terça-feira, 13 de setembro de 2011

O pirralho

Era uma menina muito boazinha, incapaz de fazer mal a uma mosca. E, a rigor, seu grande e talvez único defeito era o seguinte: não gostava de crianças. Ou por outra: não tinha, como ela própria admitia, “paciência”. Dizia das crianças:

— Fazem muito barulho. São muito levadas. Me põem nervosa.

Mesmo os sobrinhos, que eram uns amores, a irritavam. Marita não os deixava em paz, numa marcação de enervar: “Não mexe aí. Vai embora e vê se não enche! Que coisa chata!”. É claro que as mães não gostavam nem um pouquinho; vendo os filhos enxotados. Uma não se continha:

— Você tomou assinatura com meu filho, hein!

E ela:

— Você me desculpe. Mas não posso, não está em mim!

A outra, entredentes, observava:

— Nada como um dia atrás do outro. E você há de ser mãe.

Marita não dizia nada ou enrolava uma desculpa. Mas fazia, para si mesma, a reflexão: “O espeto do casamento é esse negócio de filho”.

Enfim, o tempo foi passando; e, lá um belo dia, eis que Marita está se casando com Clodomir. Dois meses depois, apareceu com umas manifestações esquisitas, inclusive enjôos, náuseas, vertigens. Clodomir, novato dessas situações, telefonou para um médico. Contou ao médico os sintomas, tintim por tintim.
O outro foi lacônico:

— Batata.

JOVEM MÃE

O filho nasceu. Marita ainda não tinha um ano de casada. Dir-se-ia que apanhara gravidez sob protesto. Vivia praguejando:

— Estou pagando todos os meus pecados!

No dia do nascimento, comportou-se muito mal; foi grosseiríssima com a parteira; interrompia os gemidos para esbravejar:

— Vai amolar o boi!

E culminou quando, em certa altura dos acontecimentos, meteu o pé em plena boca da santa senhora. Uma calamidade autêntica. Mas, enfim, bem ou mal, nasceu a criança, aliás, um menino. Ao mesmo tempo que davam no guri o primeiro banho, Marita, exausta, ainda teve ânimo para dizer:

— Nunca mais! Nunca mais!

A INSATISFEITA

A parteira estava com o lábio inchado e um dente amolecido. Mas a sua experiência profissional era variada e a forrava de paciência e misericórdia. Disse que “doente sempre tem razão” etc. etc. Quinze dias depois, Marita já gritava com o filho, fazia verdadeiros escândalos:

— Mas olha só que criança porca!

E impingia a fralda substituída ao marido:

— Toma! Toma! Leva isso daqui, depressa!

Cheirava as próprias mãos, ia lavá-las com sabonete e, não contente, recorria à água-de-colônia. O marido, amargurado com esses exageros, ponderava:

— Afinal de contas, é teu filho, nosso filho!

E ela, espalhafatosa:

— Por acaso a fralda do nosso filho não cheira mal, hein? Que calma!

RELAXADA

Durante dois anos, não puderam ter babá por um motivo muito simples: as finanças do casal não andavam boas. Enquanto não vinha a ama, era o próprio pai quem mudava as fraldinhas do guri. Marita continuava com a mesma intolerância ou pior; e, conforme o caso, fechava as narinas entre dois dedos, numa exclamação:

— Que horror!

Nem sempre, porém, o pai estava em casa e Marita, quisesse ou não quisesse, era obrigada a substituí-lo naquelas funções. Tiro e queda: perdia logo o apetite. Já várias pessoas observavam, à boca pequena, que “aquilo já passava dos limites”, “não era, não podia ser normal”. E a alergia de Marita foi tão intensa que, por fim, sem querer, sem sentir, ela foi relaxando. Passava, às vezes, horas sem mudar a roupa do menino. O marido chegava, ia direto ao berço e o seu primeiro cuidado era examinar a fralda. A exclamação explicava:

— Molhada!

E reclamava que Marita precisava tomar cuidado, o filho poderia se resfriar etc. etc. etc.

E ela:

— Tem dó, que diabo!

INFÂNCIA TRISTE

Então aquele menino foi crescendo, sem nenhum carinho e com assistência apenas paterna. De Marita tinha apenas ralhos, puxões de orelha, blasfêmias, chineladas. Qualquer arte que ele fizesse, já sabe, a mãe trovejava: “Não sei por que esse diabo nasceu!”. Batia, sem dó, numa fúria de alucinada.

— Peste do inferno! Excomungado! Olha que eu te arrebento!

