Estendido, de costas, na sua cama de solteiro, os olhos voltados na
direção da janela que deixara entreaberta na véspera para a visita da
claridade matutina, ele sentia que a noite se ia prolongando demais.
O
aposento permanecia escuro. Lá fora, entretanto, havia rumores de vida.
Bondes passavam tilintando. Havia barulho de carroças no calçamento
áspero. Automóveis buzinavam como se fosse dia alto.
E, no entanto, era noite, ainda. Atentou melhor, e notou movimento na
casa. Distinguia perfeitamente o arrastar de uma vassoura, varrendo o
pátio. Imaginou que o vento tivesse fechado a janela, impedindo a
entrada do dia. Ergueu, então, o braço e apertou o botão da lâmpada.
Mas a escuridão continuou. Evidentemente, o dia não lhe começava bem.
Comprimiu o botão da campainha. E esperou.
Ao fim de alguns instantes, batem docemente à porta.
- Entra, Roberto.
O criado empurrou a porta, e entrou.
- Esta lâmpada está queimada, Roberto? - indagou o escritor, ao escutar os passos do empregado no aposento.
- Não, senhor. Está até acesa..
- Acesa? A lâmpada está acesa, Roberto? - exclamou o patrão, sentando-se repentinamente na cama.
- Está, sim, senhor. O doutor não vê que está acesa, por causa da janela que está aberta.
- A janela está aberta, Roberto? - gritou o homem de letras, com o terror estampado na fisionomia.
- Está, sim, senhor. E o sol está até no meio do quarto.
Paulo Fernando mergulhou o rosto nas mãos, e quedou-se imóvel,
petrificado pela verdade terrível. Estava cego. Acabava de realizar-se o
que há muito prognosticavam os médicos.
A notícia daquele infortúnio em breve se espalhava pela cidade,
impressionando e comovendo a quem a recebia. A morte dos olhos daquele
homem de quarenta anos, cuja mocidade tinha sido consumida na
intimidade de um gabinete de trabalho, e cujos primeiros cabelos
brancos haviam nascido à claridade das lâmpadas, diante das quais
passara oito mil noites estudando, enchia de pena os mais indiferentes à
vida do pensamento. Era uma força criadora que desaparecia. Era uma
grande máquina que parava. Era um facho que se extinguia no meio da
noite, deixando desorientados na escuridão aqueles que o haviam tomado
por guia. E foi quando, de súbito, e como que providencialmente, surgiu
na imprensa a informação de que o professor Platen, de Berlim, havia
descoberto o processo de restituir a vista aos cegos, uma vez que a
pupila se conservasse íntegra, e se tratasse, apenas, de destruição ou
defeito do nervo óptico. E, com essa informação, a de que o eminente
oculista passaria em breve pelo Rio de Janeiro, a fim de realizar uma
operação desse gênero em um opulento estancieiro argentino, que se
achava cego há seis anos e não tergiversara em trocar a metade da sua
fortuna pela antiga luz dos seus olhos.
A cegueira de Paulo Fernando, com as suas causas e sintomas,
enquadrava-se rigorosamente no processo do professor alemão: dera-se
pelo seccionamento do nervo óptico. E era pelo restabelecimento deste,
por meio de ligaduras artificiais com uma composição metálica de sua
invenção, que o sábio de Berlim realizava o seu milagre cirúrgico.
Esforços foram empregados, assim, para que Platen desembarcasse no Rio
de Janeiro por ocasião de sua viagem a Buenos Aires.
Três meses depois, efetuava-se, de fato, esse desembarque. Para não
perder tempo, achava-se Paulo Fernando, desde a véspera, no Grande
Hospital das Clínicas. E encontrava-se já na sala de operações, quando o
famoso cirurgião entrou, rodeado de colegas brasileiros, e de dois
auxiliares alemães, que o acompanhavam na viagem, e apertou-lhe
vivamente a mão.
Paulo Fernando não apresentava, na fisionomia, o menor sinal de emoção.
O rosto escanhoado, o cabelo grisalho e ondulado posto para trás, e os
olhos abertos, olhando sem ver: olhos castanhos, ligeiramente saídos,
pelo hábito de vir beber a sabedoria aqui fora, e com laivos escuros de
sangue, como reminiscência das noites de vigília. Vestia pijama de
tricoline branca, de gola caída. As mãos de dedos magros e curtos
seguravam as duas bordas da cadeira, como se estivesse à beira de um
abismo, e temesse tombar na voragem.
Olhos abertos, piscando, Paulo Fernando ouvia, em torno, ordens em
alemão, tinir de ferros dentro de uma lata, jorro d'água, e passos
pesados ou ligeiros, de desconhecidos. Esses rumores eram, no seu
espírito, causa de novas reflexões.
Só agora, depois de cego, verificara a sensibilidade da audição, e as
suas relações com a alma, através do cérebro. Os passos de um estranho
são inteiramente diversos daqueles de uma pessoa a quem se conhece.
Cada criatura humana pisa de um modo. Seria capaz de identificar,
agora, pelo passo, todos os seus amigos, como se tivesse vista e lhe
pusessem diante dos olhos o retrato de cada um deles. E imaginava como
seria curioso organizar para os cegos um álbum auditivo, como os de
datiloscopia, quando um dos médicos lhe tocou no ombro, dizendo-lhe
amavelmente:
- Está tudo pronto... Vamos para a mesa... Dentro de oito dias estará bom. .
