terça-feira, 12 de março de 2013

A morte na boca do povo

"A morte para todos faz capa escura,
E faz da terra uma toalha;
Sem distinção ela nos serve,
Põe os segredos a descoberto,
A morte liberta o escravo,
A morte submete rei e papa
E paga a cada um seu salário,
E devolve ao pobre o que ele perde
E toma do rico o que ele abocanha." (1)


Abaixo, algumas locuções e expressões populares que designam o verbo morrer:

A

Abalar-se para o além
Abarcar os sete palmos
Abecar a dama negra
Abonar o coveiro
Abotoar o paletó
Abotoar o pijama de madeira
Abreviar a viagem
Acampar no cemitério
Ajuntar os pés
Amanhecer olhando o dedo grande do pé
Apitar
Apresentar-se ao papa do inferno
Atacar o paletó
Atingir a reta da chegada
Atolar o carro
Arriar a bandeira

B

Bacafuzar-se
Badalar o sino
Bater a alcatra na terra ingrata
Bater a biela
Bater a bola
Bater a pacutinga
Bater a paquera
Bater a passarinha
Bater as botas
Bater o pacau
Bater o vinte e sete
Bater o vinte e um

C

Cair no esquecimento
Casar com a mulher da foice
Cessar a suspiração
Chegar a hora
Chegar ao fim da estória
Chispar no cavalo da morte
Coalhar o sangue
Comer terra na cara
Comer pão de terra
Comer capim pela raiz
Cumprir a vontade de Deus

D

Dar adeus a jerimum
Dar com o rabo na cerca
Dar o banzé
Dar o couro à vara
Dar o créu
Dar o último suspiro
Defuntar
Deixar de comer farinha
Deixar de viver
Desarmar a tenda
Descansar
Desencadernar
Desligar a tomada
Desocupar o beco
Dizer adeus ao mundo

E

Embarcar
Embiocar
Enfrentar São Pedro
Engajar no batalhão da morte
Entrar no rol dos bons
Entregar a alma a Deus
Envelopar-se
Espichar a canela
Estancar o motor
Estar na terra da verdade
Estar na terra de onde não se volta
Esticar o cambito
Esticar o molambo
Esticar o pernil
Esvaziar os pneus

F

Falecer da vida presente
Fazer a última viagem
Fazer companhia aos defuntos
Fazer gosto ao cão
Fazer a vontade de Deus
Fechar a sueca
Fechar o furico
Fechar os olhos
Ficar de olho vidrado
Findar
Fumar-se

G

Ganhar o descanso eterno
Gastar a mola
Guardar a ferramenta

I

Inteirar o tempo
Ir dar conta do feijão que comeu
Ir desta para melhor
Ir para a buíca
Ir para a cidade de pés juntos
Ir para o Acre
Ir para o buraco de camunda
Ir para o envelope
Ir para o vinagre
Ir pro beleléu
Ir-se

L

Largar a casca
Levar bandeira a meio-pau
Limpar o lugar
Liquidar o negócio

M

Mascar barro
Morar na pensão de Santo Amaro
Morrer na vez que lhe coube
Mudar de planeta
Mudar-se para o cemitério
Mudar-se
Muquecar-se

N

Não comer mais feijão
Não comer mais pirão

P

Passar
Passar desta para melhor
Pedir baixa
Pegar o expresso de madeira somente com passagem de ida
Peitar a parca
Perder o garrão
Perder o rumo da seguição
Picar a mula
Pifar
Pitar macaia
Promover-se a defunto

Q

Quebrar o rabicho
Quebrar a tira
Queimar o fusível
Queimar a piriquita

R

Rachar o quengo
Receber as incelenças
Refinar a rapadura
Render a alma ao criador
Render o espírito
Render o fôlego

S

Sair da cancha
Saldar as dívidas
Secar o mucumbu
Selar os olhos
Sustar o jogo

T

Tomar a benção a São Pedro
Tomar chá de buraco

V

Ver o céu por dentro
Vestir pijama de madeira
Viajar
Virar defunto
Virar picolé
Visitar São Pedro
Voar no pau

 (1) Hélinand de Froidmont. Os Versos da Morte. Poema do século XII, 1996: 50, vv. 361-372)
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Em Maior, Mário Souto. “A morte na fala do povo”. Em Revista brasileira de folclore, ano XII, nº 36, maio/agosto de 1973. Ministério da Educação e Cultura, Departamento de Assuntos Culturais.

Fonte: Jangada Brasil.

Herói e mártir

Era uma avant-première de caridade. Todo o grã-finismo presente. Não se dava um passo sem esbarrar, sem tropeçar numa capa de Manchete. Diga-se de passagem que estou usando uma imagem hoje obsoleta. E, de fato, as grã-finas deixaram de ser capas de Manchete. Mas, como ia dizendo: — eu era, se bem me lembro, o único plebeu da festa.

