sábado, 10 de setembro de 2011

Morrer como um cão

A rigor, só teve duas namoradas na vida. A primeira foi Helena, uma morena cheia de corpo, vistosíssíma, que chamava a atenção no meio da rua. E era tão bonita que os homens não respeitavam a presença do Amâncio. Onde quer que os dois aparecessem era um martírio. Assoviavam de todos os lados. Amâncio ficava branco. E Helena fazia, entredentes, o comentário:

— Mas que moleques sem educação! 

O rapaz a cutucava:

— Não olha! Não dá confiança!

No fundo, Helena gostava de fazer sucesso, de inspirar assovios. Confidenciava para as amigas: — “Não sei o que é que eu tenho. O fato é que os homens ficam malucos!”. Morreria de tédio, de pena, de nostalgia, no dia em que lhe faltasse admiração masculina. E quem sofria com isso era o pobre Amâncio. Tinha, na ocasião, seus dezoito anos. Mas era pequeno, fraquinho e, além disso, asmático. Com seu tórax de enfermo, de candidato à tísica, não se atrevia a uma atitude contra os fulanos que mexiam com a pequena no meio da rua. Mas a humilhação doía na sua carne e na sua alma. E quando, por fim, Helena o trocou por outro, ele teve um consolo na sua desdita: — já não seria desfeiteado por causa dela.

A segunda namorada foi Lurdinha, que levava sobre a precedente uma vantagem considerável: — era uma pequena de graciosidade discreta, quase imperceptível. Era preciso olhar muito para ela, prestar bastante atenção, para descobrir o seu encanto secreto. Já Amâncio podia sair com a namorada, sem perigo de incidentes desagradáveis.

O CASAMENTO

Foi um namoro rápido. Em coisa de quinze dias, Amâncio levou a pequena para apresentar à família. Sua mãe, d. Flor, olhou Lurdinha de alto a baixo, serviu-lhe cafezinho com biscoitos e, em suma, tratou-a com uma cordialidade controlada, mas satisfatória. Mais tarde, Amâncio perguntava:

— Que tal, mamãe?

A velha, que estava com uma costura no colo, suspirou:

— Serve.

Ele ficou com cara de tacho e meio chocado:

— A senhora não gostou?

— Mais ou menos. — E acabou acrescentando: — “Não fede, nem cheira”.

A grosseria da expressão doeu no rapaz. Teve um desabafo:

— A senhora é um espírito de porco, hein, minha mãe? 

Já o irmão de Amâncio, o Nonô, foi, se bem que sintético, mais positivo:

— Bonitinha.

Ora, o moço levava a opinião de Nonô na maior conta. Embora existisse de um para o outro uma diferença de vários anos, o fato é que se queriam como gêmeos e se consultavam para tudo. Sempre que Amâncio arranjava uma pequena, já sabe: pedia a opinião, o conselho, o estímulo do irmão. E vice-versa. Enfim, combinavam de uma maneira impressionante e eram os melhores amigos do mundo. Depois dessa primeira visita, Amâncio quis saber da pequena:

— Que tal meu irmão?

— Simpático.

Ele protestou, quase ofendido:

— Simpático, só? Um sujeito bonito, alinhado, parece artista de cinema!

Lurdinha, espantada com a veemência, ainda brincou:

— Eu não quis ofender. Teu irmão é uma uva, pronto!

Seis meses depois, estavam casados. Por exigência de Amâncio, Nonô, sempre que se encontrava com a cunhada, a beijava na face. Amâncio impunha:

— Faço questão que vocês sejam amicíssimos!

HOMEM BONITO

E, de fato, o que tinha Amâncio de sem graça, como homem, tinha o outro de bonitão. As pequenas viviam assim em cima dele. Umas perguntavam: “Por que você não entra para o teatro? Para o cinema?”. Ele ria e fazia o comentário impatriótico:

— Não acredito em cinema brasileiro.

Quanto a casamento, não queria nem ouvir falar. Batia na madeira: “Isola!”. E, se insistissem, argumentava: “Prefiro a mulher dos outros!”. Mas era mentira. Fugia das mulheres casadas. E, sério, quase triste, dava em definitivo sua opinião:

— Não tiro a mulher de ninguém! Deus me livre! 

Depois do casamento do irmão, com efeito, sossegara. Achavam graça: “Que negócio é este? Seu irmão casou e quem ficou sério foi você?”. Fazia blague: “Sempre fui sério!”.

