quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Desastre de trem

Quando se conheceram ele foi franco:

— Eu sou muito bom, mas tenho um defeito.

— Qual?

Ele pareceu vacilar antes de responder:

— Sou ciumento.

E o era, de fato. Um ciumento sóbrio, que não dava a perceber, mas que se mordia por dentro. Por isso mesmo, por causa desse temperamento, é que não se casara nunca. Explicava aos amigos:

— “Eu me conheço. Sei o gênio que tenho”. Completara quarenta e cinco anos em solidão. Dir-se-ia um solteirão solícito e irremediável. Mas, um dia, foi a uma festa e lá conheceu Valquíria, jovem viúva de vinte e dois anos. As amigas da pequena cochichavam, entre si: “Vinte e dois, fora os que mamou”. Mas o fato é que aparentava essa idade ou pouco mais. E, conversa vai, conversa vem, houve um grande interesse, profundo e recíproco. Valquíria era baiana e morena, muito viva, muito alegre.

Dias depois, Antoniel dizia: “Se não fosse a diferença de idade...”. O fato é que estava apaixonado e, pela primeira vez na vida, Valquíria parecia animá-lo com olhares. Olhares, sorrisos e uma série de pequenas atenções, fúteis, mas significativas. E foi então que Antoniel revelou que era ciumento e perguntou se ela não tinha medo.

— Medo? — Estranhou. — Mas se eu até gosto!

— Sério?

— Natural!

Casaram-se seis meses depois. Pelo gosto de Antoniel, teria sido uma cerimônia muito simples e íntima. Confessava: “Sou contra exibição, contra carnaval”. Valquíria, porém, exigiu pompa, carro enfeitado com flores de laranjeira e festa em casa. Antoniel submeteu-se com bom humor: “Você é quem manda, meu anjo”.

O CASAL FELIZ

No fundo, porém, e sem nada dizer à esposa, Antoniel fazia comentário interior: “Diferença de idade é espeto”. Era esse o seu grande medo. Os dias, as semanas, os meses voavam, porém, sem que nenhuma desinteligência surgisse entre os dois.

Valquíria não se cansava de espalhar: “Eu sempre gostei de homem muito mais velho do que eu”. Na intimidade, com o marido, uma de suas distrações prediletas era procurar cabelos brancos na cabeça de Antoniel. Fazia essa pesquisa com verdadeiro deleite, e exclamava:

— Achei mais um!

Arrancava-o e fazia exibição, com uma alegria de menina, e ainda mexia com ele:

— Estás ficando velhinho!

O esposo ria também, com um fundo de melancolia. Fazia cálculos: “Quando Valquíria tiver trinta e cinco, eu terei cinqüenta e oito”. Essa aritmética de anos o amargurava. Continuava o seu exasperante monólogo interior: “O homem com cinqüenta e oito anos é uma múmia, não dá mais no couro. Ao passo que a mulher de trinta e cinco...”. Em casa com a mulher, fazia a blague: “Tenho ciúmes de ti”. E, como ele não conseguia evitar uma certa gravidade involuntária ao dizer isso, ela encarava:

— Eu te dou motivo?

Era obrigado a reconhecer:

— Não. Nunca.

A VIAGEM

Era verdade. Jamais Valquíria sugerira, com o seu comportamento, qualquer dúvida, qualquer suspeita. Ela dizia, numa comparação trivial, mas exata, que sua vida era “um livro aberto”. Só saía com o marido, a não ser quando, uma vez por semana, visitava sua mãe na cidade. Já, então, sozinha, porque as ocupações do marido o retinham no subúrbio. E, após a lua-de-mel, combinaram em termos definitivos:

— Você vai de manhã — dissera ele. — Passe o dia com sua mãe e volte de tarde.

E assim, quando Valquíria ia fazer a visita filial, o marido a deixava na estação, onde a esposa apanhava o trem elétrico e ele seguia para o trabalho. Durante três anos, viveram uma felicidade tranqüila e sempre igual. Antoniel podia dizer: —
“Foi um alto negócio o meu casamento”. E insistia: — “Um negocião”.