A vizinha, diante dessa dissipação de crueldade, fazia seus comentários: “Peste é ela!”. Tratado em casa a pontapés, o menino, que se chamava Helinho, era um triste, um doente. Quando, aos quatro anos, teve coqueluche, Marita se enfurecia até com os acessos de tosse que o deixavam roxinho. Saltava:

— Pára com essa tosse!

O marido, que adorava o pequeno, explodia por sua vez:

— Sua desalmada! Mãe sem consciência! Olha que Deus te castiga!

E ela:

— Imagine! Rogando praga em mim! Tudo por causa dessa pestinha!

Depois que o ambiente serenava, o pai atormentado chamava o filho, punha-o no colo, apertava sua cabeça de encontro ao seu peito, e só faltava pedir perdão de tê-lo posto no mundo. A coisa se tornou tão grave que as mães da rua acabaram fazendo um espécie de greve. E diziam para os filhos:

— Olha aqui: não te quero na casa do Helinho! Não me põe os pés lá!

A MUDANÇA

E, de repente, sem nenhuma explicação possível, Marita começou a fazer uma escandalosa exceção para uma criança dos seus oito anos que, por sinal, morava no princípio da rua. Era um menino espertíssimo, chamado Simão, e moleque como ele só.

A primeira vez em que foi vista fazendo festas no garoto, rindo com ele, conversando, houve o natural espanto. Houve até um comentário, não sei de quem:

— Hoje vai chover, na certa.

— Por quê?

— Dona Marita tratando bem uma criança, imagine!

De admirar, com efeito. E começou o escândalo: ela não podia ver o Simão que não o chamasse, que não lhe fizesse festas, que não lhe oferecesse doces. Era curioso ver a adulta em longas conversas com o pirralho, como numa equiparação absurda. Se o filho estava perto e queria entrar na conversa, a mãe o escorraçava:

— Vai-te embora, some!

Helinho obedecia, para não levar uns tapas. Marita, cada vez mais entretida com Simão, queria saber de sua vida, se estudava, se fazia muita arte. O pirralho falava da própria mãe, que morrera há anos. Marita, numa curiosidade minuciosa e ardente, pedia detalhes: se ele fora ao enterro, se visitava o túmulo materno, se tinha saudades da morta. Um dia, não se conteve e fez a pergunta:

— Queres me fazer um favor?

— Faço, sim, senhora.

Ela baixou a voz:

— É o seguinte: eu queria que tu me chamasses de mamãe. Chama, não chama? Olha que eu podia ser tua mãe. Está bem?

D. MARITA

E Marita fez mais: de vez em quando, depois do almoço, apanhava Simão, embonecava-se toda e ia à matinê dos cinemas do bairro. E, sobretudo, não perdia uma fita de Tarzã. Nada mais natural ou obrigatório que levasse o próprio filho. Mas não. Dizia para Helinho:

— Eu não te levo porque você tem feito malcriação. Pensa que eu me esqueço?
E não levava nunca, alegando a malcriação imaginária. No dia seguinte, ela ainda discutia com o Simão as situações da fita: “Viste o bofetão que o bandido levou? Eu gostei!”. O marido, quando viu aquele agarramento com o pirralho dos outros, fez espanto:

— O que é que há contigo? Alguma coisa há!

Ela foi ríspida:

— Não me aborrece, não me amola!

O marido, amargo, concluía:

— Certas mulheres não deviam ter filhos.

O MOTIVO

Certo dia, aconteceu o pior: Simão e Helinho se engalfinharam no meio da rua. Marita, que apareceu na janela e viu a briga trivial dos dois meninos quase da mesma idade, veio de casa como uma fera. Em plena rua, deu uma surra tremenda no filho. Vizinhos intervieram, levaram a criança. Alguém rosnou que aquilo era “caso de polícia”. E Marita, atracada a Simão, apertava-o de encontro ao seio, beijava-o num delírio de ternura.

Depois, Helinho veio para casa, cheio de equimoses. Marita prometeu à vizinhança que daria mais no filho naquele dia; e suspirou: “Que vida a minha!”. A criança refugiara-se no quarto, à espera do pai. Este chegou tarde; vinha triste e cansado. Então, Helinho, beijando Clodomir, teve um lampejo de ódio nos olhos azuis. E disse ao ouvido do pai:

— Mamãe vai ao cinema com o pai do Simão! Anda com o pai do Simão de automóvel!

E o Clodomir, que era fraco e tinha paixão pela mulher, ficou muito pálido, o lábio trêmulo, e começou a chorar. Quando, pouco depois, irritada com a demora, Marita apareceu na porta, o pirralho e o adulto uniam suas lágrimas.

Vendo a mulher, Clodomir passou as costas da mão nos olhos:

— Já vou, meu anjo.
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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

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