terça-feira, 13 de setembro de 2011

O professor bonito

Ia passando, com a pasta debaixo do braço, quando a coleguinha a chamou. Pergunta:

— Viste o novo professor?

— Que tal?

A outra baixou a voz, estalando a língua:

— Bacanérrimo!

— Moço?

— Mocíssimo!

— Oba!

Mas já vinha o bonde de Irma, que era o Aguiar-Fábrica. A pequena teve que se despedir: “Vai lá em casa. Não deixa de ir, ouviste?”. Resposta: “OK”. E Irma, sentada ao lado de uma senhora em estado interessante, fez toda a viagem pensando nesse professor jovem e desconhecido. Já o imaginava um tipo cinematográfico, indescritível.

À noite, Galatéia (chamava-se Galatéia) foi visitá-la, com novas e profusas informações. Descreveu-o da cabeça aos pés e anuncia, impressionadíssima:

— Tem olhos azuis.

— No duro?

— Pois é, pois é.

FIGURINHA

O nome foi o tiro de misericórdia. Quando Irma soube que se chamava João Carlos, experimentou um arrepio na carne e na alma. Depois que Galatéia foi embora, ela ficou, em casa, no quarto, repetindo de si para si em todos os tons: “João Carlos, João Carlos”. Dir-se-ia que era este o nome mais bonito da Terra. De noite sonhou, várias vezes, com o novo professor. Ao acordar, seu primeiro pensamento foi para esse homem que nunca vira.

Levanta-se, enfia os pés nas chinelinhas e sente uma dor na altura do pulmão. Era a gripe. Os outros sintomas se patentearam imediatamente: nariz tomado, febre, tosse, cabeça pesada e, segundo sua expressão textual, “gosto de guarda-chuva” na boca. Teve que faltar ao colégio. Durante uma semana interminável, ficou em casa, de cama.

Felizmente, Galatéia ia lá, todos os dias, com os boatos mais desvairados. E, pelo que ela contava, estava grassando no colégio uma paixão coletiva pelo diabo do professor. Irma, debaixo dos lençóis, esbugalhou os olhos:

— Batata?

E a outra:

— Palavra de honra!

Galatéia citou umas dez pequenas, de quinze, dezesseis, dezessete anos, que estavam malucas pelo homem. Súbito, Irma indaga: “Casado?”. Galatéia pisca o olho: “Solteiro!”. E acrescenta:

— Pelo menos, não usa aliança!

Irma esfrega as mãos, transfigurada:

— Viva!

AMOR

Durante os sete dias de gripe, acontecera o seguinte: apaixonara-se pelo desconhecido João Carlos. Conhecia-o por informação, por referência. Mas isto bastou para deflagrar, na sua alma de adolescente (tinha dezesseis anos), uma verdadeira crise. Quando voltou para o colégio, chamou Galatéia num canto. Sem mais aquela, avisou:

— Pra teu governo: ele é meu, tem de ser meu, há de ser meu.

A outra ainda avisou:

— Mas olha que tem gente assim dando em cima dele.

Irma achou até graça:

— Não interessa! E toma nota!

Pouco depois, Irma vê, pela primeira vez, o professor João Carlos. Tudo a encantou nele, inclusive uma falta de dente. E era, de fato, uma figurinha, vestido em tecnicolor, com camisa de uma cor, sapato de outra, paletó de uma terceira. Finda a aula, Galatéia veio, sôfrega, colher suas impressões:

— Que tal?

Foi sumária:

— Espetacular!

Três dias depois, Irma chega ao colégio e encontra as colegas em polvorosa. Perguntaram: “Sabes da última?”. Recebe a notícia:

— Casado. O homem é casado.

Não disse uma palavra. Afastou-se, com os lábios cerrados. Mas o fato é que, por dentro, tinha vontade de chorar, gritar, espernear. Na saída, explodiu com a sua confidente Galatéia. Não tinha nenhum direito àquele homem, evidentemente. Como as outras, era uma simples aluna. Fosse como fosse, doeu-se com a informação. Sentiu-se como que traída. Lado a lado com Galatéia, pela calçada, desabafou:

— Que cretinão!

E a outra:

— Caso sério, caso sério!

Irma trinca as palavras nos dentes:

— Mas ele há de me pagar.