Até que chegou uma terça-feira, dia em que Valquíria, como fazia sempre, devia ir ver a mãe. Quando Antoniel acordou nessa manhã, já a mulher estava diante do espelho, pintando-se. Tomara um banho muito demorado, perfumara todo o corpo com água-de-colônia Flor de Maçã. E agora passava batom nos lábios. O marido mal desperto teve um bocejo e comentou:

— Você parece que vai a uma festa!

— Por quê?

Novo bocejo:

— Porque está se embonecando toda!

E passou. Quarenta minutos depois, ele já escovara os dentes, fizera a barba e tomara banho; puderam tomar café juntos. Quando a mulher se levantou, ele deixou escapar o galanteio:

— Você hoje está uma uva!

Pouco depois, ele a levava à estação.

Quando o trem encostou, Antoniel lembrou, antes que ela embarcasse:

— Dá lembranças à tua mãe!

A CATÁSTROFE

Partiu o trem e Antoniel ainda esperou que ele desaparecesse na primeira curva. Só então dirigiu-se para o emprego. Mais tarde, ele se lembraria da primeira pergunta que fez ao contí¬nuo ao entrar no escritório:

— Que dia é hoje?

— Quatro.

E Antoniel, apanhando umas cartas em cima da mesa, repetiu sem ter de quê: “4 de março de 1952”. Dir-se-ia que, sem saber, sem sentir, estava dando uma importância toda especial à data, como se ela devesse ficar marcada na sua vida, e para sempre. Quanto tempo se passou até que se recebesse a notícia? Talvez uns vinte minutos ou pouco mais. O fato é que con¬feria umas faturas quando ouviu uma voz (talvez do contínuo) dizendo a uma moça do escritório:

— “Parece que houve um desastre de trem”.

A mesma voz sublinhava: — “Um desastre horrível”.

Uma coisa se gravou, desde logo, no espírito de Antoniel; o desastre de trem.

Fosse de avião, de automóvel, de ônibus, ele não se levantaria, como se levantou, não iria interrogar o rapaz:

— Desastre de trem?

De manga de camisa, deixou o escritório. Estava ainda calmo, embora de uma calma intensa, uma calma apaixonada. Mas, no mais íntimo de si mesmo, havia certeza, definitiva, irrevogável certeza: o desastre ocorrera com o trem em que viajava Valquíria. Podia ser outro. A toda hora e em toda parte, milhares de trens deslizam nos trilhos do mundo, em todas as direções. Mas ele sabia, por uma intuição mágica e apavorante, que, entre todos, o destino escolhera aquele trem e não outro qualquer. Passou por um botequim e se deteve; o rádio de lá irradiava, justamente, as notícias do desastre. Foi recebendo o impacto de cada notícia: “Cem mortos”, “setenta e cinco mortos”, “oitenta mortos”. Uma coisa queria saber no tumulto das informações contraditórias. E soube que era, de fato, o trem de Nova Iguaçu.

O MARTÍRIO

Guardou para si o desespero. Podia recorrer a um amigo, a um parente ou, mesmo, tentar a simpatia e a solidariedade de um desconhecido. Mas fora arrancado da sua normalidade. Dir-se-ia que uma loucura prodigiosamente sóbria e lúcida se apoderava dele. Uma hora depois, estava no local do desastre. E ele próprio ia juntando do chão braços sangrando, pernas, cabeças. Houve um momento em que, olhando um morto decapitado, seu estômago se contraiu numa náusea violenta. Ao mesmo tempo, experimentava uma obsessão amarga.

E, então, ouviu que, atrás de si, alguém dizia: “Ali tem uma mulher sem cabeça”. Recuou então, fugiu, como um criminoso. Estava num tal estado mental que repetia para si mesmo: “É ela! É ela!”. Não discutiu, não verificou racionalmente a hipótese delirante. Foi para casa e enfiou-se lá, num medo atroz de que um amigo, um conhecido ou um parente trouxesse a verdade.

