sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Conversa de viajantes

É muito interessante a mania que têm certas pessoas de comentar episódios que viveram em viagens, com descrições de lugares e coisas, na base de "imagine você que..."

Muito interessante também é o ar superior que cavalheiros, menos providos de espírito pouquinha coisa, costumam ostentar depois que estiveram na Europa ou nos Estados Unidos (antigamente até Buenos Aires dava direito a empáfia). Aliás, em relação a viajantes, ocorrem episódios que, contando, ninguém acredita.

O camarada que tinha acabado de chegar de Paris e — por sinal - com certa humildade, estava sentado numa poltrona, durante a festinha, quando a dona da casa veio apresentá-lo a um cavalheiro gordote, de bigodinho empinado, que logo se sentou a seu lado e começou a "boquejar" (como diz o Grande Otelo):

—    Quer dizer que está vindo de Paris, hem? — arriscou.

O que tinha vindo fez um ar modesto: — Eu!

—    Naturalmente o amigo não se furtou ao prazer de ir visitar o Palácio de Versalhes.

—    Não. Não estive em Versalhes. Era muito longe do hotel onde me hospedei.

—    Mas o amigo cometeu a temeridade de não ficar no Plaza Athénée?

O que não ficara no Plaza Athénée deu uma desculpa, explicou que o seu hotel fora reservado pela Cia. onde trabalha e, por isso, não tivera vez na escolha.

—    Bem — concordou o gordinho —, o Plaza realmente é um pouco caro, mas é muito central e há outros hotéis mais modestos que ficam perto do Plaza. — E depois de acender um cigarro, lascou:

—    Passeou pelo Bois?

—    Passei pelo Bois uma vez, de táxi.

—    Mas o amigo vai me desculpar a franqueza; o amigo bobeou. Não há nada mais lindo do que um passeio a pé pelo Bois de Boulogne, ao cair da tarde. E não há nada mais parisiense também.

—    É... eu já tinha ouvido falar nisso. Mas havia outras coisas a fazer.

—    Claro... claro... Há coisas mais importantes, principalmen¬te no setor das artes — e sem tomar o menor fôlego: — Visitou o Louvre?...

—    Visitei.

—    Viu a "Gioconda"?

Não. O recém-chegado não tinha visto a "Gioconda". No dia em que esteve no Louvre, a "Gioconda" não estava em exposição.

—    Mas o senhor prevaricou — disse o gordinho, quase zangado. — A "Gioconda" só está em exposição às 5.as e sábados e ir ao Louvre noutros dias é negar a si mesmo uma comunhão maior com as artes.

Passou uma senhora, cumprimentou o ex-viajante e, mal ela foi em frente, nova pergunta do cara:

—    E a comida de Paris, hem amigo? Você jantava naqueles bistrozinhos de Saint-Germain? Ou preferia os restaurantes típicos de Montmartre? Há um bistrô que fica numa transversal da Rue de...

Mas não pôde acabar de esclarecer qual era a rua, porque o interrogado foi logo afirmando que jantara quase sempre no hotel. E sua paciência se esgotou quando o chato quis saber que tal achara as mulheres do Lido.

—    Eu não fui ao Lido também. O senhor compreende. Eu estive em Paris a serviço e sou um homem de poucas posses. Quase não tinha tempo para me distrair. De mais a mais, lá é tudo muito caro.

—    Caríssimo — confirmou o gordinho, sem se mancar.

—    O Sr., naturalmente, esteve lá a passeio e pôde fazer essas coisas todas — aventou, como quem se desculpa.

Foi aí que o gordinho botou a mãozinho rechonchuda sobre o peito e exclamou: — Eu??? Mas eu nunca estive em Paris!
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Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte: O MELHOR DE STANISLAW - Crônicas Escolhidas - Seleção e organização de Valdemar Cavalcanti - Ilustrações de JAGUAR - 2.a edição - Rio - 1979 - Livraria José Olympio Editora.

O anjo

O marido solto no verão — por força do veraneio da família — é um homem que muda por completo seus hábitos e atitudes ao sentir-se libertado dos compromissos domésticos.

É um homem sem horário para comer, para dormir e até mesmo para trabalhar.

O marido em disponibilidade nos dias úteis, porque no domingo sobe para Petrópolis, Teresópolis, Friburgo ou lá onde tem a família, assume uma segunda personalidade, até então insuspeitada, e é um homem de estranhas atitudes, mutáveis segundo a influência de amigos e acontecimentos.