E, súbito, passou por mim um colar de brilhantes. Pobre hereditário, sou um deslumbrado nato pelas jóias caras. E aquilo me ofuscou. Como um hipnotizado, fui atrás.

Mas, se me perguntarem quem era a dona do colar, e quem era o seu marido, não saberia dizê-lo. Um e outro pareciam secundários, nulos, diante da jóia. Ele, multimilionário, era como que um contínuo dos brilhantes. Fiquei, de longe, de olho no colar, como um Raffles (2).

Esquecia-me de dizer que sou também fascinado pelo preço das coisas. Fiz meus cálculos. A bela senhora trazia no pescoço uma fortuna delirante. E, súbito, alguém cochicha: — "Aquele colar custou trinta segundos da festa do Patino".

Quem me disse isso? Não sei. Foi talvez o próprio Satã.

O pretexto para a avant-première beneficente era um filme francês. E, depois do filme, ouvi não sei quantas opiniões. Alguém dizia, em arroubos: — "Que diálogo! Que diálogo!".

Houve um momento em que parou, perto de mim, o casal do colar. Em vez de se contentar com os brilhantes, a mulher também queria ser inteligente, e dizia: — "A mulher brasileira não chega aos pés da francesa". O culpado do colar, com um tédio de Nero, resmungou o que não ouvi.

E a mulher, com um frêmito nos brilhantes e no decote: — "o Brasil é um país de quinta ordem". E, então, o marido, obeso como um Nero de Hollywood, faz esta síntese crudelíssima: — "O brasileiro não sabe fazer uma frase".

A ser verdade esta impotência verbal do brasileiro, seria a nossa desgraça. Nenhum povo, nenhuma época, nenhuma classe conseguiriam viver sem frases. E eu, ao apanhar meu táxi, vim pensando na Itália, que é, exatamente, a pátria da frase. A outra pátria seria a França.

Quando o táxi passou pelo relógio da Glória, eu pensava em D'Annunzio e na sua prodigiosa magia verbal. Durante toda a belle époque, era uma honra ser amante do poeta. Os despeitados, que sempre os há, perguntavam: — "Por quê? Por quê?". Fisicamente, D'Annunzio era o antifauno — pequenino, de barbicha em ponta, uma calva que começava e não sabia onde acabar. Mas fazia frases. E a boa frase, em qualquer tempo ou em qualquer idioma, sempre fez adúlteras. Segundo a lenda, só uma senhora resistiu à frase de D'Annunzio. Vai o poeta e faz-lhe um soneto. Resistiu à frase, não resistiu ao soneto.

Falei do gênio verbal de um homem e passo a falar do gênio verbal de um povo: — o francês. Pode parecer exagero. Mas eis o que eu queria dizer: — a França é uma paisagem de frases. O francês não sabe amar, odiar, viver ou morrer sem a palavra. Nele, o gesto é apenas o reforço plástico da frase.

Vejam a última "Revolução Francesa". Evidentemente, ninguém queria cortar a cabeça de ninguém. E, de fato, ninguém morreu e ninguém matou. Mas os revolucionários lavaram a alma porque fizeram uma meia dúzia de frases. Uma delas, que está rolando por todos os idiomas, é a já insuportável "É proibido proibir". Essa frase já foi bonita. Mas, pichada em todos os muros, impressa por toda a parte — tornou-se de um tédio auditivo hediondo.

Logo se viu, porém, que era uma reles pose verbal da massa francesa. "É proibido proibir", mas os seus autores foram pichar telas antigas, por serem antigas, e as modernas, por serem modernas; e assim como proibiram a pintura, também proibiram o teatro, o cinema, a música. Naqueles dias, o vento da "jovem irracionalidade" varreu a França.

Deixemos as frases francesas e passemos às nossas. Será que elas existem? Afirmou o marido dos brilhantes que o brasileiro "não sabe fazer uma frase". Dirá um patriota de penacho: — "Mas é injusto! Injusto!". Nem tanto, nem tanto ou por outra: — talvez seja uma falsa injustiça. Acontecem coisas, no Brasil, que fazem desconfiar de nossa potência verbal.

Em várias ocasiões cívicas, o brasileiro faz o gesto, sem lhe acrescentar a frase que o justifique e o consagre. Imaginem vocês se Pedro I, nas margens do Ipiranga, puxasse a espada sem o grito. O gesto mudo significaria mais cem anos de colônia.

Todavia não precisamos recuar tanto na folhinha. Há pouquíssimo tempo houve aqui a passeata dos 100 mil. Era a primeira vez em que as nossas elites, depois de uma inércia paradisíaca de 468 anos, iam intervir na vida brasileira. E, súbito, em plena avenida Rio Branco, ocorre o milagre: — as elites brasileiras sentaram-se. E não em cadeiras, não em poltronas, não em sofás, não em divãs. Não. Tal não fariam as nossas elites. Vejam e pasmem: — exaustas de quase quinhentos anos de ociosidade, de praia, de Antonio's — elas saíram para descansar outros quinhentos anos. E sentaram-se no próprio chão, no próprio asfalto, no próprio meio-fio, na própria calçada.