A MUTILADA

Anoitecia e ele não acendeu a luz. De vez em quando, do fundo de sua febre, pensava: “Eu acho que já estou louco”. E, súbito, escuta um rumor. Sim, não há dúvida: alguém introduz a chave na fechadura, alguém abre a porta. Aperta a cabeça en¬tre as mãos: “Quem seria?”. A criada, não, que tinha folga às terças-feiras. Ele se crispa e caminha, pé ante pé, ao encontro do recém-chegado. Este aperta o comutador e Antoniel tem uma espécie de uivo: “Você!”. Era Valquíria, sim, inteira, intacta, linda. Agarrou-se a ela, beijou-a na boca. Durante o beijo, porém, lembra-se do desastre.

Reflete num segundo, num décimo de segundo: “Ela devia estar morta ou mutilada”.

Durante três ou quatro minutos, sem uma palavra, ouviu a mulher contar que passara um dia agradabilíssimo com a mãe. Ele a interrompeu, com surdo sofrimento: “E a viagem? Não houve nada? Nenhum atraso de trem?”. Valquíria, sem nada perceber, e com alegre frivolidade, respondia: “Nada”.

Antoniel raciocinava: “Saltou antes do desastre”. E para quê? Segurou-a pelos dois braços, gritou-lhe a notícia do desastre: “O trem espatifou-se. Cem mortos!”.

Apavorada, ela começou a chorar, na sua pusilanimidade de adúltera. E, de fato, saltara antes do desastre; passara o dia longe de tudo e de todos, sem uma notícia do mundo. Voltara, ainda deliciada, de automóvel; e não vira ninguém, não sonhara com ninguém nem lera o jornal ou escutara o rádio. Às terças-feiras era o seu dia de amor. O marido gritava como um possesso:

— Tu devias estar sem braços, sem pernas! — E baixando a voz, arquejante: “Ou sem cabeça. Sem cabeça, como aquela mulher”.

Valquíria poderia ter gritado. Mas o medo a petrificava. Ele, sentado, exausto da própria cólera, repetia numa monotonia delirante: “Sem cabeça... sem cabeça...”.

Puxou-a pelo braço: “Vá dormir. Quero que durma”. Atirou-a na cama; deitada de bruços, ela ficou soluçando. Sentado na cama, Antoniel esperou que, vestida, de sapatos, dominada pelo cansaço, ela dormisse afinal. Então, num ar tétrico, foi ao quintal e apanhou a machadinha. Voltou, arquejando. De novo, no quarto, contemplou-a, com certo espanto e sem amor. E pensou na mulher sem cabeça, do trem.

Ergueu então a machadinha e desfechou-lhe um golpe só, na altura do pescoço.

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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

A inocente

Sempre enxergara otimamente. Dizia mesmo:

— Graças a Deus, tenho uma vista fantástica!

A namorada fazia insinuação: — Você, meu filho, enxerga até demais!

Riam os dois. A menina o acusava de ver maldade onde não havia tal.

Num ciúme danado de tudo e de todos, Balduíno fazia toda sorte de reclamações. — Pensa que eu não vi, hein?

E ela: — Mas viu o quê, filho de Deus?

— Você olhando para aquele cara!

— Ah, que blasfêmia! Olha Balduíno, olha que Deus castiga!

Um dia, ele começou a ter uma série de perturbações visuais. Eram pequenos pontos na visão que, com o correr dos dias, se multiplicavam. Assustou-se. E vamos e venhamos: quem não tem medo de ficar cego? Correu para o oculista.

Escolheu um bem caro, na prevenção de que a tabela alta lhe significasse uma esmagadora eficiência clínica. O homem o submeteu a um milhão de exames. No fim de tudo, chegou à conclusão:

— Vamos tirar os dentes!

— Todos?

— Todos.

Assoviou: — Papagaio!

Em quatro ou três sessões, ficou com a boca vazia; uma boca de velha. E o pior ainda não foi isso: o pior é que não havia um só foco dentário, um único granuloma, nada. Ficou furioso: disse horrores e foi em cima do especialista. Com a mão na frente, escondendo publicamente os beiços murchos, concluiu:

— Fizeram comigo um papel sujíssimo.

