Era
uma menina muito boazinha, incapaz de fazer mal a uma mosca. E, a
rigor, seu grande e talvez único defeito era o seguinte: não gostava de
crianças. Ou por outra: não tinha, como ela própria admitia,
“paciência”. Dizia das crianças:
— Fazem muito barulho. São muito levadas. Me põem nervosa.
Mesmo os sobrinhos, que eram uns amores, a irritavam. Marita não os
deixava em paz, numa marcação de enervar: “Não mexe aí. Vai embora e vê
se não enche! Que coisa chata!”. É claro que as mães não gostavam nem um
pouquinho; vendo os filhos enxotados. Uma não se continha:
— Você tomou assinatura com meu filho, hein!
E ela:
— Você me desculpe. Mas não posso, não está em mim!
A outra, entredentes, observava:
— Nada como um dia atrás do outro. E você há de ser mãe.
Marita não dizia nada ou enrolava uma desculpa. Mas fazia, para si
mesma, a reflexão: “O espeto do casamento é esse negócio de filho”.
Enfim, o tempo foi passando; e, lá um belo dia, eis que Marita está se
casando com Clodomir. Dois meses depois, apareceu com umas manifestações
esquisitas, inclusive enjôos, náuseas, vertigens. Clodomir, novato
dessas situações, telefonou para um médico. Contou ao médico os
sintomas, tintim por tintim.
O outro foi lacônico:
— Batata.
JOVEM MÃE
O filho nasceu. Marita ainda não tinha um ano de casada. Dir-se-ia que apanhara gravidez sob protesto. Vivia praguejando:
— Estou pagando todos os meus pecados!
No dia do nascimento, comportou-se muito mal; foi grosseiríssima com a parteira; interrompia os gemidos para esbravejar:
— Vai amolar o boi!
E culminou quando, em certa altura dos acontecimentos, meteu o pé em
plena boca da santa senhora. Uma calamidade autêntica. Mas, enfim, bem
ou mal, nasceu a criança, aliás, um menino. Ao mesmo tempo que davam no
guri o primeiro banho, Marita, exausta, ainda teve ânimo para dizer:
— Nunca mais! Nunca mais!
A INSATISFEITA
A parteira estava com o lábio inchado e um dente amolecido. Mas a sua
experiência profissional era variada e a forrava de paciência e
misericórdia. Disse que “doente sempre tem razão” etc. etc. Quinze dias
depois, Marita já gritava com o filho, fazia verdadeiros escândalos:
— Mas olha só que criança porca!
E impingia a fralda substituída ao marido:
— Toma! Toma! Leva isso daqui, depressa!
Cheirava as próprias mãos, ia lavá-las com sabonete e, não contente,
recorria à água-de-colônia. O marido, amargurado com esses exageros,
ponderava:
— Afinal de contas, é teu filho, nosso filho!
E ela, espalhafatosa:
— Por acaso a fralda do nosso filho não cheira mal, hein? Que calma!
RELAXADA
Durante dois anos, não puderam ter babá por um motivo muito simples: as
finanças do casal não andavam boas. Enquanto não vinha a ama, era o
próprio pai quem mudava as fraldinhas do guri. Marita continuava com a
mesma intolerância ou pior; e, conforme o caso, fechava as narinas entre
dois dedos, numa exclamação:
— Que horror!
Nem sempre, porém, o pai estava em casa e Marita, quisesse ou não
quisesse, era obrigada a substituí-lo naquelas funções. Tiro e queda:
perdia logo o apetite. Já várias pessoas observavam, à boca pequena, que
“aquilo já passava dos limites”, “não era, não podia ser normal”. E a
alergia de Marita foi tão intensa que, por fim, sem querer, sem sentir,
ela foi relaxando. Passava, às vezes, horas sem mudar a roupa do menino.
O marido chegava, ia direto ao berço e o seu primeiro cuidado era
examinar a fralda. A exclamação explicava:
— Molhada!
E reclamava que Marita precisava tomar cuidado, o filho poderia se resfriar etc. etc. etc.
E ela:
— Tem dó, que diabo!
INFÂNCIA TRISTE
Então aquele menino foi crescendo, sem nenhum carinho e com assistência
apenas paterna. De Marita tinha apenas ralhos, puxões de orelha,
blasfêmias, chineladas. Qualquer arte que ele fizesse, já sabe, a mãe
trovejava: “Não sei por que esse diabo nasceu!”. Batia, sem dó, numa
fúria de alucinada.
— Peste do inferno! Excomungado! Olha que eu te arrebento!
A vizinha, diante dessa dissipação de crueldade, fazia seus comentários:
“Peste é ela!”. Tratado em casa a pontapés, o menino, que se chamava
Helinho, era um triste, um doente. Quando, aos quatro anos, teve
coqueluche, Marita se enfurecia até com os acessos de tosse que o
deixavam roxinho. Saltava:
— Pára com essa tosse!
