Quando era crítico teatral, Paulo Francis disse certa vez: — "O hospital
é mais importante do que o teatro". Não me lembro se escreveu
exatamente assim, mas o sentido era este. E o articulista tinha a
ênfase, a certeza de quem anuncia uma verdade inapelável e eterna.
Ao acabar o texto, voltei à frase e a reli: — "O hospital é mais importante do que o teatro".
Fiz para mim mesmo a pergunta: — "Será?".
Já me pareceu imprudente que se comparassem funções e finalidades
diferentes. Para que serve um teatro e para que serve um hospital? Por
outro lado, não vejo como um crítico de teatro, no gozo de plena saúde,
possa preferir uma boa rede hospitalar às obras completas de William
Shakespeare.
De mais a mais, o teatro era, na pior das hipóteses, o seu ganha-pão.
Imaginem um médico que, de repente, no meio de uma operação, começasse a
berrar: — "Viva o teatro e abaixo o hospital!".
A mim, parecem gêmeas as duas contradições: — de um lado, o crítico que
prefere o hospital; de outro lado, o cirurgião que prefere o teatro. É
óbvio que a importância das coisas depende de nós.
Se somos doentes, o hospital está acima de tudo e de todos; caso
contrário, um filme de mocinho, ou uma Vida de Cristo ali no República,
ou uma burleta de Freire Júnior, é uma delícia total. Mas volto ao Paulo
Francis.
Alguém que lesse o artigo citado havia de pensar: — "Bem. Esse crítico
deve estar no fundo da cama, moribundo, já com a dispnéia pré-agônica.
E, por isso, prefere o hospital". Engano. Repito que, ao escrever
aquilo, Paulo Francis nadava em saúde. E por que o disse?
O leitor, em sua espessa ingenuidade, não imagina, como nós,
intelectuais, precisamos de poses. Cada frase nossa, ou gesto, ou
palavrão é uma pose e, diria mesmo, um quadro plástico.
Ah,as nossas posturas ideológicas, literárias, éticas etc. etc. Agimos e
reagimos de acordo com os fatos do mundo. Se há o Vietnã nós somos
vietcongs; mas se a Rússia invade a Tchecoslováquia, vestimos a pose
tcheca mais agressiva. E as variações do nosso histrionismo chegam ao
infinito.
Imagino que, ao desdenhar do teatro, o Paulo estivesse fazendo apenas uma pose.
Bem. Fiz as divagações acima para chegar ao nosso d. Hélder. Está aqui
na minha mesa um jornal colombiano. É um tablóide que... Um momento.
Antes de prosseguir, preciso dizer duas palavras.
Domingo, na TV Globo, o Augusto Melo Pinto chamou-me num canto e cochichou:
— "Você precisa parar com o d. Hélder".
Faço um espanto: — "Por quê?".
E ele: — "Você está insistindo demais". Pausa e completa: — "Você acaba fazendo de d. Hélder uma vítima".
Disse-lhe da boca para fora: — "Você tem razão, Gugu". E paramos por aí.
Mas eis a verdade: — o meu amigo não tem nenhuma razão. Gugu inverte as
posições. Se há uma vítima, entre mim e d. Hélder, sou eu.
Outrora, Victor Hugo vivia bramando: — "Ele! Sempre ele!". Falava de
Napoleão, o Grande, que não lhe saía da cabeça. Com todo o universo nas
suas barbas a inspirá-lo, Hugo só via na sua frente o imperador. Bem sei
que não sou Hugo, nem d. Hélder, Bonaparte. Mas eu podia gemer como o
autor de Os miseráveis: — "Ele! Sempre ele!". Realmente, sou um
território solidamente ocupado pelo querido padre.
Dia após dia, noite após noite, ele obstrui, engarrafa todos os meus
caminhos de cronista. É, sem nenhum favor, uma presença obsessiva, sim,
uma presença devoradora.