UM HOMEM TRISTE

Não apareceu mais para a namorada. Ela mandava recados, verdadeiros S.O.S, mas Balduíno foi irredutível. Desenvolveu-se, nele, uma altivez, uma dignidade, um pudor de desdentado. A mão estava sempre na frente, servindo de folha de parreira. Aprendeu a difícil arte de não sorrir, em hipótese nenhuma. Ninguém mais triste, ninguém mais fúnebre.

Ele, subjugado pelo complexo de desdentado, não olhava para as mulheres. Ia de casa ao trabalho e vice-versa, numa vergonha que já era doença. Que poderia mesmo transformar-se em loucura. Reclamavam:

— Toma jeito, rapaz! Sossega!

Ele, porém, sem nada dizer, tramava a própria salvação.

Recorreu a um dentista, sempre na base de que “o mais caro o melhor”. Quando soube que o Dr.fulano cobrava trezentos cruzeiros a hora, esfregou as mãos de contente. E fez o comentário:

— Esse é dos meus!

Lá compareceu, no sonho de uma dentadura dupla.

Fizeram um orçamento principesco: doze contos! Segundo seus cálculos, uma dentadura de doze contos seria a mais cara do Rio de Janeiro. Calculava: “Vou ficar com uma boca de anjo!”.

O dentista chamou um protético, tiraram os moldes, e Balduíno, na cadeira do dentista, pedia uma dentadura genial, que fosse uma obra de arte, para já.

Ponderaram:

— Não pode ser assim, não, que diabo!

— Ué!

— Claro! Primeiro tem que deixar as gengivas murcharem. Depois, então, é que tiraremos o molde.

A ESTRÉIA

No dia que saiu do gabinete com o aparelho, parecia ter um ovo na boca. Gemia:

— Como dói esse troço!

Fora, porém, divertido. O dentista explicara que nos primeiros dias era assim mesmo. De qualquer maneira, e embora com o céu da boca em petição de miséria, andou pela cidade com outra aparência. Olhava de cima os demais, como se viajasse num andor. Essa sensação de andor não o abandonou mais.

Seu horário normal de entrar em casa era nove horas. Apareceu às onze, depois de circular vastamente. Ainda não podia falar direito, mas usou o sorriso de maneira abundante. Uma moça que, aliás, ia acompanhada, talvez pelo marido, retribuiu o seu olhar.

Ele voltou para casa com uma certa pena, e fazendo a seguinte reflexão: “Ah, se não estivesse acompanhada!”.

Tece que mostrar à família os dentes novos. Mandavam:

— Ri!

Ele ostentava, deleitado, a superabundância de dentes.

Numa última dúvida, fez uma enquete com o pessoal:

— Está parecendo postiço, está?

Houve uma unanimidade feroz. Todos afirmavam que não, que não pareciam absolutamente postiços. E uma coisa o empolgava de maneira particular: — o preço do serviço, que atingia o total invejável de duzentos contos.

CONQUISTADOS

Mudou por completo. Dir-se-ia outra pessoa, seja física ou psicologicamente. Ria de tudo, ria por coisa nenhuma. Às vezes, diante de uma piada boba ou idiota, fazia um escândalo:

— Essa é a maior! Essa é a maior!

Queria um pretexto para o riso escancarado.

As senhoras, meio assustadas com essa exuberância, diziam

— Você deve gostar de uma boa pândega!

Ele não dizia que sim, nem que não. Antes, fugia das mulheres, não as olhava. Agora, em função dos dentes novos, não podia ver uma pequena: ou dava em cima ou dizia que dava em cima. Não importava muito o namoro, a conquista. O que interessava realmente era a possibilidade de surgir como um galã irresistível ante os conhecidos.

Soprava para um, para outro:

— Viste aquela?

— Vi.

— Que tal?

E o amigo:

— Um espetáculo!

Ele suspirava:

— Não me dá uma folga. O dia todo. Assim não é possível.

Qualquer mulher que passasse por ele, já sabe. Apregoava logo:

— Que bola ela me deu, viste?

