sábado, 10 de setembro de 2011

Namorada caolha

No meio da festa, seu amigo fez o convite:

— Vem beber, vem! 

Geme:

— Não posso.

E o outro, que era um pau-d’água irremediável:

— Por quê?

Enfiou as duas mãos nos bolsos; e foi dizendo com um humor misturado de melancolia:

— Beber, só se for água de bica e olhe lá! Mas não posso mesmo. Sou um caso sério. Eu me embriago até com água mineral.

Não mentia, era fraquíssimo para bebida. Jeová, porém, insistiu: “Deixa de ser chato! Vamos, sim!”. E fez a proposta: “Tu bebes um copo só, de chope, e pronto!”. Acabou indo. No fundo do quintal, onde foram colocados dois barris com o respectivo gelo, bebeu o primeiro copo.

Começou a tornar-se inconveniente, pois a embriaguez assumia, nele, as formas mais desagradáveis e agressivas. Na altura do décimo copo, Xavier, já fora de si, dá um uivo súbito. Querem agarrá-lo, mas ele se desvencilha num rapelão selvagem. Corre, gritando. Perfura os grupos sucessivos de convidados; pisa nas senhoras; empurra os homens. E, finalmente, na sala de visitas, cai de joelhos aos pés da filha do dono da casa e abraça-se às suas pernas soluçando:

— Casa comigo! Casa comigo! Eu te amo, te amo e te amo!

Foi um escândalo tremendo.

A ESTRÁBICA

Serenado o ambiente, seu Baltazar, que era o pai de Galatéia, chamou-a a um canto, ante a perspectiva nupcial que o incidente comportava. Seu Baltazar quis saber: “Esse rapaz gosta de ti? Gosta?”. A garota estava comovidíssima da cabeça aos pés. Conhecia Xavier vagamente, de cumprimento, e caíra das nuvens como os demais. Com palpitações, falta de ar, admite:

— Parece que gosta, papai. O senhor não viu?

Xavier saiu de casa às carreiras. Foi direto ao emprego de Jeová, chega e desaba na primeira cadeira: — “Estou na maior tragédia da América Latina!”. 

Refere-se à confusão criada com a bebedeira de véspera. Jeová quis ser otimista: “Ninguém liga para o que um bêbado diz!”.

Ele protesta:

— Não liga uma pinóia! A Galatéia ligou, ouviu? E agora meu Deus? Como é que eu vou sair dessa encrenca?

Jeová simplificava: “Não há drama, rapaz! Você diz que não, que estava bêbado e pronto!”.

Xavier senta-se de novo, aperta a cabeça entre as mãos, quase chorando:

— O pior você não sabe! O pior é que, desde garotinho, eu tenho uma pena tremenda de mulheres estrábicas. Eu não sou ninguém diante de uma estrábica!

O outro fez espanto: “E daí?”. 

Xavier continua:

— Daí o seguinte: eu sei de antemão, sei desde já, que eu não terei coragem de desiludir Galatéia. Ela pensa que eu estou apaixonado. Pois bem. E eu nunca serei capaz de dizer: “Olha, Galatéia, eu não gosto de ti, eu te acho um bucho!”.

Jeová prefere achar graça:

— Isso é carnaval teu! Literatura!

COMPROMETIDO

No dia seguinte, Xavier acorda tardíssimo. Levanta-se e está no banheiro, escovando os dentes, quando aparece a irmã caçula: “Você está namorando a Galatéia?”. Toma um verdadeiro susto:

— Isola!

Toma o seu banho numa depressão medonha. Pouco depois, já pronto, ia saindo quando o telefone o chama. Era Galatéia. Numa atrapalhação mortal, ele gaguejou:

— Você me desculpe, Galatéia, mas é que ontem eu bebi demais...

Do outro lado da linha, a pequena está dizendo, com uma doçura atroz:

— Em absoluto! Desculpar de quê? — E baixa a voz: “Foi bom você ter bebido, só assim eu soube que você gosta de mim!”.

Houve uma pausa dramática. No seu pânico, Xavier emudecia. Podia ter desfeito logo o equívoco. Faltou-lhe, porém, coragem. Balbuciou inteiramente alvar:

— Pois é, pois é.

Mas, quando desligou o telefone, encostou-se à parede, com vontade de chorar. Virou-se para a mãe e as irmãs:

— Estou fritíssimo!

Certo dia, Galatéia recebe um telefonema anônimo. Uma voz feminina dizia-lhe: “Olha aqui, sua caolha: o Xavier não gosta de você coisa nenhuma. Tem pena. Não é amor, é pena, ouviu?”. Galatéia tem um choque tremendo. Xavier vai encontrá-la em lágrimas. Sempre que Galatéia se comovia, seu estrabismo tornava-se mais violento. Interpelou o namorado: “Você gosta de mim ou tem pena?”. Diante daquele pranto de menina feia, Xavier tomou-se de uma dessas penas convulsas e mortais. Jurou por todos os santos: “Eu te amo, meu anjo! Juro que te amo!”. Galatéia, numa histeria, exige: “Jura pela vida de tua mãe!”. E para convencê-la de vez foi além:

— Amanhã eu vou pedir a tua mão. Avisa a teu pai, a tua mãe, percebeste?

TRAGÉDIA

Ficaram noivos. Galatéia era, quase, a mulher mais feliz do mundo. Digo “quase” porque o telefonema anônimo marcara o seu espírito, criara nela o complexo do estrabismo. Por vezes experimentava uma espécie de alucinação e julgava ouvir uma voz feminina: “Caolha! Sua caolha!”. Passou a usar óculos escuros. Foi então que a mãe e irmãs de Xavier tiveram a idéia: “Por que você não procura um oculista e não opera? Quem sabe?”.

A possibilidade de sanar o defeito deslumbrou-a. Pedindo segredo à sogra e às cunhadas, consultou um oculista. Este foi taxativo: “Tem remédio, sim. É até uma operação simples”. Galatéia volta para casa, desvairada. Ela desejaria, porém, poder fazer uma surpresa ao noivo. E, súbito, ocorre uma coincidência: por determinação da firma onde trabalhava, Xavier teria de passar um mês em São Paulo antes do casamento. Voltaria na véspera. Galatéia viu ali o dedo da Providência Divina.

Pois bem. Ele partiu um dia, às cinco horas da manhã, de automóvel; e, às dez horas, a pequena foi operada. Passa o tempo.

Xavier, que deveria passar apenas um mês em São Paulo, só pôde regressar, espavorido, na manhã do casamento. E mais: veio do aeroporto diretamente para a pretoria. Tem, então, a surpresa: viu diante de si uma Galatéia não mais estrábica, uma Galatéia de olhos normais. Assombrado, não sabe o que pensar, o que dizer. Súbito, explode: “Não me caso mais, ouviu? Não me caso mais!”.
Pensou-se, a princípio, numa pilhéria de péssimo gosto. Mas ele, fora de si, continua:

— Enquanto você foi caolha, eu tinha pena. Agora só tenho asco! Nojo!

Parecia ter perdido a razão. Desesperada, ela agarra-se ao noivo. Xavier se desprende num repelão feroz:

— Desinfeta!

Quiseram segurá-lo. Mas ele correu, sumiu. Mais tarde, o Jeová, aflito, vai encontrá-lo no café, meio bêbado. Dá-lhe a notícia à queima-roupa: Galatéia suicidara-se. Ele ri, sórdido:

— Ótimo, ótimo! Traz mais um chope, garçom!
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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

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