Jantava todos os dias na casa da cunhada. Conversavam muito, ele e ela coincidiam nos gostos e opiniões. Amâncio esfregava as mãos, radiante: “Meu irmão e minha mulher são unha e carne!”. Essa amizade o enternecia. Ficava horas ouvindo a conversa dos dois; e, por vezes, cochilava, enquanto os dois palestravam. Às vezes era o próprio Amâncio quem telefonava do escritório:

— Olha! Hoje eu tenho serão, Ouviste? Vai lá pra casa fazer companhia à minha mulher.

Lá ia o Nonô. O outro chegava à meia-noite ou mais; encontrava os dois ouvindo música, na vitrola. E foi numa dessas noites de serão que, mudando um disco, Lurdinha teve a curiosidade súbita:

— Você nunca deu em cima de mulher casada?

— Nunca.

E ela, colocando o disco, de costas para ele:

— No duro?

— Batata!

Começaram a ouvir a música, que era um bolero, e, então, embalado pelo disco, Nonô ergueu-se, enfiou as duas mãos nos bolsos, foi até a janela; e, voltando, perguntou:

— Sabe qual é a única mulher casada que até agora me impressionou?

Estavam os dois face a face. Ela antecipou-se: “Não precisa dizer, eu sei”. 

Ficaram em silêncio algum tempo. Quando chegou a vez de mudar o disco, Lurdinha ergueu-se; de costas para ele, substituindo a agulha na vitrola, disse: — “Você não tira os olhos de mim”. — E fez a pergunta: “Não tem medo que os outros desconfiem?”. Aquela conversa foi, para eles, um tormento delicioso. Nonô pensava: — “É um crime o que eu estou fazendo”.

DESTINO

Quando o inevitável aconteceu, ambos tiveram a mesma explicação: “Foi o destino”. Que remorso havia no fundo daquela felicidade! De vez em quando, Nonô a beijava com uma espécie de ódio: — “Você não tem cara disso!”. Ela achava graça: “Disso o quê?”. Nonô ia especificar: — “Cara de adúltera” — mas o pavor à palavra o emudeceu. Suspirou: — “Nada”. E a naturalidade com que ela ia aos encontros, com que se atirava nos seus braços, o aterrava. Tinha a exclamação:

— Mulher é um caso sério. Mas olha! Amâncio não pode saber nunca!

Foi por essa época que Amâncio, que queria um aumento de ordenado, deu para levar o patrão, o dr. Gustavo. Era um senhor, já de idade, que padecia de dois males: a esposa, que lhe amargurava a existência, e uma dispepsia, que era o inferno de suas refeições. Amâncio telefonava para a mulher: “Vou levar o chefe. Faz uma comida gostosa!”. Outra recomendação era a seguinte: “Trate o homem bem, que eu vou entrar com o pedido de aumento”. O homem apareceu uma vez, duas, três, quatro. Por fim, estava lá todas as noites. Praticamente, o dr. Gustavo separara-se da mulher. No segundo ou terceiro jantar em casa de Amâncio, teve um desabafo irreprimível e gemeu:

— Pois eu, minha senhora, não tenho lar! É a dura realidade! 

Lurdinha foi de uma habilidade exemplar; com muita doçura e feminilidade, aproveitou o ensejo:

— Então, por que é que o senhor não vem jantar todos os dias aqui?

Ela fazia, para o patrão do marido, pratos especiais, que não tivessem muita gordura, nem temperos fortes. Vinha lá de dentro, trazendo um prato fundo: — “Essa canjinha o senhor pode comer”. Tantas atenções o envolviam e deslumbravam. No escritório, chamava o Amâncio: — “Seu Amâncio, você tem uma mulher que é um anjo!”. No fim de quinze dias, deu-lhe um aumento. Prometeu-lhe outro para o fim do ano.

