quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Álvares de Azevedo

Álvares de Azevedo (Manuel Antônio Álvares de Azevedo), poeta, contista e ensaísta, nasceu em São Paulo em 12 de setembro de 1831, e faleceu o Rio de Janeiro, RJ, em 25 de abril de 1852. Patrono da Cadeira n. 2 da Academia Brasileira de Letras, por escolha de Coelho Neto.

Era filho do então estudante de Direito Inácio Manuel Álvares de Azevedo e de Maria Luísa Mota Azevedo, ambos de famílias ilustres. Segundo afirmação de seus biógrafos, teria nascido na sala da biblioteca da Faculdade de Direito de São Paulo; averiguou-se, porém, ter sido na casa do avô materno, Severo Mota.

Em 1833, em companhia dos pais, mudou-se para o Rio de Janeiro e, em 40, ingressou no colégio Stoll, onde consta ter sido excelente aluno. Em 44, retornou a São Paulo em companhia de seu tio. Regressa, novamente ao Rio de Janeiro no ano seguinte, entrando para o internato do Colégio Pedro II.

Em 1848 matriculou-se na Faculdade de Direito de São Paulo, onde foi estudante aplicadíssimo e de cuja intensa vida literária participou ativamente, fundando, inclusive, a Revista Mensal da Sociedade Ensaio Filosófico Paulistano.

Entre seus contemporâneos, encontravam-se José Bonifácio (o Moço), Aureliano Lessa e Bernardo Guimarães estes dois últimos suas maiores amizades em São Paulo, com os quais constituiu uma república de estudantes na Chácara dos Ingleses.

O meio literário paulistano, impregnado de afetação byroniana, teria favorecido em Álvares de Azevedo componentes de melancolia, sobretudo a previsão da morte, que parece tê-lo acompanhado como demônio familiar.

Imitador da escola de Byron, Musset e Heine, tinha sempre à sua cabeceira os poemas desse trio de românticos por excelência, e ainda de Shakespeare, Dante e Goethe.

Proferiu as orações fúnebres por ocasião dos enterros de dois companheiros de escola, cujas mortes teriam enchido de presságios o seu espírito. Era de pouca vitalidade e de compleição delicada; o desconforto das "repúblicas" e o esforço intelectual minaram-lhe a saúde.

Nas férias de 1851-52 manifestou-se a tuberculose pulmonar, agravada por tumor na fossa ilíaca, ocasionado por uma queda de cavalo, um mês antes. A dolorosa operação a que se submeteu não fez efeito. Faleceu às 17 horas do dia 25 de abril de 1852, domingo da Ressurreição.

Como quem anunciasse a própria morte, no mês anterior escrevera a última poesia sob o título "Se eu morresse amanhã", que foi lida, no dia do seu enterro, por Joaquim Manuel de Macedo.

Entre 1848 e 1851, publicou alguns poemas, artigos e discursos. Depois da sua morte surgiram as Poesias (1853 e 1855), a cujas edições sucessivas se foram juntando outros escritos, alguns dos quais publicados antes em separado.

As obras completas, como as conhecemos hoje, compreendem: Lira dos vinte anos; Poesias diversas, O poema do frade e O conde Lopo, poemas narrativos; Macário, "tentativa dramática"; A noite na taverna, contos fantásticos; a terceira parte do romance O livro de Fra Gondicário; os estudos críticos sobre Literatura e civilização em Portugal, Lucano, George Sand, Jacques Rolla, além de artigos, discursos e 69 cartas.

Preparada para integrar As três liras, projeto de livro conjunto de Álvares de Azevedo, Aureliano Lessa e Bernardo Guimarães, a Lira dos vinte anos é a única obra de Álvares de Azevedo cuja edição foi preparada pelo poeta. Vários poemas foram acrescentados depois da primeira edição (póstuma), à medida que iam sendo descobertos.

Fonte: Academia Brasileira de Letras www.academia.org.br
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Quem morre descansa

Ela batia à máquina quando Norberto apareceu. Fez a per­gunta:

— Pode-se bater um papinho contigo?

— Quando?

— Depois do serviço?

— OK. E onde?

Ele vacilou: “Olha, eu te espero naquele bar da esquina”. Julinha, com o coração disparado, balbuciou: “Eu estarei lá. Ba­tata”. E não trabalhou mais direito. Findo o expediente, correu no reservado das moças, e espiou-se no espelho; retocou a pin­tura dos lábios e passou pó no nariz; muito lustroso. Norberto a esperava, num canto do bar, com uma garrafa na frente. Deu-lhe a cadeira e requisitou o garçom. Perguntou à pequena:

— Você toma o quê?

Julinha, que não estava passando bem do estômago, pediu: — “Água tônica”. Enquanto o garçom ia e vinha, Norberto foi direto ao assunto: — “Você sabe, não sabe, que eu sou casa­do?”. Suspirou:

— Sei.

E ele:

— Muito bem. Sabe, também, que eu gosto muito de você?

Disse que não tinha certeza, mas desconfiava. Ele insistiu: — “Pois gosto e muito, mais do que você pensa”. E, súbito, fez-lhe a pergunta que a surpreendeu e deixou sem fala: — “Quer casar comigo?”.

A ESPOSA

Durante alguns momentos, ela não soube o que dizer, não soube o que pensar. Balbuciou:

— Quer dizer, queria. Mas como? E sua mulher?

