o Peixoto para o Ribas. Deixou com a enfermeira mil pratas e pensava:

— Esses médicos são uns gângsteres!

Finalmente, pôde entrar. E viu-se diante de um sujeito de avental, esguio e lívido. Na sua cadeira giratória, o dr. Ribas faz a primeira pergunta e o Peixoto começa, ansiosamente:

— Doutor, o meu problema é o seguinte: — eu acho que tenho um excesso de energia.

Batendo com o lápis na mesa, o médico quis saber: — “Como excesso de energia?”.

Com uma certa vergonha, explica:

— Não posso ver mulher, doutor. Qualquer uma, já sabe. Mesmo as feias, as horrorosas, doutor. Eu não faço seleção. Não seleciono.

O médico levanta-se. Andando de um lado para outro, fala:

— Em amor, a seleção é um equívoco ou, pior, uma deficiência. Só os insuficientes é que escolhem muito, escolhem demais. Meu amigo, a natureza não manda o senhor preferir a Ava Gardner, a Lollobrigida. Para a natureza, qualquer mulher é mulher. E os buchos também são filhos de Deus, que é que há?

Confuso, balbuciou:

— Mas, doutor, o meu problema...

O médico atalha: — “Meu amigo, não chame isso de problema. Isso nunca foi problema, nem aqui, nem na China”. Peixoto gagueja: — “Quer dizer que...”. E o dr. Ribas:

— Meu amigo, se todos os maridos fossem como o senhor, a loucura feminina seria mínima. O que põe a mulher no hospício, quase sempre, é a falta de amor. 

Batata!

Peixoto já não sabia mais o que dizer, o que pensar. Interiormente, chorava amargamente os mil cruzeiros da consulta. Perguntou, finalmente:

— Não tenho, então, nenhuma doença, doutor? 

Dr. Ribas pôs-lhe a mão no ombro:

— Doença? Meu amigo, sossega! Você tem uma mina. Escuta, um momento. Você tirou a sorte grande. Vou lhe dizer mais: — atrás dessa doença ando eu. Eu queria que isso fosse contagioso. Palavra de honra!

Levou-o até a porta. Baixou a voz, grave:

— Está de parabéns!

O INFELIZ

Ao sair do consultório, Peixoto não sabia se estava radiante ou desesperado. Mas, no elevador, via uma gorducha, vestido colante, decote espetacular e toda uma cintilação de jóias. Peixoto dardeja-lhe o primeiro olhar e já começou a respirar forte. Embaixo, a baiaca sai na frente e o Peixoto, alucinado, atrás. Mais adiante, o lábio trêmulo, uma luminosidade no olhar, pergunta, por cima do ombro da desconhecida:

— Posso acompanhá-la?

A mulher vira-se. Olha-o de cima a baixo:

— Quer que eu chame o guarda? 

E ele, ofegante:

— Perdão. A senhora me interpretou mal.

Não se controlava mais. Em sentido contrário, vinha uma fulana qualquer. Bonita? Feia? Peixoto não saberia dizê-lo, nem era problema. Deixa uma por outra. Com uns olhos imensos e fixos de Svengali, balbucia:

— Minha senhora, olha, escuta. Sinto por si uma forte simpatia.

A fulana apressa o passo. O rapaz via outras. Fora de si, dirige-se a um senhor. Pede, chorando:

— O senhor me segura? Quer me fazer o favor de me segurar? Ou me segura ou eu agrido todas as mulheres, todas!

O outro não compreendia. Ele soluçava:

— Eu quero ser amarrado! Preciso ser amarrado! 

Uns dez tiveram que agarrá-lo.
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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

A morta

Basta dizer o seguinte: era uma pequena cidade, quase inexistente, metida nos cafundós-do-judas. Nem rádio, nem telefone, nem dentista. E o que a caracterizava acima de tudo era a falta de mulher. Ao todo uma meia dúzia para uns cento e cinqüenta seringueiros. Acresce que estavam todas casadas e que os maridos eram válidos e com um senso feroz e homicida de propriedade.

