quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Óleo de cão

Chamo-me Boffer Bings. Nasci de pais honestos, malgrado muito pobres. Meu pai era fabricante de óleo de cão, e minha mãe tinha, ao pé da igreja da vila, um pequeno gabinete, onde eliminava bebês indesejados. Já na minha infância aprendi os processos da indústria.

Não apenas ajudava o meu pai procurando os cães para seu caldeirão, como também minha mãe me encarregava freqüentemente da missão de me desfazer dos despojos de seu trabalho no gabinete.

Para me desincumbir desse mister, às vezes precisei de toda minha natural inteligência, posto que todos os agentes da lei da vizinhança se opunham aos negócios de minha mãe. O assunto não tinha injunções políticas, já que os agentes não haviam sido eleitos pela oposição: simplesmente faziam-no por fazer.

Naturalmente, o trabalho de meu pai era menos impopular, embora os proprietários dos cães desaparecidos o olhassem às vezes com desconfiança, o que, por extensão, se refletia em mim. Como sócios, à escondida, tinha meu pai os farmacêuticos da cidade, que quase nunca aviavam uma receita sem que nela constasse ao que eles designavam “Ol. can.”, o remédio mais valioso que já se houvera descoberto. Mas a maioria das pessoas não está disposta a fazer sacrifícios pessoais pelos afligidos, e era evidente que muitos dos cachorros mais gordos da cidade eram proibidos de brincar comigo. Isto feriu a minha sensibilidade juvenil e certa feita dirigiram-se a mim para fazer-me de pirata.

Lembrando-me daqueles dias, não posso, às vezes, evitar o arrependimento, pois, levando indiretamente os meus pais à morte, fui o autor dos infortúnios que profundamente afetaram o meu futuro.

Certa noite, quando vinha do gabinete de minha mãe com um exposto, vi passar, à frente da fábrica de azeite de meu pai, um guarda que parecia observar atentamente os meus movimentos. Embora bastante jovem, eu já aprendera que os guardas só acorriam aos fatos mais repreensíveis, de molde que dele me esquivei, enfiado-me na fábrica de azeite por uma porta lateral, que calhou de estar aberta. Travei a porta de uma vez e fiquei só com o meu morto. O meu pai já se recolhera. A única luz daquele lugar provinha do forno, que ardia intensamente sob um dos caldeirões, espalhando uma profunda luz e lançando reflexos rubros nas paredes. No caldeirão, o óleo estava em indolente ebulição, e, por conta de seu movimento, às vezes exibia pedaços de cachorro na superfície. Fiquei a esperar que o guarda se retirasse.

Mantive no meu colo o corpo nu da criancinha e lhe acariciei ternamente o cabelo curto e sedoso. Ah, como era bela! Já naquela tenra idade eu gostava muitíssimo das criancinhas e, ao contemplar aquele anjinho, quase desejei que a pequena ferida vermelha de seu peito, obra de minha querida mãe, não fosse mortal.

O que eu pretendia era jogar a criança ao rio, que a natureza sabiamente nos legara para tal fim, mas, naquela noite, com medo do guarda, não me atrevi a sair da fábrica de azeite. “Afinal – disse com os meus botões- , não acho que teria importância se eu vier a entorná-la no caldeirão. O meu pai nunca irá distinguir os seus ossos dos ossos de um cachorro. E as poucas mortes que poderão advir da administração de outro tipo de azeite no lugar do incomparável 'Ol. can.' não serão percebidas em uma população que cresce tão rapidamente".

Em suma, dei o meu primeiro passo para o crime e entornei a criança no caldeirão com indescritível tristeza.

No dia seguinte, para minha surpresa, meu pai, a esfregar as mãos de satisfação, informou a mim e à minha mãe que obtivera o óleo de qualidade nunca vista, e que este era o parecer dos médicos aos quais levara amostras. Argüiu que não tinha idéia de como lograra tal resultado, pois tratara os cães como sempre o fizera, em todos os aspectos, e eram eles da raça habitual. Considerei que era o meu dever lhes ofertar uma explicação e, notem bem, teria certamente contido o ímpeto de minha língua se pudesse prever as conseqüências.

