sábado, 10 de setembro de 2011

Morrer como um cão

A rigor, só teve duas namoradas na vida. A primeira foi Helena, uma morena cheia de corpo, vistosíssíma, que chamava a atenção no meio da rua. E era tão bonita que os homens não respeitavam a presença do Amâncio. Onde quer que os dois aparecessem era um martírio. Assoviavam de todos os lados. Amâncio ficava branco. E Helena fazia, entredentes, o comentário:

— Mas que moleques sem educação! 

O rapaz a cutucava:

— Não olha! Não dá confiança!

No fundo, Helena gostava de fazer sucesso, de inspirar assovios. Confidenciava para as amigas: — “Não sei o que é que eu tenho. O fato é que os homens ficam malucos!”. Morreria de tédio, de pena, de nostalgia, no dia em que lhe faltasse admiração masculina. E quem sofria com isso era o pobre Amâncio. Tinha, na ocasião, seus dezoito anos. Mas era pequeno, fraquinho e, além disso, asmático. Com seu tórax de enfermo, de candidato à tísica, não se atrevia a uma atitude contra os fulanos que mexiam com a pequena no meio da rua. Mas a humilhação doía na sua carne e na sua alma. E quando, por fim, Helena o trocou por outro, ele teve um consolo na sua desdita: — já não seria desfeiteado por causa dela.

A segunda namorada foi Lurdinha, que levava sobre a precedente uma vantagem considerável: — era uma pequena de graciosidade discreta, quase imperceptível. Era preciso olhar muito para ela, prestar bastante atenção, para descobrir o seu encanto secreto. Já Amâncio podia sair com a namorada, sem perigo de incidentes desagradáveis.

O CASAMENTO

Foi um namoro rápido. Em coisa de quinze dias, Amâncio levou a pequena para apresentar à família. Sua mãe, d. Flor, olhou Lurdinha de alto a baixo, serviu-lhe cafezinho com biscoitos e, em suma, tratou-a com uma cordialidade controlada, mas satisfatória. Mais tarde, Amâncio perguntava:

— Que tal, mamãe?

A velha, que estava com uma costura no colo, suspirou:

— Serve.

Ele ficou com cara de tacho e meio chocado:

— A senhora não gostou?

— Mais ou menos. — E acabou acrescentando: — “Não fede, nem cheira”.

A grosseria da expressão doeu no rapaz. Teve um desabafo:

— A senhora é um espírito de porco, hein, minha mãe? 

Já o irmão de Amâncio, o Nonô, foi, se bem que sintético, mais positivo:

— Bonitinha.

Ora, o moço levava a opinião de Nonô na maior conta. Embora existisse de um para o outro uma diferença de vários anos, o fato é que se queriam como gêmeos e se consultavam para tudo. Sempre que Amâncio arranjava uma pequena, já sabe: pedia a opinião, o conselho, o estímulo do irmão. E vice-versa. Enfim, combinavam de uma maneira impressionante e eram os melhores amigos do mundo. Depois dessa primeira visita, Amâncio quis saber da pequena:

— Que tal meu irmão?

— Simpático.

Ele protestou, quase ofendido:

— Simpático, só? Um sujeito bonito, alinhado, parece artista de cinema!

Lurdinha, espantada com a veemência, ainda brincou:

— Eu não quis ofender. Teu irmão é uma uva, pronto!

Seis meses depois, estavam casados. Por exigência de Amâncio, Nonô, sempre que se encontrava com a cunhada, a beijava na face. Amâncio impunha:

— Faço questão que vocês sejam amicíssimos!

HOMEM BONITO

E, de fato, o que tinha Amâncio de sem graça, como homem, tinha o outro de bonitão. As pequenas viviam assim em cima dele. Umas perguntavam: “Por que você não entra para o teatro? Para o cinema?”. Ele ria e fazia o comentário impatriótico:

— Não acredito em cinema brasileiro.

Quanto a casamento, não queria nem ouvir falar. Batia na madeira: “Isola!”. E, se insistissem, argumentava: “Prefiro a mulher dos outros!”. Mas era mentira. Fugia das mulheres casadas. E, sério, quase triste, dava em definitivo sua opinião:

— Não tiro a mulher de ninguém! Deus me livre! 

Depois do casamento do irmão, com efeito, sossegara. Achavam graça: “Que negócio é este? Seu irmão casou e quem ficou sério foi você?”. Fazia blague: “Sempre fui sério!”.

Jantava todos os dias na casa da cunhada. Conversavam muito, ele e ela coincidiam nos gostos e opiniões. Amâncio esfregava as mãos, radiante: “Meu irmão e minha mulher são unha e carne!”. Essa amizade o enternecia. Ficava horas ouvindo a conversa dos dois; e, por vezes, cochilava, enquanto os dois palestravam. Às vezes era o próprio Amâncio quem telefonava do escritório:

— Olha! Hoje eu tenho serão, Ouviste? Vai lá pra casa fazer companhia à minha mulher.

Lá ia o Nonô. O outro chegava à meia-noite ou mais; encontrava os dois ouvindo música, na vitrola. E foi numa dessas noites de serão que, mudando um disco, Lurdinha teve a curiosidade súbita:

— Você nunca deu em cima de mulher casada?

— Nunca.

E ela, colocando o disco, de costas para ele:

— No duro?

— Batata!

Começaram a ouvir a música, que era um bolero, e, então, embalado pelo disco, Nonô ergueu-se, enfiou as duas mãos nos bolsos, foi até a janela; e, voltando, perguntou:

— Sabe qual é a única mulher casada que até agora me impressionou?

