Caiu das nuvens:
— Você tem filhos?
— Tenho.
Epaminondas pôs as mãos na cabeça:
— Mas não é possível! Não pode ser! — Engole em seco e pergunta: — Mas filho de que idade?
Resposta:
— Nove anos!
E ele:
— Sabe que eu estou com a minha cara no chão? Besta?
— Pois é.
O espanto de Epaminondas tinha a sua razão de ser. Conhecia Silene há
três dias. Quase não sabia nada a respeito da garota; ou por outra: —
sabia apenas que era viúva. Do ponto de vista físico, tinha um jeito
adolescente, uma cinturinha frágil e fina, quadris estreitos e, numa
palavra, um corpo de menina solteira. Assim que a viu, num ônibus
apinhado, ele fez seus cálculos: “Essa menina perdeu o marido de cara,
tem pouquíssima experiência amorosa e deve ser gostosíssima”. Conversara
três vezes com Silene e, na última, recebe à queima-roupa a notícia que
havia um filho de nove anos. De si para si, Epaminondas deduz: —
“Garoto de nove anos, não dá para atrapalhar”.
O MEDO
Na tarde seguinte, fez como das vezes anteriores: veio para o saguão do
edifício, onde ela trabalhava, esperá-la. Depois, iria levá-la ao ponto
de ônibus. Mas quando Silene saiu do elevador, no meio de um mundão de
gente, e o viu, assustou-se. Olhava para um lado e outro, como se
existisse um espião nas proximidades. Diante de Epaminondas pede: “Não
faça mais isso”. Epaminondas não entende: “Por quê?”. E ela,
visivelmente nervosa: — “Alguém pode ver e não convém”. Epaminondas
pergunta:
— Mas você não é livre? Desimpedida? Ou tem algum compromisso?
Vacila antes de responder:
— Compromisso, propriamente, não tenho. Mas tenho um filho. Imagina se meu filho! Se desconfia!
Em pé, no meio da calçada, Epaminondas abre os braços: “Você liga tanto
ao que diz um pirralho? Faça-me o favor!”. Então, caminhando para o
poste de ônibus, Silene vem explicando certas coisas de sua vida.
Primeiro, faz a ressalva: “Eu tenho uma forte simpatia por você,
mas...”. Explica que o filho, um menino taludo e desabusado, a
tiranizava mais que o marido. Epaminondas, pasmo, exclamou: “Ora veja!”.
Silene temia mais aquele julgamento infantil do que o próprio Juízo
Final. Epaminondas enfia as duas mãos nos bolsos:
— Mas isso é um absurdo! Não tem o menor cabimento!
O FILHO
Antes de apanhar o ônibus, ela vira-se para Epaminondas:
— Faz o seguinte: telefona amanhã para mim, depois do almoço. Eu te digo qualquer coisa.
Epaminondas despede-se e vem para o bar encontrar-se com seus amigos, no
começo da noite. Impressionado, refere o caso da jovem mãe escravizada
por um fedelho. Um dos colegas resume: “Histerismo!”. O outro decide:
“Caso de psicanálise!”. Ao que um terceiro retruca: “Caso de tapona!”.
Quanto ao próprio Epaminondas, coçava a cabeça, ainda inconformado:
— Que mágica besta!
Conforme o combinado, o rapaz, depois do almoço na tarde seguinte, bate o
telefone. Silene parecia desesperada. “Vamos acabar!” Surpreso,
Epaminondas ponderou sensatamente: “Acabar o que ainda não começou? Tem
dó, meu bem!”. Sentiu, porém, que a garota estava num pânico real e
profundo: “Ele desconfia, ouviu?”. Novo espanto irritado de Epaminondas:
— Desconfia de quê, ora bolas? Se não houve nada, se não fizemos nada?!
Angustiada ela explica: — “Meu filho adivinha! Quando ele põe os olhos em mim, lê o meu pensamento, percebe tudo!”.
Epaminondas reage, violentamente:
— Vou te dizer o seguinte: se eu não te conhecesse, como te conheço, ia pensar que tu és uma doente mental! Palavra de honra!
