Tempos atrás, a filha, então com quinze anos, irrompera no seu escritório:
— É verdade o que me contaram, papai?
Tércio ergueu-se da cadeira giratória, fez a volta da mesa e veio falar
com a garota, face a face. Ela continuou, com o lábio inferior tremendo:
— É verdade que mamãe se matou?
Recuou, atônito.
— Quem?
E ela:
— Mamãe. É verdade que ela se matou? É verdade que o senhor obrigou
minha mãe a se matar? Responda, papai! Quero saber! É verdade?
Antes de responder, ele, muito pálido, foi fechar a porta do gabinete à
chave. Voltou-se para a filha. Com uma aparente serenidade, que escondia
seu dilaceramento, perguntou: “Quem te disse? Quem te contou?”. Antes,
porém, que Malva abrisse a boca, o velho Tércio mergulhou o rosto entre
as mãos e rebentou em soluços. Sem uma palavra, num misto de fascinação e
de asco, ela viu o pranto do homem que punha acima de tudo e de todos.
Finalmente, ele ergueu o rosto devastado:
— É verdade, sim! Sua mãe se matou, porque eu quis, porque eu mandei!
O SUICÍDIO
Fora criada na lenda piedosa segundo a qual a mãe havia morrido de
parto. Sejam os parentes, sejam os mais íntimos da casa, todos
confirmavam a versão generosa. Eis que, de repente, um telefonema
anônimo e brutal colocara a menina diante da verdade. Correu ao pai e
este confessou. Malva crispou-se de pena e angústia. Apertou, de
encontro ao seio, a cabeça do velho: “Oh, papai!”. E, então, Tércio
passou duas, três horas, com a filha no colo, contando a tragédia de sua
experiência matrimonial. Explica: “Eu sempre te escondi isso, porque
não queria ser cruel com uma morta. Mas já que te contaram...”.
Malva ouviu como espantada, com sofrida curiosidade. Soube que a mãe
fora infiel e que o pai criara o dilema: “Ou tu te matas ou eu te
mato!”. Ele mesmo, com um ódio sóbrio e inapelável, preparou o copo com o
veneno e lhe ofereceu:
— Toma, anda!
Antes de beber, ela balbuciara: “Deus abençoe minha filha”. Malva tinha
sete ou oito anos de vida, só. Tantos anos depois, ao conhecer a
verdade, da boca do próprio pai, quis saber, com uma curiosidade não
isenta de doçura: “Era parecida comigo, papai?”.
Tércio agarra-se à filha; tem um esgar de choro:
— Demais! Parecida demais!
Crispa as mãos num apelo: “Mas não quero que tenhas o mesmo destino! Não quero!”.
OBSESSÃO
A partir deste momento, Malva foi outra. Andou pela casa, procurando nas
gavetas, nas malas, um retrato dessa mãe tão linda e tão infeliz como
uma Inês de Castro. Morrera de amor e isto bastava. Passou vários dias
imersa numa meditação deliciosa. De vez em quando, o pai a surpreendia
diante do espelho, enamorada de si mesma.
Visitas começaram a observar: “Malva está ficando mais mulher, não
está?”. As velhas parentas cochichavam entre si: “É a mãe escrita e
escarrada!”. E, então, Tércio percebeu que mudavam os hábitos da filha
única. Não parava em casa. Vivia com amigas, em festas, cinema, teatro.
Em casa, o telefone não parava: “Malva está?”. Até que, uma tarde, um
velho amigo de Tércio vem procurá-lo. Primeiro, faz a ressalva:
— Olha, fulano: eu não gosto de me meter na vida dos outros. Mas
acontece o seguinte: sou teu amigo, do peito; gosto mais de ti do que de
meus irmãos. Compreendeste?
Pigarreou:
— Toca o bonde.
O outro baixa a voz:
— Tércio, abre o olho.
— Por quê?
— Abre o olho, porque tua filha foi vista, de automóvel, com um homem
casado, sabe onde? Na avenida Niemeyer. O negócio é batata.