O escritor sorriu, cético. Lido nos filósofos, esperava, indiferente, a
cura ou a permanência na treva, não descobrindo nenhuma originalidade
no seu castigo e nenhum mérito na sua resignação. Compreendia a
inocuidade da esperança e a inutilidade da queixa. Levantou-se, assim,
tateando, e, pela mão do médico, subiu na mesa de ferro branco,
deitou-se ao longo, deixou que lhe pusessem a máscara para o
clorofórmio, sentiu que ia ficando leve, aéreo, imponderável. E nada
mais soube nem viu.
O processo Plateu era constituído por uma aplicação da lei de Roentgen,
de que resultou o Raio-X, e que punha em contacto, por meio de
delicadíssimos fios de "hêmera", liga metálica recentemente descoberta, o
nervo seccionado. Completava-o uma espécie de parafina adaptada ao
globo ocular, a qual, posta em contacto direto com a luz, restabelecida
integralmente a função desse órgão. Cientificamente, era mais um
mistério do que um fato. A verdade, era que as publicações européias
faziam, levianamente ou não, referências constantes às curas miraculosas
realizadas pelo cirurgião de Berlim, e que seu nome, em breve, corria o
mundo, como o de um dos grandes benfeitores da Humanidade.
Meia hora depois as portas da sala de cirurgia do Grande Hospital de
Clínicas se reabriam e Paulo Fernando, ainda inerte, voltava, em uma
carreta de rodas silenciosas, ao seu quarto de pensionista. As mãos
brancas, postas ao longo do corpo, eram como as de um morto. O rosto e a
cabeça envoltos em gaze, deixavam à mostra apenas o nariz afilado e a
boca entreaberta. E não tinha decorrido outra hora, e já o professor
Platen se achava, de novo, a bordo, deixando a recomendação de que não
fosse retirada a venda, que pusera no enfermo, antes de duas semanas.
Doze dias depois passava ele, de novo, pelo Rio, de regresso para a
Europa. Visitou novamente o operado, e deu novas ordens aos
enfermeiros. Paulo Fernando sentia-se bem. Recebia visitas, palestrava
com os amigos. Mas o resultado da operação só seria verificado três
dias mais tarde, quando se retirasse a gaze. O santo estava tão seguro
do seu prestígio que ia embora sem esperar pela verificação do milagre.
Chega, porém, o dia ansiosamente aguardado pelos médicos, mais do que
pelo doente. O Hospital encheu-se de especialistas, mas a direção só
permitiu, na sala em que se ia cortar a gaze, a presença dos
assistentes do enfermo. Os outros ficaram fora, no salão, para ver o
doente, depois da cura.
Pelo braço de dois assistentes, Paulo Fernando atravessou o salão.
Daqui e dali, vinham-lhe parabéns antecipados, apertos de mão
vigorosos, que ele agradecia com um sorriso sem endereço. Até que a
porta se fechou, e o doente, sentado em uma cadeira, escutou o estalido
da tesoura, cortando a gaze que lhe envolvia o rosto.
Duas, três voltas são desfeitas. A emoção é funda, e o silêncio
completo, como o de um túmulo. O último pedaço de gaze rola no balde. O
médico tem as mãos trêmulas. Paulo Fernando, imóvel, espera a sentença
final do Destino.
- Abra os olhos! - diz o doutor.
O operado, olhos abertos, olha em torno. Olha e, em silêncio, muito
pálido, vai se pondo de pé. A pupila entra em contacto com a luz, e ele
enxerga, distingue, vê. Mas é espantoso o que vê. Vê, em redor,
criaturas humanas. Mas essas criaturas não têm vestimentas, não têm
carne; são esqueletos apenas; são ossos que se movem, tíbias que andam,
caveiras que abrem e fecham as mandíbulas! Os seus olhos comem a carne
dos vivos. A sua retina, como os raios-X, atravessa o corpo humano e só
se detém na ossatura dos que a cercam, e diante das cousas inanimadas!
O médico, à sua frente, é um esqueleto que tem uma tesoura na mão!
Outros esqueletos andam, giram, afastam-se, aproximam-se, como um
bailado macabro!
De pé, os olhos escancarados, a boca aberta e muda, os braços
levantados numa atitude de pavor, e de pasmo, Paulo Fernando corre na
direção da porta, que adivinha mais do que vê, e abre-a. E o que
enxerga, na multidão de médicos e de amigos que o aguardam lá fora, é
um turbilhão de espectros, de esqueletos que marcham e agitam os
dentes, como se tivessem aberto um ossuário cujos mortos quisessem sair.
Solta um grito e recua. Recua, lento, de costa, o espanto estampado na
face. Os esqueletos marcham para ele, tentando segurá-lo.
- Afastem-se ! Afastem-se - intima, num urro que faz estremecer a sala toda.
E, metendo as unhas no rosto, afunda-as nas órbitas, e arranca, num
movimento de desespero, os dois glóbulos ensangüentados, e tomba
escabujando no solo, esmagando nas mãos aqueles olhos que comiam carne, e
que, devorando macabramente a carne aos vivos, transformavam a vida
humana, em torno, em um sinistro baile de esqueletos...