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Negro muçulmano - Debret |
A religião de Maomé e a civilização árabe chegaram ao
Brasil através dos escravos importados das regiões africanas de cultura
árabe. Tentaram até deflagrar uma guerra santa na província da Bahia,
onde eram numerosos.
Davam a si próprios nomes de mussulmis, muçulmanos, mas os outros
escravos negros, de origem banto ou congolesa, os denominavam malês,
isto é, gente do império africano e maometano do Níger-Mali. Malê era
uma corruptela da palavra Malinké, gente de Mali.
Esses escravos muçulmanos pertenciam aos povos haussás ou auçás, nagôs
ou jorubas (iorubás), tapas, jejes, grunas, bornos, cabindas,
barbas-minas, calabares, jobus, mendobis e benins. Não seguiam
ortodoxamente o Corão, porém as práticas duma das seitas do Islã que se
espalharam na África. Alguns possuíam certa instrução, muitos sabiam ler
e escrever em árabe. Obedeciam a imames, chamados limanos ou alumás, e a
marabutos ou santarrões.
As primeiras insurreições desses negros maometanos na Bahia foram
preparadas pelos auçás em 1807 e 1809, sendo esmagadas pelo governador,
conde da Ponte. Durante os anos de 1813 e 1816 o governador conde dos
Arcos venceu duas novas rebeliões desses mesmos auçás. Em 1826, 1827 e
1828 os iorubás se levantaram, foram vencidos e duramente castigados
pelas autoridades. Em 1830 nova revolta abortou devido a uma denúncia.
A guerra santa explodiu em 1835. Durante essa época, devido à revolução
dos farrapos no Rio Grande do Sul, as províncias do norte, entre elas a
da Bahia, estavam desprovidas de tropa. Os mussulmis ou malês
aproveitaram essa circunstância favorável prum golpe de surpresa que
lhes devia entregar a cidade de Salvador, onde pretendiam chacinar os
brancos e proclamar uma rainha negra, a escrava Sabrina, que afirmavam
ser uma princesa em sua terra natal.
Pra se reconhecerem, durante a luta, todos deviam usar uma gandura ou
camisola branca com cinta vermelha. Todos os documentos dessa grande
conspiração, escritos em língua e caracteres árabes, estavam no Arquivo
Nacional.
O movimento devia eclodir durante a noite de 24 a 25 de janeiro de 1835,
durante os festejos tradicionais no arrabalde do Bonfim, a cuja famosa
igreja quase toda a população da cidade costumava ir em peregrinação. Os
escravos marchariam de vários pontos sobre a cidade semi-deserta e se
apoderariam dos quartéis e pontos estratégicos, semeando, em toda parte,
confusão e morte.
Tudo fora minuciosamente preparado em segredo no seio das djemas ou
associações religiosas que mantinham os escravos em contato, sob a
orientação da sociedade secreta Ohogbo. Escravos libertos, enriquecidos
no comércio e pequenas indústrias locais, forneciam arma, munição e
dinheiro. Havia escravos organizados em grupos militares e muito bem
armados. Mulatas e negras libertas serviam de elementos de ligação.
Duas dessas mulheres se apavoraram na última hora e denunciaram a
conspiração às autoridades, que tomaram logo providência de caráter
militar. Enquanto reforçavam postos, guardas e patrulhas, os mussulmis
já se reuniam nos pontos de antemão combinados. Alguns soldados de
polícia, que procuravam escravos fugidos, alarmaram inadvertidamente
esses ajuntamentos. Os conjurados se julgaram descobertos e perderam um
tempo precioso modificando as ordens e senhas pro movimento, o que
permitiu ao governo tomar mais medida de precaução.
Ao começar a madrugada os pretos, armados de chuços, espadas, facas,
pistolas e espingardas, se lançaram, em várias colunas, sobre a cidade.
Uma dessas colunas atacou o palácio do governo, a segunda o quartel de
polícia, a terceira o forte de São Pedro e a quarta a caserna da
infantaria de linha. Os poucos soldados que guarneciam esses postos as
repeliram com duas ou três descargas. Então, os escravos se espalharam
nas ruas da vizinhança, saqueando as casas e matando os moradores.
Uma quinta coluna marchava na beira-mar e foi atacada pela polícia em
Água de Meninos. Combate terrível! Os negros se defenderam como heróis.
Sua resistência somente cedeu diante do assalto, na retaguarda, que lhes
deram os marinheiros dos navios de guerra surtos no porto. Grande
número de cadáveres ficaram na praia. Inúmeros ficaram feridos.
Na manhã o movimento rebelde estava inteiramente dominado. Se enchiam as
prisões de escravos vencidos. Se instaurou um processo que só terminou
nove anos mais tarde, em 1844.
Muitos dos rebeldes presos, condenados à morte, foram fuzilados ou
enforcados. Outros receberam pena de prisão mais ou menos longa. Enfim,
alguns voltaram à África, mandados pelas autoridades, pois não tinham
grande prova contra eles e os reputavam perigosos, capazes de nova
articulação. É provável serem esses os sacerdotes maometanos da
pretalhada, os chamados alumás ou limanos.
Essa foi a guerra maometana que houve no Brasil e da qual pouca gente
tem notícia. Ameaçadora e de curtíssima duração. O povo traduziu a seu
modo o nome dos co-participantes dessa frustrada guerra-santa: Malês,
gente da má lei, da lei má, más leis.
A lei má era o Corão que, espiritualmente, regia esses pobres negros
trazidos de Benim e Senegal, que os antigos cronistas lusos chamavam
Çanagá.
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Fonte: "Segredos e revelações da história do Brasil", Gustavo Barroso - Edições O Cruzeiro - 2ª edição - Agosto de 1961.