Pagar o quê? A própria Irma não saberia dizê-lo. A verdade é que sentia uma raiva sem razão, obtusa, uma vontade de bater nesse homem de olhar azul, olhar que ela não conseguia esquecer.

GALATÉIA

Galatéia trouxera a notícia e a espalhara. No dia seguinte, ela aparece com outra novidade: a esposa do João Carlos ia ter neném. Desta vez, Irma perdeu a fala. Recupera-se e indaga: “Você viu?”. Galatéia foi categórica:

— Vi.

Perguntaram:

— Bonita?

Foi vaga:

— Mais ou menos.

Insistiram. E, então, Galatéia teve que dizer se era loura, morena, bem vestida ou não. Fez a descrição. Súbito, alguém pergunta: “Explica uma coisa: por que é que ele não usa aliança?”. Todos os olhares se voltaram para Galatéia. Ela parece perturbada: “Isso é lá com ele”. Então, alguém insinua:

— E se tudo isso for golpe teu? Potoca?

Zangou-se:

— Ora, não amola! Golpe por quê? Pra quê? Tenho nada com isso! Que graça!

De noite, Irma telefona para Galatéia: “Queres saber de uma?”. Olha para os lados e baixa a voz:

— Não vou desistir do João Carlos coisa nenhuma. O homem casado pode separar-se, desquitar-se ou ficar viúvo.

Galatéia faz espanto:

— Mas eles se dão muito bem, se gostam muito!

E a outra:

— Ninguém sabe o dia de amanhã. Não é o primeiro que fica viúvo!

A MENTIROSA

E, de fato, vinha sonhando, dia e noite, com a possibilidade mais que remota de uma viuvez providencial. Estaria tudo resolvido se a outra morresse, talvez de parto. Uma tarde, vem passando por uma sorveteria da rua da Carioca, quando julga ver, lá dentro, um casal conhecido. Volta e, sem entrar, identifica o homem e a mulher: Galatéia e o professor João Carlos!

A princípio não compreende. Só em casa, com a cabeça mais fria, julgou perceber toda a verdade. E pensa: “Cínica, cínica!”. Galatéia mentira para afastar as outras, para ficar sozinha. Repetia para si mesma: “É isso! Só pode ser isso!”.
Numa febre de corpo e de alma, Irma passa a noite em claro, chorando de raiva; no colégio, avisa a Galatéia: “Preciso conversar contigo!”. Saem juntas, depois das aulas. E, então, fora de si, Irma começa:

— Sua mentirosa! Ele não é casado, nunca foi casado! Você tapeou a mim, às outras, todo mundo! Mas deixa estar que eu te pego!

Atônita, a outra protesta: “É casado, sim! Eu conheço a mulher dele! Vai ter neném!”. Olha em torno e... põe a mão no braço de Irma; com a cabeça, indica: “Espia, espia!”.

Irma olha. Do outro lado da calçada, em cima do meio-fio, vê uma senhora, em estado interessante, que espera a vez de atravessar a rua. Galatéia baixa a voz: “É ela! É a mulher do João Carlos!”. Espantada, Irma faz seus cálculos: “Oitavo mês, talvez o nono...”.

Era uma rua de mão e contramão, de tráfego muito intenso. E aquela senhora esperava que diminuísse o movimento de veículos. Sem uma palavra, Irma atravessa a rua, com a agilidade dos seus dezesseis anos. Aproxima-se: “Quer que eu ajude? Eu ajudo a senhora a atravessar...”.

Então, aquela mulher que estava por dias aceitou, com um bom sorriso. De braço, com a menina de colégio, está atravessando. Súbito, Galatéia grita do outro lado da rua. Irma só teve tempo de desvencilhar-se de sua companheira. Mas esta, menos ligeira e menos feliz, foi apanhada, em cheio, arrastada.

Do colégio, saem professores e alunos, inclusive João Carlos, atraídos pelo desastre. João Carlos vai espiar, com muitos outros, e volta, com uma piedade trivial: “Muito desagradável”. Só.

Irma, que espiava, com seus olhos de assombro, vira-se para Galatéia. Esta, pálida, balbucia: “Eu menti. Não é mulher dele, não... Fiquei sem jeito e menti...”.

Então, aconteceu o seguinte: Irma cai de joelhos na calçada, e grita como uma doida:

— Eu matei pensando que fosse a mulher dele! Pensando que fosse o filho dele! — E batia no peito: — Eu a empurrei debaixo do caminhão!
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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

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