terça-feira, 13 de setembro de 2011

O primeiro pecado

Estavam na sorveteria há meia hora, mais ou menos. Súbito, Irene pede: — “Vê que horas são”. Mário espia o relógio de pulso: — “Seis horas”. Ela tomou um susto: — “Já?”. Apanhou a bolsa, que estava ao lado, em cima da mesa.

— Vamos, porque tenho que chegar antes do meu marido.

Fez espanto:

— Você é casada?

E ela:

— Não sabia?

— Nem desconfiava.

Sorriu:

— Pois sou: — casadíssima.

— Ora veja!

Estava num espanto sincero e profundo. Pagou a despesa, deixou a gorjeta e levantou-se com a garota. Já na calçada, faz a pergunta: — “Cadê a aliança?”.

— Não uso.

Despediram-se ali mesmo, depois de marcar um encontro para o dia seguinte. E, então, ainda impressionadíssimo, ele veio andando a pé, até o bar, onde se encontrava ao cair da tarde com os amigos.

O NAMORO

Era o segundo encontro. Na véspera ele a vira, pela primeira vez, numa fila de ônibus. Enquanto esperavam condução, nasceu o flerte. E o que surpreendeu foi a facilidade. Ela não esboçou nem mesmo uma resistência convencional. Na tarde seguinte, tomavam sorvete juntos na cidade. E só então, acidentalmente, falara no marido. Para Mário, que era um moço ingênuo e tímido, a mulher casada representava uma experiência nova e inquietante. No bar, chamou o Jordão e contou-lhe o caso. Abria os braços: — “Estou com a minha cara no chão!”. Trincando batatas fritas, o Jordão pisca o olho:

— Cuidado!

— Por quê?

Explicou:

— Mulher casada dramatiza muito, compreendeste? Quer fugir, largar o marido, fazer pacto de morte, o diabo!

Mário acreditava na experiência do cinismo do Jordão.

O outro continuava: — “Em todo o caso, vale a pena, porque é uma esposa desiludida”. Pausa, bebe um pouco e completa: — “A esposa desiludida é sempre uma grande mulher”.

— Tu és capaz de me fazer um favor de mãe para filho? De me emprestar o teu apartamento?

E como julgasse perceber no rosto do outro um descontentamento, atalhou:

— Mas é só uma vez!

— Uma vez só?

— Te juro!

— Bem. Assim empresto.

Mário despediu-se, exuberante:

— És uma mãe.

O ROMANCE

Sob a alegação de que nunca namorara uma mulher casada, Jordão o instigou a entrar de sola. Mas o diabo era o seguinte: aquele caso, na vida de Mário, era uma experiência inédita. Ele perguntou a ela:

— Que tal o teu marido?

Ela fez um resumo sublime:

— Inofensivo.

Então, Mário quis ir mais longe. Perguntou, escolhendo as palavras: — “É a primeira vez que você faz isso?”

— A primeiríssima, nunca traí meu marido, sob minha palavra de honra!

— Acredito. — Pigarreia, continuando: — E outra coisa: — houve alguma coisa entre vocês? Vocês brigaram? Ele a maltratou?

Jurou:

— Nunca. Meu marido não faz mal a uma mosca, me trata na palma da mão. Que esperança!

Desconcertado, não sabia o que pensar ou o que dizer: — “Mas, então, para que você faz essas coisas? Não entendo”. Ela passou-lhe um pito: — “Olha, meu bem: — eu não gosto de homem que faz muita pergunta. Eu não estou aqui contigo? Então, pronto!”.

Gaguejou, vermelhíssimo: — “Claro, evidente!”. Caía a noite e estavam em pé, debaixo de uma árvore, numa esquina. Súbito, Irene diz-lhe:

— E já que tu não me beijas... — Ergueu-se na ponta dos pés, apertou o rosto do rapaz entre as mãos e sorveu-lhe a boca num beijo sem fim. Ele sentiu que ela estava mordendo o seu lábio inferior. Quando se desprenderam, Mário, ainda arquejante, teve uma audácia de tímido:

— Tu irias, amanhã, a um lugar assim, assim?

Irene, ofegante, exclamou:

— Como demoraste, puxa! Vou, sim, claro que vou!

Ali mesmo ele apanhou um papelzinho e escreveu o endereço: — “Toma: — é aí. Às nove horas da manhã, nove, ouviu?”.

