Quando se conheceram ele foi franco:
— Eu sou muito bom, mas tenho um defeito.
— Qual?
Ele pareceu vacilar antes de responder:
— Sou ciumento.
E o era, de fato. Um ciumento sóbrio, que não dava a perceber, mas que
se mordia por dentro. Por isso mesmo, por causa desse temperamento, é
que não se casara nunca. Explicava aos amigos:
— “Eu me conheço. Sei o gênio que tenho”. Completara quarenta e cinco
anos em solidão. Dir-se-ia um solteirão solícito e irremediável. Mas, um
dia, foi a uma festa e lá conheceu Valquíria, jovem viúva de vinte e
dois anos. As amigas da pequena cochichavam, entre si: “Vinte e dois,
fora os que mamou”. Mas o fato é que aparentava essa idade ou pouco
mais. E, conversa vai, conversa vem, houve um grande interesse, profundo
e recíproco. Valquíria era baiana e morena, muito viva, muito alegre.
Dias depois, Antoniel dizia: “Se não fosse a diferença de idade...”. O
fato é que estava apaixonado e, pela primeira vez na vida, Valquíria
parecia animá-lo com olhares. Olhares, sorrisos e uma série de pequenas
atenções, fúteis, mas significativas. E foi então que Antoniel revelou
que era ciumento e perguntou se ela não tinha medo.
— Medo? — Estranhou. — Mas se eu até gosto!
— Sério?
— Natural!
Casaram-se seis meses depois. Pelo gosto de Antoniel, teria sido uma
cerimônia muito simples e íntima. Confessava: “Sou contra exibição,
contra carnaval”. Valquíria, porém, exigiu pompa, carro enfeitado com
flores de laranjeira e festa em casa. Antoniel submeteu-se com bom
humor: “Você é quem manda, meu anjo”.
O CASAL FELIZ
No fundo, porém, e sem nada dizer à esposa, Antoniel fazia comentário
interior: “Diferença de idade é espeto”. Era esse o seu grande medo. Os
dias, as semanas, os meses voavam, porém, sem que nenhuma
desinteligência surgisse entre os dois.
Valquíria não se cansava de espalhar: “Eu sempre gostei de homem muito
mais velho do que eu”. Na intimidade, com o marido, uma de suas
distrações prediletas era procurar cabelos brancos na cabeça de
Antoniel. Fazia essa pesquisa com verdadeiro deleite, e exclamava:
— Achei mais um!
Arrancava-o e fazia exibição, com uma alegria de menina, e ainda mexia com ele:
— Estás ficando velhinho!
O esposo ria também, com um fundo de melancolia. Fazia cálculos: “Quando
Valquíria tiver trinta e cinco, eu terei cinqüenta e oito”. Essa
aritmética de anos o amargurava. Continuava o seu exasperante monólogo
interior: “O homem com cinqüenta e oito anos é uma múmia, não dá mais no
couro. Ao passo que a mulher de trinta e cinco...”. Em casa com a
mulher, fazia a blague: “Tenho ciúmes de ti”. E, como ele não conseguia
evitar uma certa gravidade involuntária ao dizer isso, ela encarava:
— Eu te dou motivo?
Era obrigado a reconhecer:
— Não. Nunca.
A VIAGEM
Era verdade. Jamais Valquíria sugerira, com o seu comportamento,
qualquer dúvida, qualquer suspeita. Ela dizia, numa comparação trivial,
mas exata, que sua vida era “um livro aberto”. Só saía com o marido, a
não ser quando, uma vez por semana, visitava sua mãe na cidade. Já,
então, sozinha, porque as ocupações do marido o retinham no subúrbio. E,
após a lua-de-mel, combinaram em termos definitivos:
— Você vai de manhã — dissera ele. — Passe o dia com sua mãe e volte de tarde.
E assim, quando Valquíria ia fazer a visita filial, o marido a deixava
na estação, onde a esposa apanhava o trem elétrico e ele seguia para o
trabalho. Durante três anos, viveram uma felicidade tranqüila e sempre
igual. Antoniel podia dizer: —
“Foi um alto negócio o meu casamento”. E insistia: — “Um negocião”.