Eles avisavam:

— Quem se meter a besta, já sabe. Passo fogo!

E ninguém mexia com as infelizes. Elas viviam encerradas nos seus buracos, sob controle tremendo, sem alegria nenhuma. Quando abriam a boca, era um rir de dentes cariados. Não cuidavam de si, não se enfeitavam. Enfeitar para quê? Para o próprio marido? De pé no chão e imundas, não interessariam a ninguém, salvo ao esposo e aos cento e cinqüenta seringueiros, coitados, que viviam no mato e que já nem se lembravam da própria condição humana.

E foi nesta cidade, esquecida de Deus, que o Quincas bateu um dia. Chegou, foi espiando e perguntando, a um e outro:

— Como é que é o negócio aqui, hein? 

Disseram:

— Uma droga.

Resposta vaga que não satisfez a quem vinha de fora, e não conhecia coisa nenhuma da cidade, nem suas pessoas, nem seus costumes. No único boteco do lugar, com um companheiro acidental, o Quincas explicou que fora para ali, sabe por quê? Baixou a voz:

— Matei uma cara. Estou fugindo da polícia.

A MULHER

Com a tremenda vitalidade dos seus vinte e cinco anos, trazia uma idéia fixa. E perguntou:

— Aqui tem boas pequenas?

— Tem e não tem.

Espantou-se:

— Como?

O outro foi mais claro:

— Todas as mulheres aqui são casadas.

— Todas?

— Todas.

E o Quincas, na febre dos vinte e cinco anos, insistiu:

— Mas não se dá um jeito? Não se arranja uma solução? 

O companheiro cuspiu por cima do próprio ombro e foi categórico:

— Não há solução.

Não houve limites para a decepção de Quincas. Pulou:

— Essa é a maior! — E, cutucando o outro: — “Nem pagando mais? Muito mais? O dobro?”.

Batia no próprio bolso:

— Faz uma forcinha, faz!

A FOME

Então, desanimado, o Quincas começou a perambular pela cidade. E, pouco a pouco, foi perdendo as ilusões. No fim de dez dias, era outro homem: fez uma meia dúzia de amigos e perguntava:

— Como é? As mulheres daqui não dão as caras?

— Você é besta!

— Por quê? 

Riram na cara dele:

— Você pensa que os maridos vão deixar? A mulher que meter o nariz do lado de fora está frita.

Quincas coçou a cabeça, praguejou:

— Terra amaldiçoada!

Nostálgico da cidade, nostálgico do litoral, acabou se lembrando da pequena que matara. Contou que ela o passara para trás. Mas, naquele fim do mundo, em pleno território do Acre, suas idéias sobre a fulana já eram outras. Dir-se-ia que o ódio ia, gradualmente, extinguindo-se no seu coração. Admitia:

— Tinha suas qualidades.

Os amigos, com água na boca, faziam perguntas diretas e sôfregas:

— Bom corpo?

E ele, fincando os cotovelos na mesa, numa convicção profunda:

— Que coxas!

Os outros se entreolhavam, numa inveja medonha. Houve quem explodisse:

— Você é uma boa besta. Não devia ter matado. Que palpite infeliz!

Quincas acabou reconhecendo:

— Foi um golpe errado!

E, agora, já se contentaria com o mínimo, ou seja, “ver” uma das mulheres locais. Seria uma satisfação visual, uma espécie de triste e idiota compensação. Interpelava os habitantes: “Como é que vocês agüentam?”. Os outros respondiam: “A gente se acostuma”. E ele, passando a mão pela cabeleira imensa, à Búfalo Bill, dava murros na mesa:

— Pois olha! Eu não agüento. Qualquer dia estouro!

A falta de uma mulher doía mais nele do que fome, sede. Dizia a si mesmo: — “Se, ao menos, um desses pilantras morresse!”.