E, se as nossas elites assim o fizeram, temos de admitir que devem ter razões históricas especialíssimas e inescrutáveis. Mas qualquer gesto, ainda o mais trivial, exige a frase correspondente. Foi o que faltou às elites do Brasil. E o gesto mudo nunca fez história. Por aí se vê que o grã-fino do colar não foi, como parecia, de uma inveracidade total. O brasileiro sente como ninguém. Na hora da frase, porém, cai na mais absurda esterilidade verbal.

Felizmente despontou o Festival da Canção. E como os concorrentes fazem frases! Pena é que vários tenham apelado para o "É proibido proibir". Pergunto: — por que não inventar uma frase nossa? Por que recorrer a uma tradução? Graças a Deus, outros, como o Vandré, são de uma fascinante originalidade. Ah, fiquei tocado pela sua integridade autoral. Não há um verso que não seja dele, dele mesmo e arrancado de suas entranhas vivas. E as frases jorram de sua canção, assim como a água jorra da boca dos tritões, sim, dos tritões de chafariz. Ao mesmo tempo, é a letra de um centauro de artista e de herói.

Todavia, quer-me parecer que as letras políticas, ideológicas do Festival apresentam um defeito que escapou, certamente, aos seus autores. Vou explicar. No episódio dos 100 mil houve o gesto e faltou a frase. Na canção do Vandré só há frases e nenhum gesto. O sujeito, depois de escrever o que Vandré escreveu, e de cantar o que ele cantou, não pode ficar no Maracanãzinho recebendo corbeilles como na ópera.

É pouco. O leitor e ouvinte imagina que ele ouviu tudo aquilo numa sessão espírita, como um médium de Guevara. Depois de tal canção, só lhe resta uma saída: — correr para se encontrar com o próprio martírio na primeira esquina.

(2) Personagem criado por E. W. Hornung, Raffles é um aristocrata inglês arruinado que, para manter-se condizente com a sua condição social, torna-se um sofisticado ladrão. [Nota Guinefort]
[28/9/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

Lição de nudismo

Nasceu o primeiro menino nudista! Deu-se que uma dama de pouca roupa, habitante da Ilha do Sol, ilha onde reina a popular Luz Del Fuego, conheceu, no mesmo local, um cavalheiro, chamado Ladário Brito, que se veste na Sem-Cal. A jovem, cujo nome é Cleide, se apaixonou-se (vê aí onde fica melhor colocado o oblíquo, Osvaldo) pelo Ladário e, já vai pra mais de um ano, a dupla casou.

Agora — noticiam os jornais — vem de nascer o primeiro menino nudista. Sim, porque, mesmo depois de casados, Ladário e Cleide continuaram firmes como sócios do Clube Naturalista do Brasil, com sede na acima citada Ilha do Sol.

A mãe do primeiro menino nudista é quem dá entrevista à imprensa saudável, explicando que a criança, se tivesse nascido menina, ia se chamar Lua mas felizmente — nasceu menino e será batizado com o nome de Sol, coitadinho. De qualquer maneira, Sol é melhor do que Lua, pois tem luz própria, ainda que não seja Del Fuego.

Dona Cleide Brito está contentíssima com o nascer do Sol e já declarou que o seu júbilo é enorme. Tão grande que até parece que o Sol nasceu pra todos. Ela foi muito fotografada logo após o Nascente e os jornais abriram espaço para dar um lugar ao Sol, razão pela qual também apareceram nas reportagens diversas fotos do menino.

Nós — embora achando que nudismo é como brincadeira, isto é, tem hora — não podemos deixar de cumprimentar o casal e muito principalmente a jovem mãe que deu.à luz o Sol. Apenas gostaríamos de corrigir um equívoco de Dona Cleide, no que tange à sua declaração de que seu filho é o primeiro menino nudista nascido nesta cidade.

Para não cometer um erro, andamos mesmo a consultar entendidos no assunto, acabando por recorrer à Tia Zulmira, como sempre fazemos em caso de dúvida. Pedimos à sábia ermitã da Boca do Mato para nos informar se não é precipitação de Dona Cleide reclamar para seu filho o título de primeiro menino nudista.

A experiente parenta nem pestanejou para responder que, de fato, há aí um erro que a sócia do Clube Naturalista cometeu, com relação a prioridades nudistas do garoto. E acrescentou, não sem antes meter um pouco de malícia:

— Salvo um ou outro cocoroca que já nasceu de touca, todo menino, quando nasce, é nudista.

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Fonte: Tia Zulmira e Eu  - Stanislaw Ponte Preta - 6.ª edição - Ilustrado por Jaguar - EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.