O CIUMENTO

Patrão e empregado eram agora íntimos. Dr. Gustavo fazia confidências ao Amâncio: — “Eu tenho um defeito, sou ciumento, tenho ciúmes de tudo!”. Rilhava os dentes ao dizer isso; e foi mais além: — “Te juro que, por ciúmes, sou capaz de dar tiro!”. Impressionado, o Amâncio ia para casa contar para a mulher: “O patrão não é sopa!”. Quem não gostava era o Nonô. Queixava-se amargo e ressentido à pequena: — “Esse patrão do teu marido é uma boa besta”. E, um dia, o Amâncio encontra, na sua mesa do escritório, um envelope. Abre e toma um choque: era uma carta anônima. Leu e releu; e guardou aquilo. Mas as palavras estavam guardadas no seu cérebro: — “Você é um idiota muito grande. Sua mulher tem dois. O Nonô e o Gustavo”. Dois dias depois nova carta: “Abre o olho, seu cretino!”. Vieram ainda uma terceira e quarta cartas, com endereço e horário dos encontros de Lurdinha com Nonô e o patrão. Ele, branco e com o coração disparado, rasgava aqueles papeluchos infames em mil pedacinhos.

Um dia, foi espiar, de dentro de um táxi e pelo vidro, o encontro de Nonô e, no dia seguinte, viu o patrão e a pequena entrando no mesmo edifício. Ele não disse nada, nem soube o que fazer. Passou uns quinze dias com o problema na cabeça. Quando observavam sua tristeza indisfarçada, desculpava-se: “Estou indisposto”. Um dia, porém, saiu animado para o escritório e entrou no gabinete do patrão. Foi direto ao assunto: — “Doutor fulano, eu acho que minha mulher me engana”.

O outro pulou da cadeira: — “Mas como?”. E ele: — “Tenho provas, doutor fulano”. Baixou a voz e concluiu: — “Com o meu próprio irmão”. O patrão estava roxo; fez a pergunta: — “Tem certeza?”. E Amâncio: — “Absoluta!”. Deu detalhes, forneceu hora e endereços. E, por fim, saturado de tanta infâmia, arriou numa cadeira e soluçou como um menino. Em meio do pranto, teve um repelão feroz e inofensivo: “Eu se fosse homem, se tivesse vergonha na cara, matava esse cachorro”. O dr. Gustavo não esboçou um gesto, não disse uma palavra.

Nessa noite, antes de dormir, Amâncio fez um comentário enigmático para a mulher: — “Eu acho que um sujeito que tira a mulher dos outros devia morrer como um cão!”.

No dia seguinte, quando Nonô vai entrando no edifício com Lurdinha pelo braço, ouve um “psiu”. Vira-se instintivamente e vê, então, a poucos metros, o dr. Gustavo. Este empunha um revólver e atira uma vez, duas, três, quatro vezes. Nonô tentou correr, escapar, mas, atingido mortalmente, foi cair adiante. Teve breve agonia, e morreu ali mesmo, de face voltada para o alto do edifício.
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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
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Namorada caolha

No meio da festa, seu amigo fez o convite:

— Vem beber, vem! 

Geme:

— Não posso.

E o outro, que era um pau-d’água irremediável:

— Por quê?

Enfiou as duas mãos nos bolsos; e foi dizendo com um humor misturado de melancolia:

— Beber, só se for água de bica e olhe lá! Mas não posso mesmo. Sou um caso sério. Eu me embriago até com água mineral.

Não mentia, era fraquíssimo para bebida. Jeová, porém, insistiu: “Deixa de ser chato! Vamos, sim!”. E fez a proposta: “Tu bebes um copo só, de chope, e pronto!”. Acabou indo. No fundo do quintal, onde foram colocados dois barris com o respectivo gelo, bebeu o primeiro copo.

Começou a tornar-se inconveniente, pois a embriaguez assumia, nele, as formas mais desagradáveis e agressivas. Na altura do décimo copo, Xavier, já fora de si, dá um uivo súbito. Querem agarrá-lo, mas ele se desvencilha num rapelão selvagem. Corre, gritando. Perfura os grupos sucessivos de convidados; pisa nas senhoras; empurra os homens. E, finalmente, na sala de visitas, cai de joelhos aos pés da filha do dono da casa e abraça-se às suas pernas soluçando:

— Casa comigo! Casa comigo! Eu te amo, te amo e te amo!

Foi um escândalo tremendo.

A ESTRÁBICA

Serenado o ambiente, seu Baltazar, que era o pai de Galatéia, chamou-a a um canto, ante a perspectiva nupcial que o incidente comportava. Seu Baltazar quis saber: “Esse rapaz gosta de ti? Gosta?”. A garota estava comovidíssima da cabeça aos pés. Conhecia Xavier vagamente, de cumprimento, e caíra das nuvens como os demais. Com palpitações, falta de ar, admite:

— Parece que gosta, papai. O senhor não viu?

