quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Assassino

Eram uns seis casais. Na sala de visitas de um deles, conversavam sobre o amor, sobre a fidelidade. Em dado momento, Almeida pousa o copo de uísque e dá sua opinião:

— O destino natural da mulher é ser traída!

Os homens riram-se, as senhoras protestaram:

— Que horror!

E uma delas, casada recentemente, bateu as três pancadas na madeira. Mas já o Almeida, com o seu cordial cinismo, retificava:

— Com exceção das presentes, claro.

Então, a dona da casa, que era uma senhora muito viva e brilhante, vira-se para o Almeida:

— Vocês, homens, são uns mascarados. Pelo seguinte: — um homem sempre trai com outra mulher. E esta mulher há de estar traindo alguém — ou não está?

Ele acha graça: “Depende”. A dona da casa continua:

— A verdade é que todo mundo trai e todo mundo é traído.

O Almeida ergue a voz:

— Menos eu! Eu, não!

LUA-DE-MEL

Era uma discussão sem conseqüência, para matar o tempo. Uns dez minutos depois, já conversavam sobre outros assuntos. E, cerca de meia-noite, Almeida e sua mulher, Dorinha, despediram-se. Estavam casados há treze anos e viviam ainda numa relativa lua-de-mel. No automóvel, a caminho de casa, Dorinha pergunta-lhe:

— É verdade que todo mundo é traído? E todo mundo trai?

Almeida acende um cigarro:

— Não sei se o outros traem, nem interessa. Só sei que eu não traio você, nem você a mim.

Dorinha suspira,

— Por enquanto.

E ele, grave:

— Por enquanto e sempre.

Fazem o resto da viagem em silêncio. Depois, em casa, tirando os brincos, Dorinha começa:

— Se eu te fizesse uma pergunta, tu me responderias, batata, com toda a sinceridade?

— Mas claro. Qual é a pergunta?

A pequena vacila. Põe os brincos na caixinha de jóias. De costas para o marido, fala:

— Que farias tu se eu, um dia, te traísse? Pergunto: — que farias comigo?

— Ora, não amola!

Dorinha teima:

— Isso não é resposta! Vamos, fala — tu farias o quê? Tirando a camisa, ele boceja:

— Vai dormir, que teu mal é sono!

Quando Almeida se senta, numa extremidade da cama, para tirar os sapatos, a mulher senta-se também no seu colo. Beijando-o na face, no pescoço, insiste:

— Terias coragem de me matar?

— Talvez.

Dorinha ergueu-se:

— Então, você não gosta de mim, não me ama, é um conversa-fiada!

E o marido:

— O sujeito só mata porque ama, sua boba!

Reagiu:

— Mentira! Quem ama perdoa, ou finge que não sabe. Eu só acredito em amor que resiste à infidelidade! Estou zangada contigo!

Almeida abre a boca num bocejo:

— Vem dormir, anda, que amanhã tenho que levantar cedo à beça!

Ela ficou em pé em frente a ele.

Rosnou:

— Você não me ama!

OBSESSÃO


Passou. No dia seguinte, na hora de sair para o emprego, Almeida vem beijá-la. Dorinha foge com o rosto:

— Não, senhor!

— Por quê?

E ela:

— Você pensa que eu me esqueci de sua ameaça?

Almeida não entendeu:

— Que ameaça?

E ela:

— Ameaça de morte, sim, senhor. Tu disseste que me matava se eu o traísse.

O marido dá-lhe um tapinha festivo na face:

— Sossega, leoa-de-chácara! E até logo, que eu já estou atrasado!

Na esquina, ele fez o que fazia sempre, isto é, virou-se para acenar com os dedos. Mas teve a surpresa: a mulher não estava no portão. Era talvez um lapso de Dorinha, um detalhe mínimo. Fosse como fosse, aquilo o aborreceu. E, no trabalho, a mulher telefona para ele. Começa:

— Aqui fala a sua futura vítima.

A princípio, não reconheceu a voz:

— Que vítima?

Ela respondeu:

— Você não disse que me matava?

Pela primeira vez irritou-se:

— Não brinca assim. Já está chata essa brincadeira. Passou. Ao chegar de noite em casa, inclinou-se para beijá-la. Novamente ela recua:

— Não, senhor. O futuro assassino não tem direito de beijar a vítima.

Era demais. Criou para a mulher o dilema: “Das duas, uma: ou você acaba com essa gracinha ou eu vou me zangar muito seriamente”. De braços cruzados, o rosto duro, ela o desafia:

— Não é gracinha nenhuma. Eu falo sério. Você disse que me matava e eu considero você o meu assassino.

Atônito, balbucia:

— Quer dizer que você insiste nesse palpite imbecil?

— Insisto.

Explodiu:

— Pois, então, dane-se. Vá tomar banho, antes que eu me esqueça!

O casal foi dormir sem se falar.

DESESPERO

Na manhã seguinte, quando Almeida acorda, Dorinha está sentada na cama. Pergunta ao marido:

— Quando é que você quer me matar?

Ele estoura:

— Quando você me trair!

Dorinha não responde imediatamente. O marido levanta-se, vai escovar os dentes. Súbito, a esposa aparece na porta do banheiro:

— Quem sabe se eu já não traí você? Quem sabe?

Com o dentifrício escorrendo-lhe da boca, o outro bufa:

— Pára com isso, olha que eu estou te avisando!

E ela, trincando os dentes:

— Assassino!

Almeida atira longe a escova. Agarra a esposa pelos dois braços e a sacode:

— Não brinca assim, que eu te arrebento.

E a empurra.

A MENSAGEM

Dois ou três dias depois, Almeida recebe um telefonema do pronto-socorro. Alguém dizia: — “Sua mulher foi atropelada!”. Almeida mal entendeu. Alucinado, corre. De fato, Dorinha fora atropelada, sim, num cruzamento de Carioca com Uruguaiana, e estava por um fio, morre ou não morre. Durante uma semana, esteve inconsciente, mas era óbvio que os médicos tinham esperança de salvá-la.

Uma noite, estava Almeida só, no quarto, com a acidentada. De repente sente que ela pousa a mão na sua. Do fundo do seu martírio, numa voz que é um sopro, ela está dizendo:

— Eu traí você, eu... traí...

Almeida sentiu que era a confissão da agonia. Antes que ela morresse, ele a matou.
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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

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