Ainda ontem, aconteceu-me uma impressionante. Tarde da noite, estava eu
acordado. Ai de mim, ai de mim! Sofro de insônias. Graças a Deus, me dou
bem com as minhas insônias e repito: — nós nos suportamos com uma
paciência recíproca e quase doce. Mas não conseguia dormir e
levantei-me. Fui procurar uma leitura. Procura daqui, dali e acabei
apanhando um número de Manchete.
E quem havia de brotar, da imagem e do texto? O nosso arcebispo. Quatro
páginas de d. Hélder! E, súbito, minha insônia foi ocupada pela sua
figura e pela sua mensagem. Primeiro, entretive-me em vê-lo; em seguida
passei à leitura. E há um momento em que o arcebispo diz, por outras
palavras, o seguinte: — o mundo pensa que o importante é uma possível
guerra entre Leste e Oeste. E d. Hélder acha uma graça compassiva em
nossa infinita obtusidade.
Se a Rússia e os Estados Unidos se engalfinharem; se as bombas de
cobalto caírem nos nossos telhados ou, diretamente, em nossas cabeças;
se a OTAN começar a disparar foguetes como um Tom Mix atômico — ninguém
se assuste. O perigo não está aí. Não. O perigo está no
subdesenvolvimento.
Leio a fala de d. Hélder e a releio. Eis a minha impressão: — esse
desdém pelas armas atômicas não me parece original. Sim, não me parece
inédito.
E, súbito, um nome e, mais do que um nome, uma barriga me ocorre: — Mao
Tsé-tung. Certa vez, Mao Tsé-tung chamou liricamente a bomba atômica de
"tigre de papel". Foi uma imagem engenhosa e até delicada. E vem d.
Hélder e, pela Manchete, diz, por outras palavras, a mesmíssima coisa.
O homem pode esquecer o seu pueril terror atômico. Quem o diz é o arcebispo e ele sabe o que diz.
Mas objetará o leitor: — e aquela ilha em que a criança é cancerosa
antes de nascer? Exato, exato. Vejam bem o milagre: — ainda não nasceu e
já tem o câncer. O leitor, que é um piegas, perguntará por essas
crianças. Mas ninguém se aflija, ninguém se preocupe. A guerra nuclear
não importa.
Eis o que eu não disse ao Gugu: — como esquecer uma figura que diz
coisas tão corajosas, inteligentes, exatas, coisas que só ele, ou Mao
Tsé-tung, ousaria dizer? Sabemos que o ser humano não diz tudo.
Jorge Amado tem uma personagem que vive puxando barbantes imaginários
que a enrolam. Os nossos limites morais, espirituais, humanos, ou que
outro nome tenham, os nossos limites são esses barbantes. Há coisas que o
homem não diz, e há coisas que o homem não faz. Mas deixemos os atos e
fiquemos nas palavras. O que me espanta é a coragem que leva d. Hélder a
dizer tanto. Há um élan demoníaco nessa capacidade de falar demais.
Continuemos, continuemos.
No dia seguinte, veio o "Marinheiro Sueco" trazer-me, em mão, um jornal
colombiano. E, novamente, agora em castelhano, aparecia d. Hélder. Ele
começava na manchete: — "EL ARZOBISPO DE LA REVOLUCIÓN". Em seguida,
outra manchete, com a declaração do arzobispo: — "ES MÁS IMPORTANTE
FORMAR UN SINDICATO DO QUE CONSTRUIR UN TEMPLO".
Eis o que eu gostaria de notar: — na "Grande Revolução", os russos
substituíam, nos vitrais, o rosto da Virgem Maria por um focinho de
vaca. Jesus tinha a cara de boi, com as ventas enormes. Mas a "Grande
Revolução" se fez contra Deus, contra a Virgem, contra o Sobrenatural
etc. etc. e, como se verificaria em seguida, contra o Homem. Portanto,
ela podia incluir Jesus, os santos, num elenco misto de bois e vacas.
Mas um católico não pode agredir a Igreja com esta manchete: — "Es Más
Importante Formar un Sindicato que Construir un Templo". E se o nosso
Hélder o diz, estejamos certos:
— é um ex-católico e, pior, um anticatólico.
[25/9/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.