A IDÉIA

Um dia, no boteco, aventurou:

— Sabe o que é que mais me admira? Que me deixa besta?

— O quê?

E ele, na sua fúria contida:

— Que ninguém aqui tenha se lembrado de matar um pilantra desses e ficar com a mulher!

Houve um silêncio. Todas as caras presentes pareciam espantadas. Um fulano, que catava lêndeas na cabeça de outro, interrompeu esta função. Estava de boca aberta, num assombro absoluto. Deixou-se cair numa cadeira, como se a idéia, que jamais lhe ocorrera, o deslumbrasse. O Quincas, vendo o efeito, tratou de explorá-lo. Era direito aquilo, era? Enquanto uma meia dúzia tinha mulher, cento e cinqüenta sujeitos não. Deu outro murro na mesa:

— Não somos palhaços de ninguém! — E esbravejava, cada vez mais exaltado: — Está errado, erradíssimo!

Então, pouco a pouco, as bocas, as mãos, os olhos foram se transformando. Dir-se-ia que a loucura do Quincas contagiava todo mundo. E o rapaz, arregimentando adesões, berrava: “Por que é que o marido há de ter mais direito do que nós?”. Formulava o problema com uma expressão de triunfo: “Respondam”. E, fora de si, aduzia o argumento numérico: “O marido é um só e nós somos cento e cinqüenta!”. Queria, em resumo, que fossem, de casa em casa, arrancar as mulheres. Houve um súbito berro coletivo no boteco. E teria acontecido o diabo se, de repente, não irrompesse, ali, um sujeito, de pés descalços e barbudo como os outros. O sujeito anunciou:

— A mulher do Baiano está morrendo!

O ROSTO

De um instante para outro, a fúria se fundiu em espanto. Quincas apertou a cabeça, entre as mãos, gemendo:

— É o cúmulo! É o cúmulo!

E, sem mais palavra, aqueles homens atormentados dirigiram-se, num maciço e solidário grupo, para a casa do Baiano. Iam fazer o quê? Nem o próprio Quincas poderia dizê-lo. Crispavam as mãos e suas gargantas estavam secas e ardentes. À medida que iam avançando pelo mato, o Quincas tomava-se de uma fúria obtusa contra as potências misteriosas do destino. E só dizia, entredentes: “Como é que pode? Como é que pode?”. Parecia-lhe provação demais que morresse uma mulher num lugar em que existiam tão poucas.

Enfim, chegaram diante da casa do Baiano. Quincas adiantou-se, mas não chegou a bater, porque o próprio Baiano surgia diante do grupo, apontando a carabina. Lá dentro ninguém chorava pela mulher que, doente do peito, acabara de morrer. E o dono da casa, com os olhos injetados, a boca torcida, avisou:

— Ninguém toca em minha mulher! O primeiro que der um passo come fogo!

Era taciturno e mau, e cumpriria a ameaça. Então, Quincas, mais moço que os outros, com a memória ainda recente das mulheres da cidade, pediu, implorou:

— Não queremos nada demais. Só espiar tua mulher. Um pouquinho só.

O marido acabou deixando. E houve o desfile, maravilhado, pelo quarto, onde estava a infeliz, um esqueleto com um leve, muito leve, revestimento de pele. Eram homens praticamente loucos, possessos. Mas respeitaram a morte. Alta noite, o marido apanhou de novo a carabina e foi enxotando:

— Fora daqui, todo mundo! E não pensem que eu sou besta de enterrar minha mulher! Não confio em nenhum de vocês, seus cachorros!

Saíram todos, já na antecipada nostalgia do rosto feminino. Sozinho, o marido fechou tudo, arriou as trancas da porta. E, então, encerrado com a mulher, derramou querosene na defunta e em si mesmo; riscou um fósforo e fez a dupla fogueira.

Do lado de fora, os homens rondavam, enfurecidos.
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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.