Os meus pais, lamentando olvidar as vantagens de combinar os seus afazeres, adotaram medidas para reparar o equívoco. Minha mãe mudou o seu gabinete para uma ala do edifício da fábrica e as minhas tarefas com relação ao ofício cessaram. Já não mais precisavam de mim para que me desfizesse dos pequenos supérfluos e não remanescia a necessidade de atrair os cães à condenação, pois o meu pai renunciou completamente a eles, embora ainda ocupassem o honroso nome no azeite.

Assim, subitamente ocioso, poder-se-ia esperar que eu me tornasse uma pessoa viciosa e dissoluta, mas não foi isso o que aconteceu. A influência benéfica de minha mãe seguiu protegendo-me das tentações que assediam a juventude, e, além disso, meu pai era diácono de uma igreja. Mas, por culpa minha, estas estimáveis pessoas iam ter um fim tão funesto!

Ao experimentar um proveito duplo com os seus negócios, minha mãe se entregou ao mister com uma assiduidade nunca dantes vista. Não apenas se desfazia dos indesejados que lhe eram entregues, como acorria às ruas e becos à procura de criancinhas maiores e mesmo adultos que lograva atrair à fábrica. Também meu pai, amante daquele óleo de melhor qualidade, fornia os seu caldeirões com zelo e diligência. Em síntese: a conversão de meus vizinhos em óleo de cão tornou-se a única paixão de suas vidas. Uma avidez absorvente e portentosa invadiu suas almas e ocupou o lugar da esperança que tinham de alcançar o paraíso, que, por outra parte, também os inspirava.

E se atiraram tão vivamente à empresa que os cidadãos reuniram uma assembléia pública, na qual adotaram resoluções que os censuravam severamente. O presidente deu a entender que os ataques sucessivos contra a população eram recebidos com hostilidade. Meus pobres pais abandonaram a assembléia com o coração partido, desesperados e com as mentes perturbadas. Considerei prudente, de toda forma, não entrar com eles na fábrica de óleo naquela noite e fui dormir lá fora, num estábulo.

À meia-noite, um misterioso impulso ordenou que eu me levantasse e espreitasse por uma fresta do quarto do forno, onde eu sabia que meu pai dormia. O lume ardia vivamente, como se esperasse por uma colheita abundante no dia seguinte. Um dos enormes caldeirões fervia devagar, dotado de um misterioso aspecto de contenção, como se aguardasse o momento de envidar toda as suas energias.

Mas meu pai não estava na cama. Levantara-se e estava de roupas de dormir. Fazia um nó corrediço numa corda vigorosa. Pelos olhares que dirigia à porta do quarto de minha mãe, deduzi perfeitamente o propósito que lhe ia na mente. Imobilizado e mudo pelo terror, nada pude fazer para contê-lo. Subitamente, a porta do quarto de minha mãe se abriu sem fazer ruído e eles se defrontaram, ambos surpreendidos com a presença do outro. Ela também estava de camisola, e levava, na mão direita, a sua ferramenta de trabalho: uma longa adaga de folha estreita.

Minha mãe foi, igualmente, incapaz de abdicar à única escolha que a minha ausência e a atitude hostil dos cidadãos a deixaram. Por instantes, eles contemplaram mutuamente os olhos acesos e, então, lançaram-se com indescritível fúria um contra o outro. Como demônios, lutaram pelo cômodo todo. Meu pai maldizia. Minha mãe gritava. Ela tentava cravar-lhe a adaga. Ele forçava por estrangulá-la com as grandes mãos nuas. Não sei por quanto tempo tive a desgraça de observar este desagradável momento de infelicidade doméstica, mas, enfim, depois de um esforço mais vigoroso que o ordinário, os adversários subitamente se separaram.