O marido, que adorava o pequeno, explodia por sua vez:
— Sua desalmada! Mãe sem consciência! Olha que Deus te castiga!
E ela:
— Imagine! Rogando praga em mim! Tudo por causa dessa pestinha!
Depois que o ambiente serenava, o pai atormentado chamava o filho,
punha-o no colo, apertava sua cabeça de encontro ao seu peito, e só
faltava pedir perdão de tê-lo posto no mundo. A coisa se tornou tão
grave que as mães da rua acabaram fazendo um espécie de greve. E diziam
para os filhos:
— Olha aqui: não te quero na casa do Helinho! Não me põe os pés lá!
A MUDANÇA
E, de repente, sem nenhuma explicação possível, Marita começou a fazer
uma escandalosa exceção para uma criança dos seus oito anos que, por
sinal, morava no princípio da rua. Era um menino espertíssimo, chamado
Simão, e moleque como ele só.
A primeira vez em que foi vista fazendo festas no garoto, rindo com ele,
conversando, houve o natural espanto. Houve até um comentário, não sei
de quem:
— Hoje vai chover, na certa.
— Por quê?
— Dona Marita tratando bem uma criança, imagine!
De admirar, com efeito. E começou o escândalo: ela não podia ver o Simão
que não o chamasse, que não lhe fizesse festas, que não lhe oferecesse
doces. Era curioso ver a adulta em longas conversas com o pirralho, como
numa equiparação absurda. Se o filho estava perto e queria entrar na
conversa, a mãe o escorraçava:
— Vai-te embora, some!
Helinho obedecia, para não levar uns tapas. Marita, cada vez mais
entretida com Simão, queria saber de sua vida, se estudava, se fazia
muita arte. O pirralho falava da própria mãe, que morrera há anos.
Marita, numa curiosidade minuciosa e ardente, pedia detalhes: se ele
fora ao enterro, se visitava o túmulo materno, se tinha saudades da
morta. Um dia, não se conteve e fez a pergunta:
— Queres me fazer um favor?
— Faço, sim, senhora.
Ela baixou a voz:
— É o seguinte: eu queria que tu me chamasses de mamãe. Chama, não chama? Olha que eu podia ser tua mãe. Está bem?
D. MARITA
E Marita fez mais: de vez em quando, depois do almoço, apanhava Simão,
embonecava-se toda e ia à matinê dos cinemas do bairro. E, sobretudo,
não perdia uma fita de Tarzã. Nada mais natural ou obrigatório que
levasse o próprio filho. Mas não. Dizia para Helinho:
— Eu não te levo porque você tem feito malcriação. Pensa que eu me esqueço?
E não levava nunca, alegando a malcriação imaginária. No dia seguinte,
ela ainda discutia com o Simão as situações da fita: “Viste o bofetão
que o bandido levou? Eu gostei!”. O marido, quando viu aquele
agarramento com o pirralho dos outros, fez espanto:
— O que é que há contigo? Alguma coisa há!
Ela foi ríspida:
— Não me aborrece, não me amola!
O marido, amargo, concluía:
— Certas mulheres não deviam ter filhos.
O MOTIVO
Certo dia, aconteceu o pior: Simão e Helinho se engalfinharam no meio da
rua. Marita, que apareceu na janela e viu a briga trivial dos dois
meninos quase da mesma idade, veio de casa como uma fera. Em plena rua,
deu uma surra tremenda no filho. Vizinhos intervieram, levaram a
criança. Alguém rosnou que aquilo era “caso de polícia”. E Marita,
atracada a Simão, apertava-o de encontro ao seio, beijava-o num delírio
de ternura.
Depois, Helinho veio para casa, cheio de equimoses. Marita prometeu à
vizinhança que daria mais no filho naquele dia; e suspirou: “Que vida a
minha!”. A criança refugiara-se no quarto, à espera do pai. Este chegou
tarde; vinha triste e cansado. Então, Helinho, beijando Clodomir, teve
um lampejo de ódio nos olhos azuis. E disse ao ouvido do pai:
— Mamãe vai ao cinema com o pai do Simão! Anda com o pai do Simão de automóvel!
E o Clodomir, que era fraco e tinha paixão pela mulher, ficou muito
pálido, o lábio trêmulo, e começou a chorar. Quando, pouco depois,
irritada com a demora, Marita apareceu na porta, o pirralho e o adulto
uniam suas lágrimas.
Vendo a mulher, Clodomir passou as costas da mão nos olhos:
— Já vou, meu anjo.
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terça-feira, 13 de setembro de 2011
O pirralho
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