Até que chegou uma terça-feira, dia em que Valquíria, como fazia sempre,
devia ir ver a mãe. Quando Antoniel acordou nessa manhã, já a mulher
estava diante do espelho, pintando-se. Tomara um banho muito demorado,
perfumara todo o corpo com água-de-colônia Flor de Maçã. E agora passava
batom nos lábios. O marido mal desperto teve um bocejo e comentou:
— Você parece que vai a uma festa!
— Por quê?
Novo bocejo:
— Porque está se embonecando toda!
E passou. Quarenta minutos depois, ele já escovara os dentes, fizera a
barba e tomara banho; puderam tomar café juntos. Quando a mulher se
levantou, ele deixou escapar o galanteio:
— Você hoje está uma uva!
Pouco depois, ele a levava à estação.
Quando o trem encostou, Antoniel lembrou, antes que ela embarcasse:
— Dá lembranças à tua mãe!
A CATÁSTROFE
Partiu o trem e Antoniel ainda esperou que ele desaparecesse na primeira
curva. Só então dirigiu-se para o emprego. Mais tarde, ele se lembraria
da primeira pergunta que fez ao contí¬nuo ao entrar no escritório:
— Que dia é hoje?
— Quatro.
E Antoniel, apanhando umas cartas em cima da mesa, repetiu sem ter de
quê: “4 de março de 1952”. Dir-se-ia que, sem saber, sem sentir, estava
dando uma importância toda especial à data, como se ela devesse ficar
marcada na sua vida, e para sempre. Quanto tempo se passou até que se
recebesse a notícia? Talvez uns vinte minutos ou pouco mais. O fato é
que con¬feria umas faturas quando ouviu uma voz (talvez do contínuo)
dizendo a uma moça do escritório:
— “Parece que houve um desastre de trem”.
A mesma voz sublinhava: — “Um desastre horrível”.
Uma coisa se gravou, desde logo, no espírito de Antoniel; o desastre de trem.
Fosse de avião, de automóvel, de ônibus, ele não se levantaria, como se levantou, não iria interrogar o rapaz:
— Desastre de trem?
De manga de camisa, deixou o escritório. Estava ainda calmo, embora de
uma calma intensa, uma calma apaixonada. Mas, no mais íntimo de si
mesmo, havia certeza, definitiva, irrevogável certeza: o desastre
ocorrera com o trem em que viajava Valquíria. Podia ser outro. A toda
hora e em toda parte, milhares de trens deslizam nos trilhos do mundo,
em todas as direções. Mas ele sabia, por uma intuição mágica e
apavorante, que, entre todos, o destino escolhera aquele trem e não
outro qualquer. Passou por um botequim e se deteve; o rádio de lá
irradiava, justamente, as notícias do desastre. Foi recebendo o impacto
de cada notícia: “Cem mortos”, “setenta e cinco mortos”, “oitenta
mortos”. Uma coisa queria saber no tumulto das informações
contraditórias. E soube que era, de fato, o trem de Nova Iguaçu.
O MARTÍRIO
Guardou para si o desespero. Podia recorrer a um amigo, a um parente ou,
mesmo, tentar a simpatia e a solidariedade de um desconhecido. Mas fora
arrancado da sua normalidade. Dir-se-ia que uma loucura prodigiosamente
sóbria e lúcida se apoderava dele. Uma hora depois, estava no local do
desastre. E ele próprio ia juntando do chão braços sangrando, pernas,
cabeças. Houve um momento em que, olhando um morto decapitado, seu
estômago se contraiu numa náusea violenta. Ao mesmo tempo, experimentava
uma obsessão amarga.
E, então, ouviu que, atrás de si, alguém dizia: “Ali tem uma mulher sem
cabeça”. Recuou então, fugiu, como um criminoso. Estava num tal estado
mental que repetia para si mesmo: “É ela! É ela!”. Não discutiu, não
verificou racionalmente a hipótese delirante. Foi para casa e enfiou-se
lá, num medo atroz de que um amigo, um conhecido ou um parente trouxesse
a verdade.
A MUTILADA
Anoitecia e ele não acendeu a luz. De vez em quando, do fundo de sua
febre, pensava: “Eu acho que já estou louco”. E, súbito, escuta um
rumor. Sim, não há dúvida: alguém introduz a chave na fechadura, alguém
abre a porta. Aperta a cabeça en¬tre as mãos: “Quem seria?”. A criada,
não, que tinha folga às terças-feiras. Ele se crispa e caminha, pé ante
pé, ao encontro do recém-chegado. Este aperta o comutador e Antoniel tem
uma espécie de uivo: “Você!”. Era Valquíria, sim, inteira, intacta,
linda. Agarrou-se a ela, beijou-a na boca. Durante o beijo, porém,
lembra-se do desastre.
Reflete num segundo, num décimo de segundo: “Ela devia estar morta ou mutilada”.
Durante três ou quatro minutos, sem uma palavra, ouviu a mulher contar
que passara um dia agradabilíssimo com a mãe. Ele a interrompeu, com
surdo sofrimento: “E a viagem? Não houve nada? Nenhum atraso de trem?”.
Valquíria, sem nada perceber, e com alegre frivolidade, respondia:
“Nada”.
Antoniel raciocinava: “Saltou antes do desastre”. E para quê? Segurou-a
pelos dois braços, gritou-lhe a notícia do desastre: “O trem
espatifou-se. Cem mortos!”.
Apavorada, ela começou a chorar, na sua pusilanimidade de adúltera. E,
de fato, saltara antes do desastre; passara o dia longe de tudo e de
todos, sem uma notícia do mundo. Voltara, ainda deliciada, de automóvel;
e não vira ninguém, não sonhara com ninguém nem lera o jornal ou
escutara o rádio. Às terças-feiras era o seu dia de amor. O marido
gritava como um possesso:
— Tu devias estar sem braços, sem pernas! — E baixando a voz, arquejante: “Ou sem cabeça. Sem cabeça, como aquela mulher”.
Valquíria poderia ter gritado. Mas o medo a petrificava. Ele, sentado,
exausto da própria cólera, repetia numa monotonia delirante: “Sem
cabeça... sem cabeça...”.
Puxou-a pelo braço: “Vá dormir. Quero que durma”. Atirou-a na cama;
deitada de bruços, ela ficou soluçando. Sentado na cama, Antoniel
esperou que, vestida, de sapatos, dominada pelo cansaço, ela dormisse
afinal. Então, num ar tétrico, foi ao quintal e apanhou a machadinha.
Voltou, arquejando. De novo, no quarto, contemplou-a, com certo espanto e
sem amor. E pensou na mulher sem cabeça, do trem.
Ergueu então a machadinha e desfechou-lhe um golpe só, na altura do pescoço.
________________________________________________________________
quinta-feira, 11 de agosto de 2011
Desastre de trem
A inocente
Sempre enxergara otimamente. Dizia mesmo:
— Graças a Deus, tenho uma vista fantástica!
A namorada fazia insinuação: — Você, meu filho, enxerga até demais!
Riam os dois. A menina o acusava de ver maldade onde não havia tal.
Num ciúme danado de tudo e de todos, Balduíno fazia toda sorte de reclamações. — Pensa que eu não vi, hein?
E ela: — Mas viu o quê, filho de Deus?
— Você olhando para aquele cara!
— Ah, que blasfêmia! Olha Balduíno, olha que Deus castiga!
Um dia, ele começou a ter uma série de perturbações visuais. Eram
pequenos pontos na visão que, com o correr dos dias, se multiplicavam.
Assustou-se. E vamos e venhamos: quem não tem medo de ficar cego? Correu
para o oculista.
Escolheu um bem caro, na prevenção de que a tabela alta lhe significasse
uma esmagadora eficiência clínica. O homem o submeteu a um milhão de
exames. No fim de tudo, chegou à conclusão:
— Vamos tirar os dentes!
— Todos?
— Todos.
Assoviou: — Papagaio!
Em quatro ou três sessões, ficou com a boca vazia; uma boca de velha. E o
pior ainda não foi isso: o pior é que não havia um só foco dentário, um
único granuloma, nada. Ficou furioso: disse horrores e foi em cima do
especialista. Com a mão na frente, escondendo publicamente os beiços
murchos, concluiu:
— Fizeram comigo um papel sujíssimo.
UM HOMEM TRISTE
Não apareceu mais para a namorada. Ela mandava recados, verdadeiros
S.O.S, mas Balduíno foi irredutível. Desenvolveu-se, nele, uma altivez,
uma dignidade, um pudor de desdentado. A mão estava sempre na frente,
servindo de folha de parreira. Aprendeu a difícil arte de não sorrir, em
hipótese nenhuma. Ninguém mais triste, ninguém mais fúnebre.
Ele, subjugado pelo complexo de desdentado, não olhava para as mulheres.
Ia de casa ao trabalho e vice-versa, numa vergonha que já era doença.
Que poderia mesmo transformar-se em loucura. Reclamavam:
— Toma jeito, rapaz! Sossega!
Ele, porém, sem nada dizer, tramava a própria salvação.
Recorreu a um dentista, sempre na base de que “o mais caro o melhor”.
Quando soube que o Dr.fulano cobrava trezentos cruzeiros a hora,
esfregou as mãos de contente. E fez o comentário:
— Esse é dos meus!
Lá compareceu, no sonho de uma dentadura dupla.
Fizeram um orçamento principesco: doze contos! Segundo seus cálculos,
uma dentadura de doze contos seria a mais cara do Rio de Janeiro.
Calculava: “Vou ficar com uma boca de anjo!”.
O dentista chamou um protético, tiraram os moldes, e Balduíno, na
cadeira do dentista, pedia uma dentadura genial, que fosse uma obra de
arte, para já.
Ponderaram:
— Não pode ser assim, não, que diabo!
— Ué!
— Claro! Primeiro tem que deixar as gengivas murcharem. Depois, então, é que tiraremos o molde.
A ESTRÉIA
No dia que saiu do gabinete com o aparelho, parecia ter um ovo na boca. Gemia:
— Como dói esse troço!
Fora, porém, divertido. O dentista explicara que nos primeiros dias era
assim mesmo. De qualquer maneira, e embora com o céu da boca em petição
de miséria, andou pela cidade com outra aparência. Olhava de cima os
demais, como se viajasse num andor. Essa sensação de andor não o
abandonou mais.
Seu horário normal de entrar em casa era nove horas. Apareceu às onze,
depois de circular vastamente. Ainda não podia falar direito, mas usou o
sorriso de maneira abundante. Uma moça que, aliás, ia acompanhada,
talvez pelo marido, retribuiu o seu olhar.
Ele voltou para casa com uma certa pena, e fazendo a seguinte reflexão: “Ah, se não estivesse acompanhada!”.
Tece que mostrar à família os dentes novos. Mandavam:
— Ri!
Ele ostentava, deleitado, a superabundância de dentes.
Numa última dúvida, fez uma enquete com o pessoal:
— Está parecendo postiço, está?
Houve uma unanimidade feroz. Todos afirmavam que não, que não pareciam
absolutamente postiços. E uma coisa o empolgava de maneira particular: —
o preço do serviço, que atingia o total invejável de duzentos contos.
CONQUISTADOS
Mudou por completo. Dir-se-ia outra pessoa, seja física ou
psicologicamente. Ria de tudo, ria por coisa nenhuma. Às vezes, diante
de uma piada boba ou idiota, fazia um escândalo:
— Essa é a maior! Essa é a maior!
Queria um pretexto para o riso escancarado.
As senhoras, meio assustadas com essa exuberância, diziam
— Você deve gostar de uma boa pândega!
Ele não dizia que sim, nem que não. Antes, fugia das mulheres, não as
olhava. Agora, em função dos dentes novos, não podia ver uma pequena: ou
dava em cima ou dizia que dava em cima. Não importava muito o namoro, a
conquista. O que interessava realmente era a possibilidade de surgir
como um galã irresistível ante os conhecidos.
Soprava para um, para outro:
— Viste aquela?
— Vi.
— Que tal?
E o amigo:
— Um espetáculo!
Ele suspirava:
— Não me dá uma folga. O dia todo. Assim não é possível.