O peito de meu pai e a arma de minha mãe exibiam sinais de contato. Por instantes, olharam-se da forma mais hostil. Então meu pobre e ferido pai, sentido sobre si a mão da morte, saltou à frente e, fazendo pouco da resistência que a minha mãe oferecia, tomou-a nos braços, conduzindo-a ao caldeirão fervente. E, reunindo as suas últimas forças, fê-la nele mergulhar. Em um momento, ambos tinham desaparecido e adicionavam seu óleo àquele do comitê dos cidadãos que os haviam convocado, no dia anterior, à reunião pública.

Convencido que estes funestos acontecimento obstruíam todos os caminhos para uma honrável carreira naquela cidade, abandonei a famosa vila de Otumwee, onde escrevi estas memórias com o coração repleto de remorsos por um ato tão imprudente e que envolve um deveras catastrófico desastre comercial.


Ambrose Bierce (Ohio, EUA, 24/6/1842 - 1914?) trabalhou para revistas humorísticas como a «Figaro» e a «Fun», na Inglaterra, a partir de 1872. Regressou aos Estados Unidos em 1875, colaborando com vários jornais, tornando-se um dos jornalistas e escritores mais conhecidos do seu tempo, não deixando ninguém indiferente ao seu sentido acutilantemente crítico e satírico da humanidade. Com humor insolente, atacou todos os quadrantes da sociedade: as religiões, a política, a economia, o sentimentalismo. Em 1913, aos setenta e um anos, Bierce partiu ao encontro da Revolução Mexicana, sem deixar rastro. A sua morte permanece um mistério, mas acredita-se que possa ter acontecido durante a Batalha de Ojinaga, em Janeiro de 1914.

Eça de Queiroz

Artesão exímio, iniciador do realismo na literatura de língua portuguesa, capaz de domínio inigualável da palavra escrita, Eça de Queiroz (ou Queirós) dissecou a burguesia do Portugal de seu tempo em romances de fascínio permanente.

José Maria de Eça de Queiroz nasceu em Póvoa de Varzim, em 25 de novembro de 1845. Filho ilegítimo de um magistrado, passou a infância longe dos pais, no Aveiro, e formou-se em direito pela Universidade de Coimbra (1866).

Nessa época tomou parte na Questão Coimbra, ao lado de Antero de Quental e Teófilo Braga, em defesa do realismo na literatura. Estreou então como escritor, na Gazeta de Portugal, com o folhetim de Notas marginais, mais tarde parte das Prosas bárbaras (1905). Em 1867 lançou o Distrito de Évora, jornal que dirigiu.

Admitido por concurso na carreira diplomática em 1870, foi cônsul em Cuba, no Reino Unido e finalmente em Paris, onde permaneceu até a morte. Com Ramalho Ortigão, lançou em 1871 As Farpas, publicação mensal para a qual escreveu artigos de crítica político-social demolidora, mais tarde reunidos em Uma campanha alegre (1890): em estilo irônico e contundente, o livro é uma mostra de jornalismo participante e pioneiramente moderno.

Com Ramalho também escrevera uma novela policial, O mistério da estrada de Sintra (1870). Seu conto Singularidades de uma rapariga loira (1874), além de uma obra-prima, é o primeiro de cunho realista em português. Essa atitude seria elevada a alta eficiência expressiva nos romances que publicou em seguida.

Eça se casou (1886) com Emília de Castro Pamplona, irmã de um amigo e companheiro de viagens, o conde de Resende. De 1889 em diante o consulado de Paris, que muito ambicionara, não lhe alterou a produtividade; fundou a Revista de Portugal (1889-1892) e continuou a colaborar em jornais portugueses e brasileiros, enviando cartas, ecos, "bilhetes" lidos e relidos com avidez.

Romancista

Eça de Queirós é um dos maiores ficcionistas da literatura de língua portuguesa. Dotado de senso estético invulgar, desde o início impressiona pela riqueza e flexibilidade estilística. Escreve o português mais vivo de seu tempo, sem pruridos puristas e impregnado de verdade concreta, capaz de recriar e criticar todos os seres e coisas com originalidade e volúpia.