Silene, chorando, propõe: “Se tu quiseres falar comigo pelo telefone, muito que bem. Pessoalmente não”.
AJUSTE
Embora indignado, submeteu-se. Não foi esperá-la mais. Em compensação,
seus telefonemas eram quilométricos, durando nunca menos de quarenta
minutos. Dia a dia, ele foi se tomando de um rancor obtuso contra o
menino. Esbravejava:
— “Sabe que essa autoridade de teu filho sobre ti é até imoral? No duro que é!”.
Ela, que fora casada três meses apenas, confessava:
— Eu não respeitava o meu marido como respeito o meu filho!
Um dia, ele diz ao telefone:
— Queres saber de um negócio? Tu não gostas do teu filho. Tens medo, o
que é diferente. — E insistia, encarniçado: — Não é amor, é medo!
No trabalho, com as colegas, Silene admitia que o marido fora apenas o
marido e nada mais. E acrescentava: “Epaminondas, não, Epaminondas é
amor no duro, amor batata”. Resumia para as companheiras
interessadíssimas: “Meu primeiro amor”. Quem não via com bons olhos o
romance telefônico era o chefe. Sempre que passava e surpreendia a
funcionária no telefone, ele rosnava: “Débil mental!”. Até que, uma
tarde, acontece o imprevisto: o menino aparece, no escritório, por conta
própria, sem avisar. Dir-se-ia que uma dessas intuições reveladoras o
guiava. Coincidiu que, no momento, por infelicidade, Silene estivesse
escravizada ao telefone e chorando. Na frente de todo mundo, arranca o
aparelho das mãos maternas. Nessa tarde, ela, numa pusilanimidade
abjeta, larga o serviço, larga tudo, para acompanhar o menino. Que
pavoroso ajuste de contas teria havido, em casa, entre mãe e filho? Que
dilaceramento recíproco e definitivo? Nunca se soube.
NECROTÉRIO
O fato é que, no seguinte telefonema de Epaminondas, Silene parecia outra. Despachou-o:
— Não me procure mais, nunca mais. Entre você e meu filho, fico com meu filho.
Sentiu que a perdera. Durante uns vinte e cinco dias, en¬tregou-se de
corpo e alma ao desespero. Vivia continuamente na fronteira da loucura e
do suicídio. E só não estourou os mio¬los porque passava os dias, de um
sol a outro sol, bêbado de todo, bêbado de cair. Um mês depois, ele vê,
na rua, Silene com o menino. Pensa com ódio no coração: “É ele!”.
Põe-se a segui-los, com uma obstinação de possesso. Súbito, a mãe e o
filho estacam em cima do meio-fio. E, quando começam a atravessar a rua,
Epaminondas apressa o passo e se coloca ao lado do ga¬roto. Era um
cruzamento de tráfego intensíssimo. No meio do caminho, os três vacilam.
Vêm dois ou três automóveis em dis¬parada. E, antes que chegassem ao
outro lado, um lotação apa¬nha a criança, em cheio, projetando-a longe.
Imediatamente, os outros carros freiam. Silene, no meio da rua, grita
como louca, ao passo que Epaminondas desaparece. Levado para o
pronto-socorro, numa ambulância, o pequeno expira horas depois. Sofrera
fratura de crânio, da espinha, afundamento do maxilar.
Numa dor enxuta e atônita, Silene acompanha os homens que levam o filho ao necrotério. Os círios são colocados e acesos.
Retiram-se os funcionários e ela está só com o pequeno morto, enrolado
em gazes ensangüentadas. Súbito, sente que há mais alguém ali, que
chegou alguém.
Vira-se com o coração apertado: Epaminondas está na porta, petrificado.
Ela aproxima-se do recém-chegado. Face a face com ele, acusa-o:
“Empurraste meu filho!”. Epaminondas baixa a cabeça, trancando os
lábios.
E ela, ofegante:
— Agora que meu filho está morto, eu posso ser tua!
Aperta o seu rosto entre as mãos e o beija na boca, como uma esfomeada.
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sexta-feira, 2 de setembro de 2011
Fome de beijos
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