Qualquer mulher que passasse por ele, já sabe. Apregoava logo:
— Que bola ela me deu, viste?
Fazia questão, sobretudo, das sérias, das inatacáveis e, em especial,
das casadas. Contava episódios arrepiantes em meio da admiração geral.
Alguém argumentava:
— Mas não é possível, não pode ser!
— Por quê, ora essa?
E o outro:
— Porque eu conheço aquela senhora, é honestíssima. Doida pelo marido!
Balduíno recostava-se na cadeira: atirava, no meio dos parvos, a sua teoria predileta:
— A mulher é séria até o momento em que deixa de ser!
BATOM NO LENÇO
Na Rua José Antunes, onde ele morava, veio residir d. Branca, casadinha
de fresco. Era doce, linda e tudo o mais que se possa atribuir a uma
jovem em lua-de-mel. Com cinco dias de casados, ela e o marido quase não
saíam. Uma vez ou outra, quando o esposo não estava em casa, d. Branca
surgia um momento na janela.
Numa dessas vezes, coincidiu que Balduíno passasse. De noite, na esquina, ele deblaterava:
— É o cúmulo!
— O quê?
Parecia realmente enjoado:
— Eu não diria nada se, enfim, tivesse mais tempo de casada... Mas não fez nem quinze dias e quando acaba...
Contou, para o auditório embevecido, a história abominável:
— Só vocês vendo a bola, meninos, que ela me deu! Uma pouca-vergonha! Por isto é que não me caso; porque não sou besta!
Durante seis meses não fez outra coisa.
Deixou mesmo de se interessar pelas outras mulheres. Era como se só
existisse a pobre da d. Branca na face da Terra. Cada noite trazia uma
novidade e concluía sempre com um comentário:
— Não se pode fiar em mulher nenhuma! É tudo a mesma coisa!
Seu maior êxito, porém, foi quando exibiu, para a roda de amigos
desocupados, o lenço sujo de batom. Lambia os beiços, o miserável;
chamava os amigos para ver e sondava:
— Vê se o batom já saiu, vê!
Os outros, em brasas, queriam saber:
— Mas que foi? Que foi?
Ele, teatral, revelou, baixando a voz e olhando para os lados, que dera um beijo tremendo na infeliz senhora.
Queriam detalhes, perguntavam que tal etc. E ele, já num princípio de tédio, de fastio daqueles lábios de mulher:
— Mais ou menos.
O CÂNCER
Por pura coincidência ou castigo sobrenatural? Eis o que ninguém saberá
jamais. O certo é que a notícia correu: “Balduíno está com câncer na
língua!”. Foi a tudo quanto era médico, mas não evitou a operação.
Um dia, o marido de d. Branca invadiu o quarto do moribundo. Recebera
uma carta anônima e, dentro do envelope de ofício, um lenço sujo de
batom. Fora de si, queria saber se era verdade ou se...
Balduíno estava de novo sem os dentes, a boca de velho. O marido
perguntava: “É verdade? Diga! É verdade?”. Sem língua, não podia falar.
Pediu um lápis; já no limite entre a vida e a morte, escreveu:
— É verdade.
Estava morrendo sem dentes e sem língua. O marido partiu. A esposa
estranhou que ele chegasse cedo e ia fazer uma observação amiga
qualquer. O pobre-diabo, então:
— Teu amante confessou.
D. Branca quis gritar, fugir, mas nem uma coisa, nem outra. Imóvel e
muda, recebeu quatro tiros. Seu medo se extinguiu na morte.
________________________________________________________________
Escorpião de banheiro
Viviam
como cão e gato. E eram brigas diárias e tremendas. Numa das vezes,
foi até interessante: — Belchior deu um murro, de mão fechada, na testa
de Elvira. A pequena virou por cima das cadeiras. Ergueu-se, ainda vesga
da pancada e da queda. Mas não teve dúvidas maiores: — apanhou o
aparelho de rádio e o varejou contra Belchior.
Este abaixou-se e o projétil acertou em cheio na cristaleira, com um
estrondo inimaginável. A esta altura dos acontecimentos, os vizinhos em
massa invadem a casa. A própria radiopatrulha encostava na porta.