Estava sujo de batom até a alma.

O PECADO

O horário fora idéia do Jordão. A princípio Mário quisera relutar — “Por que tão cedo?”.

— Mas claro, nenhum marido desconfia da mulher às nove da manhã! Os maridos começam a desconfiar das mulheres depois das duas da tarde!

O raciocínio era válido; e, além disso, Jordão tinha a autoridade de dono do apartamento. Ao deixar a pequena, Mário procura aflito o amigo. Encontrou-o no bar de sempre e estendeu a mão: — “A chave, a chave!”.

Recebeu a chave e a embolsou. Mais tranqüilo, narrou o episódio do beijo, exagerando: — “Quase me arrancou os lábios!”. E exibia os beiços feridos. O Jordão, que já bebera o oitavo chope, sentenciou:

— Das duas, uma! — Ou a mulher é fria ou morde. Sem dentada não há amor possível!

Mário baixa a voz: — “Sabe que estou nervoso? E se ela tiver má impressão de mim?”. Na hora de sair, perguntou ao amigo: — “Ponho perfume?”. O outro admitiu:

— Perfume discreto é bom. Mas vê lá se vai usar loção de gafieira, vê lá!

A CHAVE

Estava tão emocionado que passou a noite em claro, fumando um cigarro atrás do outro. Irene podia ser considerada uma pequena muito interessante. Mas o que o impressionava era o seu estado civil. Amar uma mulher casada parecia-lhe uma delícia completa. Às cinco horas da manhã, estava na banheira. Esfregou-se com um brio sem precedente. E, depois, pôs perfume no peito, nos braços, nos cabelos. Ao apanhar a meia, lembrou-se de passar talco nos pés. Às sete horas, de terno branco, estava no local, nervosíssimo. A última recomendação do Jordão fora a seguinte: — “Primeiro, dá-lhe um beijo no ouvido. Mas olha: — um beijo de estalo”. A obsessão, a idéia fixa do amigo, era a orelha feminina.

Argumentava: — “Há mulheres que só têm sensibilidade nas orelhas!”. Irene chegou às nove e cinco, exatamente. Vinha num estampado leve, juvenil, que a tornava irremediavelmente garota. Antes de se deixar beijar, disse-lhe num alegre desafio:

— Tu és sagrado e és o segundo homem que eu conheço. E não quero sair daqui desiludida!

Naquele momento, Mário não se esqueceu do beijo no ouvido, que o outro preconizara com tanto empenho. Procurou eletrizá-la: — “Olha que eu sinto cócegas!”. Mas o rapaz, no desvario, teimou; e ela, fora de si, dava gargalhadas, que todo o andar havia de escutar. Uma hora e quarenta minutos depois, estava ela diante do espelho, refazendo a pintura dos lábios. Então, Mário, que a contemplava numa espécie de febre, aproximou-se.

— Explica uma coisa: — se você vive bem com o seu marido, se ele não a maltrata, por que fazer isso? Por quê?

Sua curiosidade o dilacerava. Ela acabara de maquilar-se; levantou-se. Face a face com Mário, respondeu, fixando nele os olhos verdes e frios.

— O único homem que tinha me beijado, que eu enfim conhecia, era meu marido. — Pausa e continua: — Quis conhecer outro, fazer uma experiência com outro. Questão de curiosidade.

Mário recuou, lívido.

— Quer dizer que eu sou a experiência? Eu sou a cobaia?

Na sua fúria, segurou-a pelos braços:

— Agora vais dizer, Ouviste? Qual foi o resultado da experiência. Anda, diz!

Respondeu, tranqüilamente, sem medo.

— O pior possível. Você não chega aos pés do meu marido. Foi a primeira e a última vez. De agora em diante, nem você, nem outro idiota põe a mão em cima de mim.

Saiu de lá, sem olhá-lo, e desiludida do pecado. Nos dias que se seguiram, ele a perseguiu como um louco, pelo telefone. Mas, assim que reconhecia a voz, Irene desligava sumariamente. Até que, um dia, deu com a garota na rua do Ouvidor; pôs-se a acompanhá-la. Como ela o repelisse, rosnou: — “Sua mascarada!”. A pequena, então, meteu-lhe a bolsa na cara.
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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

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