Estavam os dois face a face. Ela antecipou-se: “Não precisa dizer, eu sei”. 

Ficaram em silêncio algum tempo. Quando chegou a vez de mudar o disco, Lurdinha ergueu-se; de costas para ele, substituindo a agulha na vitrola, disse: — “Você não tira os olhos de mim”. — E fez a pergunta: “Não tem medo que os outros desconfiem?”. Aquela conversa foi, para eles, um tormento delicioso. Nonô pensava: — “É um crime o que eu estou fazendo”.

DESTINO

Quando o inevitável aconteceu, ambos tiveram a mesma explicação: “Foi o destino”. Que remorso havia no fundo daquela felicidade! De vez em quando, Nonô a beijava com uma espécie de ódio: — “Você não tem cara disso!”. Ela achava graça: “Disso o quê?”. Nonô ia especificar: — “Cara de adúltera” — mas o pavor à palavra o emudeceu. Suspirou: — “Nada”. E a naturalidade com que ela ia aos encontros, com que se atirava nos seus braços, o aterrava. Tinha a exclamação:

— Mulher é um caso sério. Mas olha! Amâncio não pode saber nunca!

Foi por essa época que Amâncio, que queria um aumento de ordenado, deu para levar o patrão, o dr. Gustavo. Era um senhor, já de idade, que padecia de dois males: a esposa, que lhe amargurava a existência, e uma dispepsia, que era o inferno de suas refeições. Amâncio telefonava para a mulher: “Vou levar o chefe. Faz uma comida gostosa!”. Outra recomendação era a seguinte: “Trate o homem bem, que eu vou entrar com o pedido de aumento”. O homem apareceu uma vez, duas, três, quatro. Por fim, estava lá todas as noites. Praticamente, o dr. Gustavo separara-se da mulher. No segundo ou terceiro jantar em casa de Amâncio, teve um desabafo irreprimível e gemeu:

— Pois eu, minha senhora, não tenho lar! É a dura realidade! 

Lurdinha foi de uma habilidade exemplar; com muita doçura e feminilidade, aproveitou o ensejo:

— Então, por que é que o senhor não vem jantar todos os dias aqui?

Ela fazia, para o patrão do marido, pratos especiais, que não tivessem muita gordura, nem temperos fortes. Vinha lá de dentro, trazendo um prato fundo: — “Essa canjinha o senhor pode comer”. Tantas atenções o envolviam e deslumbravam. No escritório, chamava o Amâncio: — “Seu Amâncio, você tem uma mulher que é um anjo!”. No fim de quinze dias, deu-lhe um aumento. Prometeu-lhe outro para o fim do ano.

O CIUMENTO

Patrão e empregado eram agora íntimos. Dr. Gustavo fazia confidências ao Amâncio: — “Eu tenho um defeito, sou ciumento, tenho ciúmes de tudo!”. Rilhava os dentes ao dizer isso; e foi mais além: — “Te juro que, por ciúmes, sou capaz de dar tiro!”. Impressionado, o Amâncio ia para casa contar para a mulher: “O patrão não é sopa!”. Quem não gostava era o Nonô. Queixava-se amargo e ressentido à pequena: — “Esse patrão do teu marido é uma boa besta”. E, um dia, o Amâncio encontra, na sua mesa do escritório, um envelope. Abre e toma um choque: era uma carta anônima. Leu e releu; e guardou aquilo. Mas as palavras estavam guardadas no seu cérebro: — “Você é um idiota muito grande. Sua mulher tem dois. O Nonô e o Gustavo”. Dois dias depois nova carta: “Abre o olho, seu cretino!”. Vieram ainda uma terceira e quarta cartas, com endereço e horário dos encontros de Lurdinha com Nonô e o patrão. Ele, branco e com o coração disparado, rasgava aqueles papeluchos infames em mil pedacinhos.

Um dia, foi espiar, de dentro de um táxi e pelo vidro, o encontro de Nonô e, no dia seguinte, viu o patrão e a pequena entrando no mesmo edifício. Ele não disse nada, nem soube o que fazer. Passou uns quinze dias com o problema na cabeça. Quando observavam sua tristeza indisfarçada, desculpava-se: “Estou indisposto”. Um dia, porém, saiu animado para o escritório e entrou no gabinete do patrão. Foi direto ao assunto: — “Doutor fulano, eu acho que minha mulher me engana”.

O outro pulou da cadeira: — “Mas como?”. E ele: — “Tenho provas, doutor fulano”. Baixou a voz e concluiu: — “Com o meu próprio irmão”. O patrão estava roxo; fez a pergunta: — “Tem certeza?”. E Amâncio: — “Absoluta!”. Deu detalhes, forneceu hora e endereços. E, por fim, saturado de tanta infâmia, arriou numa cadeira e soluçou como um menino. Em meio do pranto, teve um repelão feroz e inofensivo: “Eu se fosse homem, se tivesse vergonha na cara, matava esse cachorro”. O dr. Gustavo não esboçou um gesto, não disse uma palavra.

Nessa noite, antes de dormir, Amâncio fez um comentário enigmático para a mulher: — “Eu acho que um sujeito que tira a mulher dos outros devia morrer como um cão!”.

No dia seguinte, quando Nonô vai entrando no edifício com Lurdinha pelo braço, ouve um “psiu”. Vira-se instintivamente e vê, então, a poucos metros, o dr. Gustavo. Este empunha um revólver e atira uma vez, duas, três, quatro vezes. Nonô tentou correr, escapar, mas, atingido mortalmente, foi cair adiante. Teve breve agonia, e morreu ali mesmo, de face voltada para o alto do edifício.
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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

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