Tenho encontrado maridos a fazerem as coisas mais extravagantes possíveis, qual boi de curral, que — segundo dizem os entendidos em gado vacum — quando solto no pasto lambe-se todo. E, dentre esses maridos, o mais estranho é o tímido.

Tomo para exemplo o Rosamundo, cuja esposa, senhora de proporções — digamos — cinemascópicas, cerrado buço e intransigência doentia, sofre de pertinazes pruridibus cutaneus, doença que o vulgo houve por bem denominar brotoejas. Tal senhora, mal começam a subir os termômetros, sobe também, mas para a serra, a se coçar toda e a lamentar as férias forçadas que dará ao marido, criatura quase santa, homem que terá entrada franca no céu se, quando lá chegar, mostrar a fotografia da esposa a São Pedro.

Ele faz parte do grupo dos maridos que, mesmo com ampla liberdade de ação, permanecem tímidos e sossegados num canto, pouco aproveitando a folga matrimonial. Pelo contrário até, noutro dia foi visto a comprar revistas de palavras cruzadas, numa banca de jornal. Surpreendido no ato da compra, explicou:

— É para resolver na cama, enquanto o sono não vem.

Assim é o homem pacato. Mas, dizia eu, um marido solto é um enigma e este não é melhor que os outros. Acredito mesmo que o tímido, quando insuflado pelos amigos, é capaz das mais extravagantes aventuras.

Foi assim com este. Era, segundo lhe diziam, uma festinha pré-carnavalesca, coisa íntima. Só gente da corriola — se me permitem o termo. Rosamundo, de princípio — e disso sou testemunha — não queria ir. Vamos que a mulher telefonasse de madrugada, vamos que estivesse na festa uma conhecida dela, vamos uma porção de coisas, que o homem medroso cria uma série de dificuldades antes de se decidir.

Contornadas todas essas hipóteses dramáticas, amigos e conhecidos acabaram por convencê-lo a ir... e bebeu-se fartamente ao evento. Ele também tomou umas e outras tanto que, quando soube que o negócio era na base da fantasia, gritou entusiasmado:

— Eu vou de anjo!

Arranjou uma camisola enorme (provavelmente da esposa), umas asas de papelão, uma auréola de arame e saiu para a rua, à procura de um táxi. E, como já se sentisse um outro homem, na ausência do táxi entrou mesmo num lotação, criando inclusive um caso na hora de saltar, porque cismou que anjo tem abatimento em qualquer condução.

A festa não era tão íntima assim como disseram os amigos. Segundo suas próprias palavras, era "um pagode de grande rebolado", no qual ele se meteu todo, já sem nenhuma prudência, cumprimentando senhoras conhecidas, deixando-se fotografar abraçado a uma baiana decotadíssima que encontrara numa volta do cordão, enfim, esteve distraído.

Foi no dia seguinte de manhã que o medo voltou a baixar sobre sua consciência. Mesmo antes de abrir os olhos, pedia a Deus que ninguém lhe tivesse atirado confete, porque confete é uma coisa de morte que a gente pensa que limpou, mas que, meses depois, ainda aparece no fundo do sapato, na dobra da ceroula, nos mais variados lugares.

Até a véspera de subir para o fim de semana, remoeu-se em dúvidas e suspeitas: sua mulher já saberia de tudo? Estaria esperando sua chegada para explodir? Essas e dezenas de outras perguntas se fez até o momento de rumar para Petrópolis. Antes comprara todas as revistas semanais, até o Monitor Mercantil ("nunca se sabe!"), com medo de que alguma delas tivesse publicado o seu retrato, de anjo abraçado à baiana decotada, de quem conseguira o telefone, mas a quem tivera a prudência de não telefonar.

Sossegou somente com a idéia de que, sendo a mulher como era, se soubesse de alguma coisa, não esperaria sua chegada para desabafar — teria descido com brotoeja e tudo. Foi mais aliviado, portanto, que chegou em casa, abriu a porta e deu com a gordíssima esposa a esperá-lo.

— Como vai, meu anjo? — disse ela.

Desmoronaram-se todas as suas esperanças. Após um tremido "pode deixar que eu explico", contou tudo que acontecera, sem perceber que aquele "meu anjo", com que ela o saudara, era apenas uma carinhosa expressão de esposa saudosa.
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Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte: O MELHOR DE STANISLAW - Crônicas Escolhidas - Seleção e organização de Valdemar Cavalcanti - Ilustrações de JAGUAR - 2.a edição - Rio - 1979 - Livraria José Olympio Editora.