Xavier saiu de casa às carreiras. Foi direto ao emprego de Jeová, chega e desaba na primeira cadeira: — “Estou na maior tragédia da América Latina!”. 

Refere-se à confusão criada com a bebedeira de véspera. Jeová quis ser otimista: “Ninguém liga para o que um bêbado diz!”.

Ele protesta:

— Não liga uma pinóia! A Galatéia ligou, ouviu? E agora meu Deus? Como é que eu vou sair dessa encrenca?

Jeová simplificava: “Não há drama, rapaz! Você diz que não, que estava bêbado e pronto!”.

Xavier senta-se de novo, aperta a cabeça entre as mãos, quase chorando:

— O pior você não sabe! O pior é que, desde garotinho, eu tenho uma pena tremenda de mulheres estrábicas. Eu não sou ninguém diante de uma estrábica!

O outro fez espanto: “E daí?”. 

Xavier continua:

— Daí o seguinte: eu sei de antemão, sei desde já, que eu não terei coragem de desiludir Galatéia. Ela pensa que eu estou apaixonado. Pois bem. E eu nunca serei capaz de dizer: “Olha, Galatéia, eu não gosto de ti, eu te acho um bucho!”.

Jeová prefere achar graça:

— Isso é carnaval teu! Literatura!

COMPROMETIDO

No dia seguinte, Xavier acorda tardíssimo. Levanta-se e está no banheiro, escovando os dentes, quando aparece a irmã caçula: “Você está namorando a Galatéia?”. Toma um verdadeiro susto:

— Isola!

Toma o seu banho numa depressão medonha. Pouco depois, já pronto, ia saindo quando o telefone o chama. Era Galatéia. Numa atrapalhação mortal, ele gaguejou:

— Você me desculpe, Galatéia, mas é que ontem eu bebi demais...

Do outro lado da linha, a pequena está dizendo, com uma doçura atroz:

— Em absoluto! Desculpar de quê? — E baixa a voz: “Foi bom você ter bebido, só assim eu soube que você gosta de mim!”.

Houve uma pausa dramática. No seu pânico, Xavier emudecia. Podia ter desfeito logo o equívoco. Faltou-lhe, porém, coragem. Balbuciou inteiramente alvar:

— Pois é, pois é.

Mas, quando desligou o telefone, encostou-se à parede, com vontade de chorar. Virou-se para a mãe e as irmãs:

— Estou fritíssimo!

Certo dia, Galatéia recebe um telefonema anônimo. Uma voz feminina dizia-lhe: “Olha aqui, sua caolha: o Xavier não gosta de você coisa nenhuma. Tem pena. Não é amor, é pena, ouviu?”. Galatéia tem um choque tremendo. Xavier vai encontrá-la em lágrimas. Sempre que Galatéia se comovia, seu estrabismo tornava-se mais violento. Interpelou o namorado: “Você gosta de mim ou tem pena?”. Diante daquele pranto de menina feia, Xavier tomou-se de uma dessas penas convulsas e mortais. Jurou por todos os santos: “Eu te amo, meu anjo! Juro que te amo!”. Galatéia, numa histeria, exige: “Jura pela vida de tua mãe!”. E para convencê-la de vez foi além:

— Amanhã eu vou pedir a tua mão. Avisa a teu pai, a tua mãe, percebeste?

TRAGÉDIA

Ficaram noivos. Galatéia era, quase, a mulher mais feliz do mundo. Digo “quase” porque o telefonema anônimo marcara o seu espírito, criara nela o complexo do estrabismo. Por vezes experimentava uma espécie de alucinação e julgava ouvir uma voz feminina: “Caolha! Sua caolha!”. Passou a usar óculos escuros. Foi então que a mãe e irmãs de Xavier tiveram a idéia: “Por que você não procura um oculista e não opera? Quem sabe?”.

A possibilidade de sanar o defeito deslumbrou-a. Pedindo segredo à sogra e às cunhadas, consultou um oculista. Este foi taxativo: “Tem remédio, sim. É até uma operação simples”. Galatéia volta para casa, desvairada. Ela desejaria, porém, poder fazer uma surpresa ao noivo. E, súbito, ocorre uma coincidência: por determinação da firma onde trabalhava, Xavier teria de passar um mês em São Paulo antes do casamento. Voltaria na véspera. Galatéia viu ali o dedo da Providência Divina.