Fazia questão, sobretudo, das sérias, das inatacáveis e, em especial, das casadas. Contava episódios arrepiantes em meio da admiração geral. Alguém argumentava:

— Mas não é possível, não pode ser!

— Por quê, ora essa?

E o outro:

— Porque eu conheço aquela senhora, é honestíssima. Doida pelo marido!

Balduíno recostava-se na cadeira: atirava, no meio dos parvos, a sua teoria predileta:

— A mulher é séria até o momento em que deixa de ser!

BATOM NO LENÇO

Na Rua José Antunes, onde ele morava, veio residir d. Branca, casadinha de fresco. Era doce, linda e tudo o mais que se possa atribuir a uma jovem em lua-de-mel. Com cinco dias de casados, ela e o marido quase não saíam. Uma vez ou outra, quando o esposo não estava em casa, d. Branca surgia um momento na janela.

Numa dessas vezes, coincidiu que Balduíno passasse. De noite, na esquina, ele deblaterava:

— É o cúmulo!

— O quê?

Parecia realmente enjoado:

— Eu não diria nada se, enfim, tivesse mais tempo de casada... Mas não fez nem quinze dias e quando acaba...

Contou, para o auditório embevecido, a história abominável:

— Só vocês vendo a bola, meninos, que ela me deu! Uma pouca-vergonha! Por isto é que não me caso; porque não sou besta!

Durante seis meses não fez outra coisa.

Deixou mesmo de se interessar pelas outras mulheres. Era como se só existisse a pobre da d. Branca na face da Terra. Cada noite trazia uma novidade e concluía sempre com um comentário:

— Não se pode fiar em mulher nenhuma! É tudo a mesma coisa!

Seu maior êxito, porém, foi quando exibiu, para a roda de amigos desocupados, o lenço sujo de batom. Lambia os beiços, o miserável; chamava os amigos para ver e sondava:

— Vê se o batom já saiu, vê!

Os outros, em brasas, queriam saber:

— Mas que foi? Que foi?

Ele, teatral, revelou, baixando a voz e olhando para os lados, que dera um beijo tremendo na infeliz senhora.

Queriam detalhes, perguntavam que tal etc. E ele, já num princípio de tédio, de fastio daqueles lábios de mulher:

— Mais ou menos.

O CÂNCER

Por pura coincidência ou castigo sobrenatural? Eis o que ninguém saberá jamais. O certo é que a notícia correu: “Balduíno está com câncer na língua!”. Foi a tudo quanto era médico, mas não evitou a operação.

Um dia, o marido de d. Branca invadiu o quarto do moribundo. Recebera uma carta anônima e, dentro do envelope de ofício, um lenço sujo de batom. Fora de si, queria saber se era verdade ou se...

Balduíno estava de novo sem os dentes, a boca de velho. O marido perguntava: “É verdade? Diga! É verdade?”. Sem língua, não podia falar. Pediu um lápis; já no limite entre a vida e a morte, escreveu:

— É verdade.

Estava morrendo sem dentes e sem língua. O marido partiu. A esposa estranhou que ele chegasse cedo e ia fazer uma observação amiga qualquer. O pobre-diabo, então:

— Teu amante confessou.

D. Branca quis gritar, fugir, mas nem uma coisa, nem outra. Imóvel e muda, recebeu quatro tiros. Seu medo se extinguiu na morte.

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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

Escorpião de banheiro

Viviam como cão e gato. E eram brigas diárias e tremen­das. Numa das vezes, foi até interessante: — Belchior deu um murro, de mão fechada, na testa de Elvira. A pequena virou por cima das cadeiras. Ergueu-se, ainda vesga da pancada e da que­da. Mas não teve dúvidas maiores: — apanhou o aparelho de rádio e o varejou contra Belchior.

Este abaixou-se e o projétil acertou em cheio na cristaleira, com um estrondo inimaginável. A esta altura dos acontecimentos, os vizinhos em massa inva­dem a casa. A própria radiopatrulha encostava na porta. Subju­gados, os cônjuges ainda esperneavam. Belchior dava arrancos frenéticos:

— Te arrebento! Te parto a cara!