Subjugados, os cônjuges ainda esperneavam. Belchior dava arrancos
frenéticos:
— Te arrebento! Te parto a cara!
E ela, feito uma fúria:
— Palhação! Cretino!
Para os vizinhos, a pancadaria recíproca e cotidiana era motivo de
fascinação e, além disso, de náusea. Há cinco anos levavam essa vida e
ninguém entendia que continuassem juntos. Ponderaram:
— Vocês não combinam. Por que não se separam?
Ambos concordavam:
— É o golpe! É o golpe!
Mas a separação vinha sendo adiada através das semanas, dos meses e dos
anos. Dir-se-ia que, apesar das incompatibilidades, existia entre os
dois um vínculo qualquer, misterioso e fatal. Por fim, tanto os parentes
de Belchior como os de Elvira já rosnavam:
— Isso é falta de vergonha! De brio! No duro que é!
MARINA
Até que, um dia, Belchior conheceu Marina. Com esse nome de letra de
Dorival Caymmi, era um amor de pequena, miúda e linda, doce de
sentimentos e de modos e, de resto, educadíssima. Acostumado com
Elvira, que era violenta, desbocada e neurastênica, adorou a suavidade
de Marina. No segundo ou terceiro encontro, a menina pergunta: — “Você é
casado?”. Ele hesita na resposta. Mas toma coragem e diz:
— Olha, meu anjo. Quero ser leal contigo. Não sou casado, mas vivo com
uma pessoa assim, assim, separada do marido. Compreendeu?
— Compreendi.
E ele:
— Aliás, quero te dizer o seguinte: — essa pessoa é uma jararaca, uma
lacraia, um escorpião de banheiro. Não gosta de mim, nem eu dela. Antes
de te conhecer, eu já estava resolvido a chutá-la. E, agora que te
conheço, mais do que nunca, naturalmente.
Marina deu-se por satisfeita. No dia seguinte, Elvira sai depois do
almoço. Quando volta, ao cair da noite, vê escrita, na parede, a lápis,
com a letra do marido, a seguinte mensagem: “VAI-TE PARA O DIABO QUE TE
CARREGUE. ADEUS!”.
Elvira, que abominava o companheiro, devia achar o fato uma delícia. Em
vez disso, porém, rolou no chão, espumando em ataques. Quando os
vizinhos entraram de roldão, atraídos pela gritaria, ela apontou a
parede: — “Olha o que aquele cachorro escreveu!”. Os vizinhos lêem e
relêem atônitos. Elvira soluça:
— Mas ele há de voltar! — E repetia com uma certeza fanática: — Há de voltar!
FELICIDADE
Consumada a separação, a felicidade de Belchior foi uma dessas coisas
convulsas e patéticas. Como primeira medida, bateu o telefone para
Marina:
— Estou livre! Livre!
Do outro lado da linha, a pequena chorava:
— Deus te abençoe!
De noite, Belchior, ainda delirante, reuniu os amigos no bar. Bebeu toda
a noite. Fez, aos berros, as confidências mais comprometedoras. Em dado
momento, com o olho injetado e a boca torcida, esbravejava, numa
reminiscência de leitura:
— A consciência não existe! A única consciência que eu reconheço é o
medo da polícia! — Alarga o colarinho, afrouxa o laço da gravata e uiva:
— Foi o medo da polícia que me impediu de matar Elvira!
Voltou para casa carregado e vomitando nos amigos.
O ANJO
Lera na adolescência um romance ordinaríssimo, que se chamava Anjo de
redenção. E agora, vendo Marina e sua meiguice consoladora, fez sua
tentativa literária ao dizer: — “Tu és o meu anjo de redenção!”. Ela
baixou os olhos, arrepiada, e disse:
— Eu faço o que posso!
Apresentou a menina aos pais. E, depois, veio sôfrego saber a opinião dos velhos. A mãe beija-o na testa:
— Uma simpatia!
E o pai, grave:
— Dessa gostei!
Mais quinze dias e houve o pedido oficial. Na tarde em que ficaram
noivos, Belchior leva a pequena para a varanda; dramatiza: — “Quando te
conheci, estava na seguinte situação: ou matava ou me matava. Tu me
salvaste a vida”.