Pois bem. Ele partiu um dia, às cinco horas da manhã, de automóvel; e, às dez horas, a pequena foi operada. Passa o tempo.

Xavier, que deveria passar apenas um mês em São Paulo, só pôde regressar, espavorido, na manhã do casamento. E mais: veio do aeroporto diretamente para a pretoria. Tem, então, a surpresa: viu diante de si uma Galatéia não mais estrábica, uma Galatéia de olhos normais. Assombrado, não sabe o que pensar, o que dizer. Súbito, explode: “Não me caso mais, ouviu? Não me caso mais!”.
Pensou-se, a princípio, numa pilhéria de péssimo gosto. Mas ele, fora de si, continua:

— Enquanto você foi caolha, eu tinha pena. Agora só tenho asco! Nojo!

Parecia ter perdido a razão. Desesperada, ela agarra-se ao noivo. Xavier se desprende num repelão feroz:

— Desinfeta!

Quiseram segurá-lo. Mas ele correu, sumiu. Mais tarde, o Jeová, aflito, vai encontrá-lo no café, meio bêbado. Dá-lhe a notícia à queima-roupa: Galatéia suicidara-se. Ele ri, sórdido:

— Ótimo, ótimo! Traz mais um chope, garçom!
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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
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Balzac

Patrono do romance no Ocidente, Balzac é também, ao mesmo tempo, um historiador de costumes: sua minúcia documentária coloca-o na posição de precursor do realismo literário.

O realismo, embora perpassado de elementos românticos e efeitos melodramáticos, é a característica central de sua obra e tanto os tipos sociais quanto o meio ambiente fornecem à matéria romanesca a dimensão histórica que lhe serve de apoio.

Romancista francês, Honoré de Balzac nasceu em Tours em 20 de maio de 1799. Após estudos no colégio dos oratorianos em Vendôme, decidiu em Paris, por volta de 1818, dedicar-se apenas à literatura, contrariando o desejo da família, que queria vê-lo advogado.

A primeira peça que escreveu, Cromwell  (1820), não chegou a ser encenada. Insistiu porém na escolha e continuou a escrever, preferindo agora a ficção, graças sobretudo ao estímulo de Laure de Berny, uma das muitas mulheres da alta sociedade que ao longo de sua vida prestaram-lhe apoio moral e financeiro.

Nos anos seguintes publicou, sob os pseudônimos de Lord R'Hoone e de Horace de Saint-Aubin, uma série de romances menores, posteriormente agrupados sob o título geral deRomans de jeunesse (Romances da juventude). Tais livros, embora se submetessem à moda dos folhetins e a influências diversas, já revelavam um incipiente talento.

A partir desse início, suas obras iriam suceder-se em velocidade espantosa: num período de vinte anos, Balzac publicou cerca de noventa romances e novelas, trinta contos e cinco peças de teatro. Paralelamente levou vida mundana, freqüentando os salões parisienses, viajando muito e procurando em vão um meio de enriquecer, objetivo que perseguiu pela vida ante o assédio permanente de seus credores.

De 1825 a 1828, sempre na expectativa de enriquecer, Balzac se lançou aos negócios: associou-se a um livreiro, comprou uma tipografia e se fez editor. Em 1829, após uma série de fracassos editoriais que acentuou suas dificuldades financeiras, conheceu enfim o sucesso com o primeiro romance que lançou com seu verdadeiro nome, Le Dernier Chouan (O último chouan), sendo "chouan" o nome dado aos insurrectos da Vendéia e da Bretanha em 1800.

Vislumbrou por essa época uma carreira política, esposando opiniões monarquistas e católicas. Em janeiro de 1833 principiou sua correspondência com a condessa polonesa Éveline Hanska, conhecida como l'Etrangère, que o admirava e com a qual se casaria mais tarde.

O fluxo criador de Balzac pode ser desdobrado em três etapas: a primeira, que se estende até 1829, foi um período de aprendizagem; a segunda, de 1834 a 1842, de consolidação de seu sistema novelístico; e a terceira, de 1842 a 1850, de unificação desse universo literário sob o título geral de La Comédie humaine (A comédia humana), alusivo à Divina comédia de Dante.