E ela, feito uma fúria:

— Palhação! Cretino!

Para os vizinhos, a pancadaria recíproca e cotidiana era mo­tivo de fascinação e, além disso, de náusea. Há cinco anos leva­vam essa vida e ninguém entendia que continuassem juntos. Ponderaram:

— Vocês não combinam. Por que não se separam?

Ambos concordavam:

— É o golpe! É o golpe!

Mas a separação vinha sendo adiada através das semanas, dos meses e dos anos. Dir-se-ia que, apesar das incompatibili­dades, existia entre os dois um vínculo qualquer, misterioso e fatal. Por fim, tanto os parentes de Belchior como os de Elvira já rosnavam:

— Isso é falta de vergonha! De brio! No duro que é!


MARINA


Até que, um dia, Belchior conheceu Marina. Com esse no­me de letra de Dorival Caymmi, era um amor de pequena, miú­da e linda, doce de sentimentos e de modos e, de resto, educa­díssima. Acostumado com Elvira, que era violenta, desbocada e neurastênica, adorou a suavidade de Marina. No segundo ou terceiro encontro, a menina pergunta: — “Você é casado?”. Ele hesita na resposta. Mas toma coragem e diz:

— Olha, meu anjo. Quero ser leal contigo. Não sou casa­do, mas vivo com uma pessoa assim, assim, separada do mari­do. Compreendeu?

— Compreendi.

E ele:

— Aliás, quero te dizer o seguinte: — essa pessoa é uma jararaca, uma lacraia, um escorpião de banheiro. Não gosta de mim, nem eu dela. Antes de te conhecer, eu já estava resolvido a chutá-la. E, agora que te conheço, mais do que nunca, natu­ralmente.

Marina deu-se por satisfeita. No dia seguinte, Elvira sai de­pois do almoço. Quando volta, ao cair da noite, vê escrita, na parede, a lápis, com a letra do marido, a seguinte mensagem: “VAI-TE PARA O DIABO QUE TE CARREGUE. ADEUS!”.

Elvira, que abominava o companheiro, devia achar o fato uma delícia. Em vez disso, porém, rolou no chão, espumando em ataques. Quando os vizinhos entraram de roldão, atraídos pela gritaria, ela apontou a parede: — “Olha o que aquele ca­chorro escreveu!”. Os vizinhos lêem e relêem atônitos. Elvira soluça:

— Mas ele há de voltar! — E repetia com uma certeza faná­tica: — Há de voltar!


FELICIDADE


Consumada a separação, a felicidade de Belchior foi uma dessas coisas convulsas e patéticas. Como primeira medida, ba­teu o telefone para Marina:

— Estou livre! Livre!

Do outro lado da linha, a pequena chorava:

— Deus te abençoe!

De noite, Belchior, ainda delirante, reuniu os amigos no bar. Bebeu toda a noite. Fez, aos berros, as confidências mais comprometedoras. Em dado momento, com o olho injetado e a bo­ca torcida, esbravejava, numa reminiscência de leitura:

— A consciência não existe! A única consciência que eu re­conheço é o medo da polícia! — Alarga o colarinho, afrouxa o laço da gravata e uiva: — Foi o medo da polícia que me impe­diu de matar Elvira!

Voltou para casa carregado e vomitando nos amigos.


O ANJO


Lera na adolescência um romance ordinaríssimo, que se cha­mava Anjo de redenção. E agora, vendo Marina e sua meiguice consoladora, fez sua tentativa literária ao dizer: — “Tu és o meu anjo de redenção!”. Ela baixou os olhos, arrepiada, e disse:

— Eu faço o que posso!

Apresentou a menina aos pais. E, depois, veio sôfrego sa­ber a opinião dos velhos. A mãe beija-o na testa:

— Uma simpatia!

E o pai, grave:

— Dessa gostei!

Mais quinze dias e houve o pedido oficial. Na tarde em que ficaram noivos, Belchior leva a pequena para a varanda; drama­tiza: — “Quando te conheci, estava na seguinte situação: ou ma­tava ou me matava. Tu me salvaste a vida”.