Humorista irreverente, no romance O crime do padre Amaro (1875) essa característica se alia a um realismo severo, feroz e espirituoso ao mesmo tempo, que satiriza a corrupção do clero e reconstitui seus costumes com extrema vivacidade. Mais densa é a escrita de O primo Basílio (1878), primorosamente construído, com as personagens como que aprisionadas, em seus impulsos e alternativas, pela circunstância social que as limita e condiciona.

Mais voltado para a dinâmica das relações do que para a psicologia dita profunda, Eça tempera o psicólogo social com o amante da natureza, que a registra com frescor e embevecimento. Na sociedade inquieta, entre fútil e amarga às portas da revolução republicana, a usura e a beatice pequeno-burguesa encontram um caricaturista minucioso e às vezes cruel em A relíquia (1887), em que a aventura do humor não se esquiva às máscaras do grotesco.

"Porque tudo se resolve, como já ensinara o sábio do Eclesiastes, em desilusão e poeira." Antes da obra-prima que é o romance Os Maias (1888), e de suas implicações, o autor talvez não fizesse essa anotação. Obra maior da maturidade, esse vasto panorama de uma família burguesa, de seu prazer e sua dor, sua sensualidade e seu cerco de convenções, realiza até o mais alto grau o gênio de Eça de Queirós. A captação de cada passo, cada ranhura ou eco da paixão incestuosa leva o escritor a beirar a noção do inconsciente e a dar um sentido existencial às marcas do desengano.

Outro livro admirável é A ilustre casa de Ramires (1900), em que a observação e a fina ironia focalizam a pequena nobreza decadente, entre seus últimos bens e os males que a corroem. Sobressaem neste caso, junto às outras saborosas peculiaridades do mestre, a ampla visão sociológica, em que avulta o amor pela terra portuguesa, e o empenho metaliterário que faz do protagonista autor de um árduo romance.

Essa agudeza não se acha menos presente em A cidade e as serras (1901), deliciosa sátira dos progressos ainda canhestros dos tempos modernos e reencontro do romancista com a paisagem de sua meninice. Vê-se também aí, no jogo dos contrastes, o apego nostálgico à essencialidade honesta da vida ainda natural e limpa do interior.

Perfeccionista obsessivo, Eça estigmatiza a escravidão ao ouro ou a qualquer acúmulo improdutivo, mesmo que de requintes, de livros. Uma sábia alegoria do problema suscitou na novela O mandarim (1880) algumas de suas páginas mais fecundas. O tema, no fundo, se depura ainda no esplendor austero das vidas de três santos, reunidas em últimas páginas (1912).

Eça foi escritor de uma auto-exigência quase impiedosa. Além de deixar inacabados e inéditos vários trabalhos que não o satisfizeram, desprezou a primeira versão de Os Maias, publicada em 1980 com o título de A tragédia da rua das Flores.

Outras faces

De realismo menos estrito e quase mágico nos Contos (1902), Eça deixou sua crítica dispersa em periódicos e cartas que se publicaram aos poucos -- a autobiográfica Correspondência de Fradique Mendes (1900), as Cartas de Inglaterra (1903), os Ecos de Paris (1905) e as Cartas familiares e bilhetes de Paris (1907).

Em Notas contemporâneas (1909) o crítico se envolve com os principais temas e debates de seu tempo e se faz presente também em O Egito (1926), sobre a viagem ao Oriente. Na ficção que ficara inédita, há ainda seduções, e fortes, em A capital, O conde de Abranhos, Alves & Cia., os três impressos em 1925. Por fim, a encantadora tradução de As minas do rei Salomão (1891), de Riger Haggard, é um divertimento inesquecível.

Criador de tipos que ficaram proverbiais, como o conselheiro Acácio ou Jacinto de Tormes, nem sempre os fez, como estes, algo esquemáticos e caricaturais. Maria Eduarda, entre outras criaturas, é de verdade profunda e de presença inefável.

É questão de sentir e entender ao mesmo tempo. Como lembrou Moniz Barreto, "a paixão e a fantasia ocupam um lugar importante em sua obra, ao lado da observação e da análise". Eça de Queirós morreu em Paris em 16 de agosto de 1900.

Fonte: Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda.