terça-feira, 13 de setembro de 2011

Vincent Price

Vincent Leonard Price Jr. (St. Louis, 27 de maio de 1911 — Los Angeles, 25 de outubro de 1993), veio de uma família rica, cercada por um ambiente cultural acima dos padrões e envolta em tradições antigas à moda europeia. Começou no teatro, depois no cinema onde ficou conhecido por contracenar em filmes de suspense e terror.

Sua trajetória é longa e inclui clássicos como "Museu de Cera" (1953), "A Mosca da Cabeça Branca" (1958), "A Casa Amaldiçoada" (1958), "Força Diabólica" (1959), além do criativo ciclo de adaptações de obras de Edgar Allan Poe dirigidas por Roger Corman na década de 60, como "O Solar Maldito" (1960), "Mansão do Terror" (1961), "Muralhas do Pavor" (1962), "O Castelo Assombrado" (1963), entre outros que preencheram essa fase fecunda do ator.

Nos anos 70, porém, viriam mais algumas obras que tornaram sua filmografia ainda mais rica, como "O Grito da Feiticeira" (1970), "O Abominável Dr. Phibes" (1971), "A Câmara de Horrores do Abominável Dr. Phibes" (1972), "As Sete Máscaras da Morte" (1973), "A Casa do Terror" (1974), entre muitos outros (neste último, ao lado do "cavalheiro do terror" Peter Cushing, Price faz deliciosas e divertidas brincadeiras com a própria carreira, numa autoparódia clássica.

Em 1975, participou do disco Welcome To My Nightmare, do cantor Alice Cooper, que sempre foi fã declarado do lendário ator. Ele gravou uma narração para faixa The Black Widow. Participou do especial de TV de Alice Cooper, que foi inspirado nas letras do disco.

Na década de 80 se destacou em "Mansão da Meia Noite" (1983), que reúne, num só fôlego, Peter Cushing, John Carradine, Vincent Price e Christopher Lee. Esse filme, repleto de clichês e situações previsíveis, na verdade foi uma espécie de homenagem a esses atores que são a própria história do gênero horror no cinema, e foi o único que os uniu numa mesma produção.

Nos anos 80, ficou conhecido do grande público por conta de duas participações muito especiais no mundo da música: Uma delas, na introdução de um dos maiores sucessos da banda inglesa de heavy metal, Iron Maiden: "The Number of the Beast"; a outra, a mais famosa, ao fechar com brilhantismo um dos grandes clássicos do cantor estadunidense Michael Jackson, "Thriller".

Participou também como narrador de vários filmes, seriados e curtas, como The Devil's Triangle (1974), Faerie Tale Theatre (1982), Vincent (1982) e Tiny Toon Adventures (1991). Seu último filme foi Edward Mãos de Tesoura(1990), o qual contracenou com Johnny Depp.

Três anos depois, já com 82 anos, veio à falecer de câncer no pulmão.

Vincent Price

(por Renato Rosatti)

Em 26 de outubro de 1993, o cinema de horror perdeu um dos seus maiores artistas, o ator Vincent Price, que morreu aos 82 anos de idade com problemas de câncer no pulmão. Ao longo de sua bem sucedida carreira cinematográfica, ele realizou mais de 50 filmes, sendo aproximadamente 40 deles no gênero fantástico, e dentro de sua obra encontram-se diversos clássicos absolutos como "Museu de Cera" (1953), "A Mosca da Cabeça Branca" (58), "O Corvo" (63), ou "O Abominável Dr. Phibes" (71).

Price tornou-se um dos grandes expoentes do cinema de horror e ficção científica de todos os tempos e juntou-se ao magnífico time de astros imortais como Bela Lugosi (1882 - 1956), Boris Karloff (1887 - 1969), John Carradine (1906 - 1988), Peter Cushing

(1913 - 1994), e Christopher Lee (1922), este último o único ainda vivo e na ativa, como pudemos conferir nos recentes "A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça", "O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel" e "Star Wars: Episódio II - Ataque dos Clones".

Vincent Price nasceu em 1911 em St. Louis, Missouri, Estados Unidos, sendo filho de uma família empresarial rica. Iniciou sua carreira artística no teatro e teve sua estréia no cinema com "Service Deluxe" (38), seguido por sua estréia no gênero que o consagrou, o horror, com "Tower of London" (39), ao lado de Boris Karloff e Basil Rathbone, onde apareceu brevemente como um personagem que morre afogado em um barril de vinho.

Inicialmente escalado para ser um ator sedutor e romântico, devido a sua inegável classe natural, ele acabou encontrando o seu real espaço como um refinado vilão de horror. Na década de 60, conheceu o lendário produtor/diretor Roger Corman e sua parceria com esse mito da produção "B" fantástica resultou em inúmeros filmes clássicos, a maioria baseados na literatura macabra e sombria de Edgar Allan Poe, como "A Queda da Casa de Usher" (60), "O Poço e o Pêndulo" (61), "Muralhas do Pavor" (62), "O Corvo" (63), este baseado no célebre poema homônimo e com a participação de Jack Nicholson em início de carreira, "A Máscara Mortal" (64), "The Tomb of Ligeia" (64), e "O Ataúde do Morto-Vivo" (69), este sendo o primeiro trabalho ao lado de Christopher Lee.

Em 1963, também com Roger Corman, Price fez o primeiro filme baseado na literatura indizível de Howard Philips Lovecraft, com "O Castelo Assombrado" (The Haunted Palace), inspirado na famosa história "O Caso de Charles Dexter Ward", que faz parte do universo ficcional dos "Mitos de Cthulhu".

Vincent Price também interpretou, ao longo de sua carreira, inúmeros cientistas loucos em meio as suas invenções e experiências macabras, como podemos ver, entre outros, no divertidíssimo e típico sessão da tarde "Robur, o Conquistador do Mundo" (61), com roteiro do especialista Richard Matheson baseado em obra de Julio Verne, onde fez um pacifista que inventa uma poderosa fortaleza voadora em pleno 1868, com o objetivo de destruir os armamentos militares da época, acabando assim com as guerras a força, e passando com isso a ser ele o vilão da história.

No início da década de 70 o ator associou sua imagem ao psicopata desfigurado Dr. Phibes, numa série de 2 filmes clássicos dirigidos por Robert Fuest, "O Abominável Dr. Phibes" (71) e "A Câmara de Horrores do Abominável Dr. Phibes" (72). Ele interpretou um aristocrático "serial killer" que dizimava suas vítimas com classe e inteligência singulares, mostrando como deve ser exercido esse nobre ofício a outros psicopatas inferiores comoJason Voorhees ("Sexta-Feira 13") ou Michael Myers("Halloween").

Outro filme dentro desse estilo, e um dos mais preferidos pessoalmente por Price, foi "As Sete Máscaras da Morte" (73), onde fez um ator shakespereano que simula suicídio para poder se vingar de seus algozes críticos, chacinando-os com maestria e sutileza.

Apesar de sua imagem macabra e necrofílica no cinema, poucos fãs sabem mas Price foi na vida real um "expert" colecionador de obras de arte e um famoso mestre "gourmet", publicando inclusive vários livros sobre arte e culinária, e sendo muito respeitado dentro desse meio.

Suas performances como vilão de horror são impagáveis e seu estilo irônico e humorístico pode ser apreciado em obras primas do humor negro como "Muralhas do Pavor" (62), "O Corvo" (63) e "Farsa Trágica" (63), contracenando com atores de um nível de Peter Lorre (engraçadíssimo), Boris Karloff e Basil Rathbone, que juntos foram responsáveis por várias das mais divertidas sequências de toda a história do cinema de horror com elementos de humor. Como em "Farsa Trágica", na cena onde Price (um dono de funerária a caminho da falência) tenta envenenar Rathbone (proprietário do imóvel o qual Price está atrasado com o aluguel há meses).

Price teve passagens marcantes também pela televisão, como na série "Batman" (1966), interpretando o impagável vilão "Cabeça de Ovo" ou como o apresentador da série "Mystery Theatre" por vários anos. E emprestou sua voz cavernosa para, entre outros, um discurso de horror no videoclip "Thriller" de Michael Jackson, onde o popular cantor se transformou em lobisomem numa noite de lua cheia (sempre o velho clichê...).

A partir dos anos 80 suas participações foram se tornando cada vez mais raras e escassas, e geralmente sua presença, mesmo que pequena, é que salvava as produções infinitamente inferiores às das décadas anteriores. O destaque desse período foi "A Mansão da Meia-Noite" (83), principalmente por ser o único filme na história a reunir os monstros sagrados Price, Christopher Lee, Peter Cushing e John Carradine juntos, e "Banho de Sangue na Casa da Morte" (85), uma comédia onde Price interpretou um sinistro satanista envolvido em rituais sangrentos.

Seu último trabalho foi com a belíssima fantasia "Edward Mãos de Tesoura" (90), de Tim Burton, onde interpretou o que de melhor ele fazia em sua carreira: um excêntrico cientista "louco" recluso em sua enorme e gótica mansão. Aqui ele "cria" um jovem garoto (Johnny Depp), mas morre antes de substituir as tesouras que lhe servem de mãos.

Price aparece em apenas magistrais 5 minutos e foi o suficiente para um merecido encerramento com chaves de ouro à sua extraordinária carreira de mais de 50 anos, entre teatro, televisão e cinema. Vincent Price permanecerá imortal através de seus fascinantes e incontáveis filmes, e inesquecível por suas irônicas interpretações sempre lembrando lordes aristocráticos com sua classe única, além é claro, do seu imponente e inconfundível vozeirão gutural, eternamente ligado aos seus macabros personagens do cinema. Caracterizações que foram alguns dos melhores vilões da história do horror. Price não morreu e seu fantasma continuará vagando entre nós através de seus filmes de puro entretenimento.

Filmografia

1993 - O coração da justiça (Heart of justice, The) (TV)
1990 - Atraída pelo perigo (Catchfire)
1990 - Edward mãos-de-tesoura (Edward scissorhands)
1988 - Um tira do outro mundo (Dead heat)
1987 - Do sussurro ao grito (Offspring, The)
1987 - As baleias de agosto (Whales of august, The)
1986 - Escapes - A fronteira da imaginação (Escapes) (TV)
1986 - O ratinho detetive (Great mouse detective, The) (voz)
1984 - Banho de sangue na casa da morte (Bloodbath at the house of death)
1983 - Mansão da meia-noite (House of the long shadows)
1981 - Freddy the freeloarer's Christmas dinner (TV)
1980 - Clube dos monstros (Monster club, The)
1979 - Scavenger hunt
1975 - Jornada do pavor (Journey into fear)
1974 - Após o transplante, o super-homem (Percy's progress)
1974 - A casa do terror (Madhouse)
1973 - As sete máscaras da morte (Theatre of blood)
1972 - A câmara de horrores do abominável Dr. Phibes (Dr. Phibes rises again)
1971 - What's a nice girl like you...? (TV)
1971 - O abominável Dr. Phibes (Abominable Dr. Phibes, The)
1970 - Cry of the banshee
1969 - Grite, grite outra vez (Scream and scream again)
1969 - Lindas encrencas, as garotas (Trouble with girls, The)
1969 - O ataúde do morto-vivo (Oblong box, The)
1969 - More dead than alive
1968 - Matthew Hopkins: Witchfinder general
1968 - Histórias extraordinárias (Histoires extraordinaires)
1967 - Os chacais (Jackals, The)
1967 - La casa de la mil muñecas
1965 - A máquina de fazer biquinis (Dr. Goldfoot and the bikini machine)
1965 - Monstros da cidade submarina (City under the sea, The)
1965 - O túmulo sinistro (Tomb of Ligeia, The)
1964 - A orgia da morte (Masque of the red death, The)
1964 - Mortos que matam (L'ultimo uomo della Terra)
1964 - Farsa trágica (Comedy of terrors, The)
1963 - Nos domínios do terror (Twice-told tales)
1963 - O castelo assombrado (Haunted palace, The)
1963 - A praia dos amores (Beach party)
1963 - Diário de um louco (Diary of a madman)
1963 - O corvo (Raven, The)
1962 - A torre de Londres (Tower of London)
1962 - Convicts 4
1962 - Muralhas do pavor (Tales of terror)
1962 - Vício que mata (Confessions of an opium eater)
1961 - A mansão do terror (Pit and the pendulum)
1961 - Robur, o conquistador do mundo (Master of the world)
1960 - Three musketeers, The (TV)
1960 - O solar maldito (House of Usher)
1959 - Bat, The
1959 - O monstro de mil olhos (Return of the fly)
1959 - Força diabólica (Tingler, The)
1959 - O grande circo (Big circus, The)
1959 - A casa dos maus espíritos (House on haunted hill)
1958 - A mosca da cabeça branca (Fly, The)
1957 - Story of mankind, The
1956 - Os dez mandamentos (Ten commandments, The)
1956 - O rei vagabundo (Vagabond king, The)
1956 - No silêncio de uma cidade (While the city sleeps)
1956 - Serenata (Serenade)
1955 - O filho de Sinbad (Son of Sinbad)
1954 - A máscara do mágico (Mad magician, The)
1954 - A grande noite de Casanova (Casanova's big night)
1954 - Tenho sangue em minhas mãos (Dangerous mission)
1953 - Museu de cera (House of wax)
1952 - O caminho do pecado (Las Vegas story, The)
1951 - Seu tipo de mulher (His kind of woman)
1951 - Adventures of Captain Fabian
1950 - Curtain call at Cactus Creek
1950 - Champagne for Caesar
1950 - O barão aventureiro (Baron of Arizona, The)
1949 - Bagdad
1949 - Lábios que escravizam (Bride, The)
1948 - Os três mosqueteiros (Three musketeers, The)
1948 - Legião sinistra (Rogues' regiment)
1948 - Às voltas com fantasmas (Bud Abbott Lou Costello meet Frankenstein) (voz)
1948 - Up in Central Park
1947 - Rosas trágicas (Moss rose)
1947 - Noite eterna (Long night, The)
1947 - Uma aventura arriscada (Web, The)
1946 - O solar de Dragonwyck (Dragonwyck)
1946 - Choque (Shock)
1945 - Amar foi minha ruína (Leave her to heaven)
1945 - Czarina (A royal scandal)
1944 - As chaves do reino (Keys of the kingdom, The)
1944 - Laura (Laura)
1944 - Wilson (Wilson)
1944 - A véspera de São Marcos (Eve of St. Mark, The)
1943 - A canção de Bernadette (Song of Bernadette, The)
1940 - O renegado (Hudson's bay)
1940 - O filho dos deuses (Brigham Young - Frontiersman)
1940 - House of the seven gables, The
1940 - O inferno verde (Green hell)
1940 - A volta do homem invisível (Invisible man returns, The)
1939 - A torre de Londres (Tower of London)
1939 - Meu reino por um amor (Private lives of Elizabeth and Essex, The)
1938 - Serviço de luxo (Service de luxe)

Fontes: Wikipédia - A Enciclopédia Livre; Vincent Price; Adoro Cinema - Vincent Price
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O professor bonito

Ia passando, com a pasta debaixo do braço, quando a coleguinha a chamou. Pergunta:

— Viste o novo professor?

— Que tal?

A outra baixou a voz, estalando a língua:

— Bacanérrimo!

— Moço?

— Mocíssimo!

— Oba!

Mas já vinha o bonde de Irma, que era o Aguiar-Fábrica. A pequena teve que se despedir: “Vai lá em casa. Não deixa de ir, ouviste?”. Resposta: “OK”. E Irma, sentada ao lado de uma senhora em estado interessante, fez toda a viagem pensando nesse professor jovem e desconhecido. Já o imaginava um tipo cinematográfico, indescritível.

À noite, Galatéia (chamava-se Galatéia) foi visitá-la, com novas e profusas informações. Descreveu-o da cabeça aos pés e anuncia, impressionadíssima:

— Tem olhos azuis.

— No duro?

— Pois é, pois é.

FIGURINHA

O nome foi o tiro de misericórdia. Quando Irma soube que se chamava João Carlos, experimentou um arrepio na carne e na alma. Depois que Galatéia foi embora, ela ficou, em casa, no quarto, repetindo de si para si em todos os tons: “João Carlos, João Carlos”. Dir-se-ia que era este o nome mais bonito da Terra. De noite sonhou, várias vezes, com o novo professor. Ao acordar, seu primeiro pensamento foi para esse homem que nunca vira.

Levanta-se, enfia os pés nas chinelinhas e sente uma dor na altura do pulmão. Era a gripe. Os outros sintomas se patentearam imediatamente: nariz tomado, febre, tosse, cabeça pesada e, segundo sua expressão textual, “gosto de guarda-chuva” na boca. Teve que faltar ao colégio. Durante uma semana interminável, ficou em casa, de cama.

Felizmente, Galatéia ia lá, todos os dias, com os boatos mais desvairados. E, pelo que ela contava, estava grassando no colégio uma paixão coletiva pelo diabo do professor. Irma, debaixo dos lençóis, esbugalhou os olhos:

— Batata?

E a outra:

— Palavra de honra!

Galatéia citou umas dez pequenas, de quinze, dezesseis, dezessete anos, que estavam malucas pelo homem. Súbito, Irma indaga: “Casado?”. Galatéia pisca o olho: “Solteiro!”. E acrescenta:

— Pelo menos, não usa aliança!

Irma esfrega as mãos, transfigurada:

— Viva!

AMOR

Durante os sete dias de gripe, acontecera o seguinte: apaixonara-se pelo desconhecido João Carlos. Conhecia-o por informação, por referência. Mas isto bastou para deflagrar, na sua alma de adolescente (tinha dezesseis anos), uma verdadeira crise. Quando voltou para o colégio, chamou Galatéia num canto. Sem mais aquela, avisou:

— Pra teu governo: ele é meu, tem de ser meu, há de ser meu.

A outra ainda avisou:

— Mas olha que tem gente assim dando em cima dele.

Irma achou até graça:

— Não interessa! E toma nota!

Pouco depois, Irma vê, pela primeira vez, o professor João Carlos. Tudo a encantou nele, inclusive uma falta de dente. E era, de fato, uma figurinha, vestido em tecnicolor, com camisa de uma cor, sapato de outra, paletó de uma terceira. Finda a aula, Galatéia veio, sôfrega, colher suas impressões:

— Que tal?

Foi sumária:

— Espetacular!

Três dias depois, Irma chega ao colégio e encontra as colegas em polvorosa. Perguntaram: “Sabes da última?”. Recebe a notícia:

— Casado. O homem é casado.

Não disse uma palavra. Afastou-se, com os lábios cerrados. Mas o fato é que, por dentro, tinha vontade de chorar, gritar, espernear. Na saída, explodiu com a sua confidente Galatéia. Não tinha nenhum direito àquele homem, evidentemente. Como as outras, era uma simples aluna. Fosse como fosse, doeu-se com a informação. Sentiu-se como que traída. Lado a lado com Galatéia, pela calçada, desabafou:

— Que cretinão!

E a outra:

— Caso sério, caso sério!

Irma trinca as palavras nos dentes:

— Mas ele há de me pagar.

Pagar o quê? A própria Irma não saberia dizê-lo. A verdade é que sentia uma raiva sem razão, obtusa, uma vontade de bater nesse homem de olhar azul, olhar que ela não conseguia esquecer.

GALATÉIA

Galatéia trouxera a notícia e a espalhara. No dia seguinte, ela aparece com outra novidade: a esposa do João Carlos ia ter neném. Desta vez, Irma perdeu a fala. Recupera-se e indaga: “Você viu?”. Galatéia foi categórica:

— Vi.

Perguntaram:

— Bonita?

Foi vaga:

— Mais ou menos.

Insistiram. E, então, Galatéia teve que dizer se era loura, morena, bem vestida ou não. Fez a descrição. Súbito, alguém pergunta: “Explica uma coisa: por que é que ele não usa aliança?”. Todos os olhares se voltaram para Galatéia. Ela parece perturbada: “Isso é lá com ele”. Então, alguém insinua:

— E se tudo isso for golpe teu? Potoca?

Zangou-se:

— Ora, não amola! Golpe por quê? Pra quê? Tenho nada com isso! Que graça!

De noite, Irma telefona para Galatéia: “Queres saber de uma?”. Olha para os lados e baixa a voz:

— Não vou desistir do João Carlos coisa nenhuma. O homem casado pode separar-se, desquitar-se ou ficar viúvo.

Galatéia faz espanto:

— Mas eles se dão muito bem, se gostam muito!

E a outra:

— Ninguém sabe o dia de amanhã. Não é o primeiro que fica viúvo!

A MENTIROSA

E, de fato, vinha sonhando, dia e noite, com a possibilidade mais que remota de uma viuvez providencial. Estaria tudo resolvido se a outra morresse, talvez de parto. Uma tarde, vem passando por uma sorveteria da rua da Carioca, quando julga ver, lá dentro, um casal conhecido. Volta e, sem entrar, identifica o homem e a mulher: Galatéia e o professor João Carlos!

A princípio não compreende. Só em casa, com a cabeça mais fria, julgou perceber toda a verdade. E pensa: “Cínica, cínica!”. Galatéia mentira para afastar as outras, para ficar sozinha. Repetia para si mesma: “É isso! Só pode ser isso!”.
Numa febre de corpo e de alma, Irma passa a noite em claro, chorando de raiva; no colégio, avisa a Galatéia: “Preciso conversar contigo!”. Saem juntas, depois das aulas. E, então, fora de si, Irma começa:

— Sua mentirosa! Ele não é casado, nunca foi casado! Você tapeou a mim, às outras, todo mundo! Mas deixa estar que eu te pego!

Atônita, a outra protesta: “É casado, sim! Eu conheço a mulher dele! Vai ter neném!”. Olha em torno e... põe a mão no braço de Irma; com a cabeça, indica: “Espia, espia!”.

Irma olha. Do outro lado da calçada, em cima do meio-fio, vê uma senhora, em estado interessante, que espera a vez de atravessar a rua. Galatéia baixa a voz: “É ela! É a mulher do João Carlos!”. Espantada, Irma faz seus cálculos: “Oitavo mês, talvez o nono...”.

Era uma rua de mão e contramão, de tráfego muito intenso. E aquela senhora esperava que diminuísse o movimento de veículos. Sem uma palavra, Irma atravessa a rua, com a agilidade dos seus dezesseis anos. Aproxima-se: “Quer que eu ajude? Eu ajudo a senhora a atravessar...”.

Então, aquela mulher que estava por dias aceitou, com um bom sorriso. De braço, com a menina de colégio, está atravessando. Súbito, Galatéia grita do outro lado da rua. Irma só teve tempo de desvencilhar-se de sua companheira. Mas esta, menos ligeira e menos feliz, foi apanhada, em cheio, arrastada.

Do colégio, saem professores e alunos, inclusive João Carlos, atraídos pelo desastre. João Carlos vai espiar, com muitos outros, e volta, com uma piedade trivial: “Muito desagradável”. Só.

Irma, que espiava, com seus olhos de assombro, vira-se para Galatéia. Esta, pálida, balbucia: “Eu menti. Não é mulher dele, não... Fiquei sem jeito e menti...”.

Então, aconteceu o seguinte: Irma cai de joelhos na calçada, e grita como uma doida:

— Eu matei pensando que fosse a mulher dele! Pensando que fosse o filho dele! — E batia no peito: — Eu a empurrei debaixo do caminhão!
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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
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O primeiro pecado

Estavam na sorveteria há meia hora, mais ou menos. Súbito, Irene pede: — “Vê que horas são”. Mário espia o relógio de pulso: — “Seis horas”. Ela tomou um susto: — “Já?”. Apanhou a bolsa, que estava ao lado, em cima da mesa.

— Vamos, porque tenho que chegar antes do meu marido.

Fez espanto:

— Você é casada?

E ela:

— Não sabia?

— Nem desconfiava.

Sorriu:

— Pois sou: — casadíssima.

— Ora veja!

Estava num espanto sincero e profundo. Pagou a despesa, deixou a gorjeta e levantou-se com a garota. Já na calçada, faz a pergunta: — “Cadê a aliança?”.

— Não uso.

Despediram-se ali mesmo, depois de marcar um encontro para o dia seguinte. E, então, ainda impressionadíssimo, ele veio andando a pé, até o bar, onde se encontrava ao cair da tarde com os amigos.

O NAMORO

Era o segundo encontro. Na véspera ele a vira, pela primeira vez, numa fila de ônibus. Enquanto esperavam condução, nasceu o flerte. E o que surpreendeu foi a facilidade. Ela não esboçou nem mesmo uma resistência convencional. Na tarde seguinte, tomavam sorvete juntos na cidade. E só então, acidentalmente, falara no marido. Para Mário, que era um moço ingênuo e tímido, a mulher casada representava uma experiência nova e inquietante. No bar, chamou o Jordão e contou-lhe o caso. Abria os braços: — “Estou com a minha cara no chão!”. Trincando batatas fritas, o Jordão pisca o olho:

— Cuidado!

— Por quê?

Explicou:

— Mulher casada dramatiza muito, compreendeste? Quer fugir, largar o marido, fazer pacto de morte, o diabo!

Mário acreditava na experiência do cinismo do Jordão.

O outro continuava: — “Em todo o caso, vale a pena, porque é uma esposa desiludida”. Pausa, bebe um pouco e completa: — “A esposa desiludida é sempre uma grande mulher”.

— Tu és capaz de me fazer um favor de mãe para filho? De me emprestar o teu apartamento?

E como julgasse perceber no rosto do outro um descontentamento, atalhou:

— Mas é só uma vez!

— Uma vez só?

— Te juro!

— Bem. Assim empresto.

Mário despediu-se, exuberante:

— És uma mãe.

O ROMANCE

Sob a alegação de que nunca namorara uma mulher casada, Jordão o instigou a entrar de sola. Mas o diabo era o seguinte: aquele caso, na vida de Mário, era uma experiência inédita. Ele perguntou a ela:

— Que tal o teu marido?

Ela fez um resumo sublime:

— Inofensivo.

Então, Mário quis ir mais longe. Perguntou, escolhendo as palavras: — “É a primeira vez que você faz isso?”

— A primeiríssima, nunca traí meu marido, sob minha palavra de honra!

— Acredito. — Pigarreia, continuando: — E outra coisa: — houve alguma coisa entre vocês? Vocês brigaram? Ele a maltratou?

Jurou:

— Nunca. Meu marido não faz mal a uma mosca, me trata na palma da mão. Que esperança!

Desconcertado, não sabia o que pensar ou o que dizer: — “Mas, então, para que você faz essas coisas? Não entendo”. Ela passou-lhe um pito: — “Olha, meu bem: — eu não gosto de homem que faz muita pergunta. Eu não estou aqui contigo? Então, pronto!”.

Gaguejou, vermelhíssimo: — “Claro, evidente!”. Caía a noite e estavam em pé, debaixo de uma árvore, numa esquina. Súbito, Irene diz-lhe:

— E já que tu não me beijas... — Ergueu-se na ponta dos pés, apertou o rosto do rapaz entre as mãos e sorveu-lhe a boca num beijo sem fim. Ele sentiu que ela estava mordendo o seu lábio inferior. Quando se desprenderam, Mário, ainda arquejante, teve uma audácia de tímido:

— Tu irias, amanhã, a um lugar assim, assim?

Irene, ofegante, exclamou:

— Como demoraste, puxa! Vou, sim, claro que vou!

Ali mesmo ele apanhou um papelzinho e escreveu o endereço: — “Toma: — é aí. Às nove horas da manhã, nove, ouviu?”.

Estava sujo de batom até a alma.

O PECADO

O horário fora idéia do Jordão. A princípio Mário quisera relutar — “Por que tão cedo?”.

— Mas claro, nenhum marido desconfia da mulher às nove da manhã! Os maridos começam a desconfiar das mulheres depois das duas da tarde!

O raciocínio era válido; e, além disso, Jordão tinha a autoridade de dono do apartamento. Ao deixar a pequena, Mário procura aflito o amigo. Encontrou-o no bar de sempre e estendeu a mão: — “A chave, a chave!”.

Recebeu a chave e a embolsou. Mais tranqüilo, narrou o episódio do beijo, exagerando: — “Quase me arrancou os lábios!”. E exibia os beiços feridos. O Jordão, que já bebera o oitavo chope, sentenciou:

— Das duas, uma! — Ou a mulher é fria ou morde. Sem dentada não há amor possível!

Mário baixa a voz: — “Sabe que estou nervoso? E se ela tiver má impressão de mim?”. Na hora de sair, perguntou ao amigo: — “Ponho perfume?”. O outro admitiu:

— Perfume discreto é bom. Mas vê lá se vai usar loção de gafieira, vê lá!

A CHAVE

Estava tão emocionado que passou a noite em claro, fumando um cigarro atrás do outro. Irene podia ser considerada uma pequena muito interessante. Mas o que o impressionava era o seu estado civil. Amar uma mulher casada parecia-lhe uma delícia completa. Às cinco horas da manhã, estava na banheira. Esfregou-se com um brio sem precedente. E, depois, pôs perfume no peito, nos braços, nos cabelos. Ao apanhar a meia, lembrou-se de passar talco nos pés. Às sete horas, de terno branco, estava no local, nervosíssimo. A última recomendação do Jordão fora a seguinte: — “Primeiro, dá-lhe um beijo no ouvido. Mas olha: — um beijo de estalo”. A obsessão, a idéia fixa do amigo, era a orelha feminina.

Argumentava: — “Há mulheres que só têm sensibilidade nas orelhas!”. Irene chegou às nove e cinco, exatamente. Vinha num estampado leve, juvenil, que a tornava irremediavelmente garota. Antes de se deixar beijar, disse-lhe num alegre desafio:

— Tu és sagrado e és o segundo homem que eu conheço. E não quero sair daqui desiludida!

Naquele momento, Mário não se esqueceu do beijo no ouvido, que o outro preconizara com tanto empenho. Procurou eletrizá-la: — “Olha que eu sinto cócegas!”. Mas o rapaz, no desvario, teimou; e ela, fora de si, dava gargalhadas, que todo o andar havia de escutar. Uma hora e quarenta minutos depois, estava ela diante do espelho, refazendo a pintura dos lábios. Então, Mário, que a contemplava numa espécie de febre, aproximou-se.

— Explica uma coisa: — se você vive bem com o seu marido, se ele não a maltrata, por que fazer isso? Por quê?

Sua curiosidade o dilacerava. Ela acabara de maquilar-se; levantou-se. Face a face com Mário, respondeu, fixando nele os olhos verdes e frios.

— O único homem que tinha me beijado, que eu enfim conhecia, era meu marido. — Pausa e continua: — Quis conhecer outro, fazer uma experiência com outro. Questão de curiosidade.

Mário recuou, lívido.

— Quer dizer que eu sou a experiência? Eu sou a cobaia?

Na sua fúria, segurou-a pelos braços:

— Agora vais dizer, Ouviste? Qual foi o resultado da experiência. Anda, diz!

Respondeu, tranqüilamente, sem medo.

— O pior possível. Você não chega aos pés do meu marido. Foi a primeira e a última vez. De agora em diante, nem você, nem outro idiota põe a mão em cima de mim.

Saiu de lá, sem olhá-lo, e desiludida do pecado. Nos dias que se seguiram, ele a perseguiu como um louco, pelo telefone. Mas, assim que reconhecia a voz, Irene desligava sumariamente. Até que, um dia, deu com a garota na rua do Ouvidor; pôs-se a acompanhá-la. Como ela o repelisse, rosnou: — “Sua mascarada!”. A pequena, então, meteu-lhe a bolsa na cara.
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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
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