O IDÍLIO


Pareciam feitos um para o outro. De quinze em quinze mi­nutos, Belchior descobria uma nova afinidade com a menina. De resto, coincidiam em tudo, de uma maneira impressionan­te. Gostavam dos mesmos filmes, das mesmas músicas, das mes­mas paisagens e dos mesmos doces. Ele, que fora tão infeliz na sua anterior experiência sentimental, a ponto de quebrar a ca­beça da amante com um rádio de pilha — agora parecia nave­gar num mar ou, por outra, num lago azul. Viviam sem rixas, sem bate-bocas, numa calma talvez parecida com o tédio. Pouco a pouco, porém, sem que Belchior percebesse, uma certa melancolia se insinuou na sua alma. A noiva acabou estranhando:

— Estou te achando meio assim, triste.

— Eu?

— Você. Anda meio esquisito. Que é que há?

Protestou, rubro:

— Esquisito por quê? Pelo contrário. Nunca me senti tão bem. — Pigarreia e exagera: — “Eu sou o sujeito mais feliz do mundo. Tenho você, quer dizer, tenho tudo”.


A OUTRA

E, de fato, Belchior era ou devia ser o sujeito mais feliz do mundo. Amava e era amado, livrara-se de uma mulher histérica e desequilibrada, que lhe arruinava a vida, a alma, o fígado. Pois bem. Apesar disso, ou por isso mesmo, deu para andar depri­mido, insatisfeito. Explicava vagamente: — “Deve ser esgota­mento”. Nas proximidades do casamento, encontrou-se com um velho amigo, o Peçanha. Este o chamou de lado:

— A Elvira anda jurando que você volta! Diz que quer ser mico de circo se você não voltar!

Pulou, malcriadíssimo:

— Ela é besta! Não quero ver essa cara nem pintada! Isola!

Estaria certa? Estaria errada? Ninguém podia saber. Havia, porém, quem julgasse ver, no caso Belchior e Elvira, um desses sombrios mistérios do sexo, sem explicação possível.


NOITE DE NÚPCIAS


Finalmente, há o casamento. Na igreja, quando Marina pas­sou a caminho do altar, houve um deslumbramento. Na sua graça frágil e intensa, era uma imagem realmente inesquecível. Após a cerimônia, voltam os dois para a casa dos pais de Marina, on­de passariam a residir. Às onze horas, despede-se o último con­vidado; os velhos, depois de abençoarem o casal, recolhem-se. Marina, transfigurada, sussurra: “Espera um pouco que eu te cha­mo, Belchior. Espera”. Nesse instante, bate o telefone e Belchior, surpreso e inquieto, vai atender. Era Elvira. Está dizendo:

— Olha! Eu te espero. A chave está debaixo do tapetinho. Vem, agora!

E desligou. Belchior encostou-se à parede, com a vista tur­va e as pernas bambas. Houve, nele, uma brusca e violenta nos­talgia da mulher que era o seu ódio e seu desejo. Naquele justo momento Marina entreabriu a porta e avisou:

— Pode vir, meu bem!

Ele, porém, não pensava mais na noiva. Dir-se-ia um mag­netizado. Sem rumor, desliza pela escada, rente à parede. Meia hora depois, desce de um táxi na porta da antiga residência. In­sinua a mão debaixo do capacho, apanha a chave. Entra. Em pé, no meio da escada, com o quimono rosa em cima da cami­sola, os pés nas sandálias de arminho, Elvira o espera. Não há uma palavra entre os dois. Belchior enlaça a pequena e, com raiva e gana, a beija muitas vezes. Então, Elvira ri, pendendo a cabeça: — “Meu!”.

E foi esse orgulho que a perdeu. As mãos de Belchior des­cem e se fecham sobre o pescoço macio. Aperta até o fim, sem saber que a estrangulava, sem saber que a estava matando. De­pois, abraçado ao cadáver, diz arquejante:

— Não te enterrarei nunca! Ficarás comigo aqui!

E pousa a cabeça sobre o coração que não bate mais.

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Nelson Rodrigues. A vida como ela é… São Paulo: Companhia das Letras, 1993.