Não chorava desde a morte da mulher. E, agora, as lágrimas caíam-lhe dos
olhos, de quatro em quatro. Baixou a cabeça: “Obrigado”.
PAI E FILHA
Quando Malva chegou, muito linda, linda demais, ele a interpelou.
Referiu a denúncia e, na sua cólera contida, quis saber: “É verdade?”. A
princípio, Malva nega, ferozmente. Ele, porém, continua: “Quero a
verdade!”. Acaba explodindo: “Pois é verdade, pronto, é verdade!”. O pai
a contempla, estupefato. Nunca fora tão viva a semelhança entre mãe e
filha. Dir-se-ia a mesma graça frívola e pungente. Fora de si, ele
põe-se a gritar dentro da sala:
— A senhora não me sai mais de casa! Não me põe o pé na rua!
Estava sentada, ergueu-se. Com um brilho cruel nos olhos azuis (tão parecidos com os da que morrera), desafiou o velho:
— Papai, eu tenho um encontro marcado com essa pessoa, amanhã, às quatro
horas. Quero que o senhor saiba: se eu não for, eu me mato, papai, eu
me mato!
Ele não dormiu nada nessa noite. Andou no quarto, de um lado para o
outro, até o amanhecer. Mais tarde, no escritório, não trabalhou. Às
três e meia, bate o telefone; era a filha. Pergunta:
— Posso ir, papai? Está na hora. Posso ir?
Ele faz um esforço sobre si mesmo:
— Não!
Silêncio. E, súbito, ela tem no telefone um riso soluçante, terrível: “O
senhor matou a mãe. Agora vai matar a filha!”. Corta a gargalhada;
novamente serena, diz, calçando as palavras: “Papai, quando o senhor
entrar em casa, vai encontrar o meu cadáver!”. Desliga. O velho perde a
cabeça. Chorando, voa para casa. Diante da filha, é um trapo humano. Diz
apenas:
— Vai, pode ir.
MALUQUINHA
Era verdade, sim, a aventura com o homem casado. Nos dias seguintes, os
parentes vinham falar espavoridos com o velho. Punham as mãos na cabeça:
“Você deixa? Você topa?”. Ele respondia: “Só não quero que minha filha
tenha a sina da mãe. O resto não interessa”. Mas o escândalo foi tão
violento que ele, afinal, tentou descobrir a solução. Conversa com a
filha: “Mas não é nem um casamento no México? No Uruguai?”. Malva o
desiludiu:
— Que esperança, papai! Ele vive até muito bem com a mulher!
Duas ou três vezes, Tércio tentou intervir. Ela, porém, o gelou, com
ameaça: “Olha, papai: já tenho o veneno. O senhor quer que eu me mate
como a mamãe? Quer? É só dizer!”. Fazia o desafio com uma frivolidade
cínica que o aterrava.
Tércio recuava, porque jamais esquecera a que obrigara a matar-se. Até
que, um dia, é procurado por uma senhora em estado interessante. Conta,
chorando: “Sua filha me tirou o marido. Meu filho vai nascer sem pai”.
Não soube o que dizer a essa mulher que ia ser mãe e que estaria no
sétimo ou oitavo mês de gravidez. De noite, chama a filha; tranca-se com
ela no gabinete. Começa a contar a visita que recebera, mas ela o
interrompe: “É verdade, sim. E daí?”. Desafiava-o como das vezes
anteriores. Então, Tércio lembra-se da outra, a que morrera. Levanta-se:
“Eu volto já”. Reaparece, pouco depois, com um copo cheio. Fez a filha
segurar o copo. Põe o revólver em cima da mesa, ao mesmo tempo que cria o
dilema:
— Ou tu bebes isso ou te mato.
Apanhou o revólver e apontou para o coração de Malva. Diante do pai, ela
bebeu até o fim. Depois, largou o copo vazio, que se estilhaçou no
chão.
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terça-feira, 13 de setembro de 2011
O dilema
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