O êxito do primeiro romance foi confirmado nos anos que se seguiram por títulos como La Peau de chagrin (1831; A pele de onagro), Le Chef-d'oeuvre inconnu (1832; A obra-prima desconhecida), La Recherche de l'absolu (1832; A busca do absoluto), Eugénie Grandet(1833) e, sobretudo, Le Père Goriot (1834; O velho Goriot), onde começam a reaparecer personagens de livros anteriores, com o fim específico de conferir à obra encadeada o caráter global de espelho da sociedade francesa, em particular parisiense, na primeira metade do século XIX.

O mundo novelístico de Balzac é a primeira expressão coerente das potencialidades oferecidas pela revolução francesa e que então se concretizavam no plano social, econômico, político e individual, principalmente pelas transformações ocorridas na propriedade das terras, o que explica o interesse do romancista pela nova burguesia e pela decadência da aristocracia; o grande papel dos notários em sua obra; e a ausência da classe operária, que não participava desse processo.

O pano de fundo dos enredos são as estruturas e instituições advindas do império napoleônico e da irrupção dominante da burguesia. Paradoxalmente, foi o monarquista e legitimista Balzac quem revelou à Europa e ao mundo ocidental as conseqüências irreversíveis da revolução francesa.

Já nos romances da fase intermediária, que são a base de sua reputação, Balzac mostra obsessão pelos detalhes: seus heróis são seres de carne e osso que comem, bebem e se relacionam sob o domínio de paixões fortes. Deles se fica conhecendo exaustivamente o físico, o vestuário, o prestígio, a fortuna, a posição social e o domicílio.

A criação dos romances obedece a uma progressiva diversificação de situações, de personagens, de destinos humanos. Por suas qualidades, pela amplitude da área social tratada, pela técnica de que se vale o autor para a liberação das forças psicológicas nos personagens que movimenta, é forçoso admitir que, como gênero literário, a história do romance no Ocidente se divide em duas metades: antes e depois de Balzac.

Organização da "Comédia humana". A idéia de agrupar num todo a extensa obra narrativa, sob um só título genérico, levou tempo para ser posta em prática, embora fosse antiga nas cogitações do escritor. A primeira edição da Comédia humana, com o título escolhido por Balzac em 1842, começou a ser publicada, nesse mesmo ano, em 17 volumes.

Em 1845, para a segunda edição, foi adotado o plano, seguido pelas edições mais modernas. Nele, o agrupamento das obras obedece ao seguinte esquema: (1) Estudos de costumes no século XIX: (a) cenas da vida privada; (b) cenas da vida de província; (c) cenas da vida parisiense; (d) cenas da vida política; (e) cenas da vida militar; (f) cenas da vida rural. (2) Estudos filosóficos. (3) Estudos analíticos.

São inúmeras, nesses três grupos em que estão ordenadas, as obras-primas geradas pela fecundidade criadora de Balzac, como, além das já citadas, La Maison du chat qui pelote(1830; A casa do gato que brinca), La Bourse (1832; A bolsa de valores), La Femme de trente ans (1831-1834; A mulher de trinta anos), Illusions perdues (1843; Ilusões perdidas),Les Paysans (1845; Os camponeses).

Através dos vários romances da Comédia humana, conforme o rumo adotado desde Le Père Goriot, os personagens -- mais de dois mil ao todo -- aparecem e reaparecem segundo os vários níveis de suas vidas, num percurso contínuo que cobre todas as áreas sociais. A idéia central é que o dinheiro é o móvel fundamental da vida humana, sobrepondo-se sua busca a quaisquer outros interesses, sejam políticos, religiosos ou familiares.

Induzido pela voga científica da época, Balzac pretendeu aplicar às descrições de pessoas, com seus hábitos e sentimentos, seus ideais e paixões, o mesmo espírito analítico com que os cientistas descreviam os animais e as plantas. Foi o primeiro a reunir num ciclo de romances o estudo da vida social inteira, processo que seria seguido, entre outros, por Zola.

Em 1850, já gravemente enfermo, Balzac se casou com Éveline Hanska, e em 18 de agosto desse mesmo ano faleceu em Paris. A edição definitiva da Comédia humana, que saiu postumamente entre 1869 e 1876, constava de 137 romances, cinqüenta dos quais tinham ficado incompletos.

Fonte: Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda.
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