O IDÍLIO
Pareciam feitos um para o outro. De quinze em quinze minutos, Belchior
descobria uma nova afinidade com a menina. De resto, coincidiam em tudo,
de uma maneira impressionante. Gostavam dos mesmos filmes, das mesmas
músicas, das mesmas paisagens e dos mesmos doces. Ele, que fora tão
infeliz na sua anterior experiência sentimental, a ponto de quebrar a
cabeça da amante com um rádio de pilha — agora parecia navegar num mar
ou, por outra, num lago azul. Viviam sem rixas, sem bate-bocas, numa
calma talvez parecida com o tédio. Pouco a pouco, porém, sem que
Belchior percebesse, uma certa melancolia se insinuou na sua alma. A
noiva acabou estranhando:
— Estou te achando meio assim, triste.
— Eu?
— Você. Anda meio esquisito. Que é que há?
Protestou, rubro:
— Esquisito por quê? Pelo contrário. Nunca me senti tão bem. — Pigarreia
e exagera: — “Eu sou o sujeito mais feliz do mundo. Tenho você, quer
dizer, tenho tudo”.
A OUTRA
E, de fato, Belchior era ou devia ser o sujeito mais feliz do mundo.
Amava e era amado, livrara-se de uma mulher histérica e desequilibrada,
que lhe arruinava a vida, a alma, o fígado. Pois bem. Apesar disso, ou
por isso mesmo, deu para andar deprimido, insatisfeito. Explicava
vagamente: — “Deve ser esgotamento”. Nas proximidades do casamento,
encontrou-se com um velho amigo, o Peçanha. Este o chamou de lado:
— A Elvira anda jurando que você volta! Diz que quer ser mico de circo se você não voltar!
Pulou, malcriadíssimo:
— Ela é besta! Não quero ver essa cara nem pintada! Isola!
Estaria certa? Estaria errada? Ninguém podia saber. Havia, porém, quem
julgasse ver, no caso Belchior e Elvira, um desses sombrios mistérios do
sexo, sem explicação possível.
NOITE DE NÚPCIAS
Finalmente, há o casamento. Na igreja, quando Marina passou a caminho
do altar, houve um deslumbramento. Na sua graça frágil e intensa, era
uma imagem realmente inesquecível. Após a cerimônia, voltam os dois para
a casa dos pais de Marina, onde passariam a residir. Às onze horas,
despede-se o último convidado; os velhos, depois de abençoarem o casal,
recolhem-se. Marina, transfigurada, sussurra: “Espera um pouco que eu
te chamo, Belchior. Espera”. Nesse instante, bate o telefone e
Belchior, surpreso e inquieto, vai atender. Era Elvira. Está dizendo:
— Olha! Eu te espero. A chave está debaixo do tapetinho. Vem, agora!
E desligou. Belchior encostou-se à parede, com a vista turva e as
pernas bambas. Houve, nele, uma brusca e violenta nostalgia da mulher
que era o seu ódio e seu desejo. Naquele justo momento Marina entreabriu
a porta e avisou:
— Pode vir, meu bem!
Ele, porém, não pensava mais na noiva. Dir-se-ia um magnetizado. Sem
rumor, desliza pela escada, rente à parede. Meia hora depois, desce de
um táxi na porta da antiga residência. Insinua a mão debaixo do
capacho, apanha a chave. Entra. Em pé, no meio da escada, com o quimono
rosa em cima da camisola, os pés nas sandálias de arminho, Elvira o
espera. Não há uma palavra entre os dois. Belchior enlaça a pequena e,
com raiva e gana, a beija muitas vezes. Então, Elvira ri, pendendo a
cabeça: — “Meu!”.
E foi esse orgulho que a perdeu. As mãos de Belchior descem e se fecham
sobre o pescoço macio. Aperta até o fim, sem saber que a estrangulava,
sem saber que a estava matando. Depois, abraçado ao cadáver, diz
arquejante:
— Não te enterrarei nunca! Ficarás comigo aqui!
E pousa a cabeça sobre o coração que não bate mais.
________________________________________________________________