Mas Norberto estava preparado para a pergunta: — “O ne­gócio é o seguinte, meu anjo: minha mulher está muito mal”. E era verdade. A mulher de Norberto era muito franzina, um peito cavado, asmática, tinha uma vida de sacrifício. No inverno, pagava todos os pecados, qualquer resfriado bobo a deixava sem ar e tinha sufocações tremendas. Vivia em casa, estiolando-se, cada dia pior. Há coisa de oito meses, fizera uma radiografia do estômago. Constatara-se a úlcera; e, depois, uma do pulmão que revelara a tuberculose. Chocada com essas variedades de doen­ças, de provações, Julinha deixou escapar a exclamação: — “Que horror!”. Norberto prosseguiu:

— Queres ver uma coisa? Hoje eu a deixei pondo sangue pela boca. E não se sabe se a hemorragia é da úlcera do estôma­go ou do pulmão.

— Coitada!

— O médico já avisou que ela não dura muito. Uns três ou quatro meses. E talvez morra antes, de um colapso. Uma cala­midade. Mas o que eu queria te dizer era o seguinte: tu gostas de mim e eu de ti; e te dou minha palavra que, logo que possa, me casarei contigo. Tu esperas?

Julinha ergueu o rosto e disse, com muita doçura:

— Espero.

O OUTRO

A partir de então, sua vida foi uma espera de todos os dias, horas e minutos. Havia no escritório um outro companheiro in­teressado em conquistá-la. Era o Queiroz. Tomara-se de amo­res pela menina e, muito obstinado, não a deixava em paz. Não fosse a súbita declaração de Norberto, que ela preferia, e talvez tivesse admitido um namoro, a título experimental, com o Quei­roz. Mas Norberto, vendo o assédio do outro, se antecipara. E, no dia seguinte, quando o Queiroz reiterou um antigo convite para um “cineminha”, a garota pôs as cartas na mesa:

— Tem santíssima paciência, mas não pode ser. Eu gosto de outro.

— Não acredito!

E ela: “Te juro”. Como o rapaz teimasse na incredulidade, fez o juramento extremo: “Quero ver minha mãe morta, se não é verdade”. Atônito, ele balbuciou a pergunta: “Mas quem é o cara?”.

— Segredo.

— Ué!

Julinha acabou se irritando: “Além disso, eu não tenho que dar satisfação de minha vida”. O rapaz saiu dali amargo, depois de rosnar: “Esse negócio está me cheirando a homem casado”. E o fato é que, desde então, ele passou a vigiar ferozmente a pequena. Soube que Norberto e Julinha tinham sido vistos, de­pois do serviço, no bar da esquina. Esbravejou:

— Cachorro!

O MARTÍRIO

Sempre que chegava ao emprego, Julinha olhava para a mesa de Norberto. Quando ele não vinha, perguntava a si mesma: “Se­rá que ele não veio porque a mulher dele morreu?”. Corria ao contínuo:

— Quedê seu Norberto?

— Foi tomar café.

Ela sabia então que a outra estava viva. Por causa do con­trole do Queiroz, os dois procuravam disfarçar tanto quanto pos­sível. Com sua lógica de mulher, Julinha ponderava: “Afinal de contas, você é um homem casado e eu sou uma moça de famí­lia”. Por outro lado, o sigilo que era obrigada a manter consti­tuía um elemento de mistério, interesse, excitação. E assim, dias após dias, Julinha acompanhava à distância o martírio da outra. Às vezes, Norberto ia à rua telefonar para ela e dramatizava: “Mi­nha mulher está que é só pele e osso. Não sei como ainda vi­ve”. A princípio, Julinha tinha escrúpulos de esperar e mesmo desejar a morte da infeliz. Mas, com o correr dos dias, o hábito de falar no assunto a sensibilizou. E, um dia, surpreendeu-se a si mesma: “No duro, no duro, me responde. Ela vai até quan­do, mais ou menos?”. Norberto fez os cálculos:

— Uns quinze dias.

Em casa, no quarto, Julinha pôs-se a imaginar:”Quinze dias. Mais uns seis meses etc. Daqui a um ano posso estar casada”. Mas os quinze dias se passaram. E nada. No telefone, ela per­guntou, com uma irritação que procurava dissimular: “Como é, fulano? Você disse quinze dias e quando acaba…”. Do outro lado do fio ele desabafava:

— Pois é. Que espeto! Sabe que eu estou besta com a resis­tência? O médico disse hoje que, assim, nunca viu.

Julinha suspirou: “Paciência. Paciência”. Mas já começava a admitir mesmo que o estado da outra não fosse tão grave as­sim. E, por fim, interpelou Norberto: “Quem sabe se você não está me tapeando?”. Ele jurou que não, deu a palavra de honra. Julinha, deprimida, fez a revelação:

— Olha que eu já estou fazendo despesas com o enxoval. Comprei muita coisa. Veja lá!

Ele, seguro de si e do destino, foi categórico: “Ótimo, óti­mo. Pode ir comprando tudo. É bom, sim. E o vestido de noiva eu faço questão de te dar. Quero um bacana”.

AGONIA

Mais quinze dias e a esposa de Norberto, apesar da úlcera, da tuberculose e da asma, resistia. Ele, desesperado e sentindo que a pequena duvidava, propôs-lhe: “Vamos fazer o seguinte: vou arranjar um pretexto do serviço e te levo lá em casa. Que­res?”. Julinha, que já se julgava vítima de uma mistificação, dis­se: “Pois quero”. No dia seguinte, entrava na casa da rival. E seu estômago se contraiu quando viu a outra no fundo da cama. Era, de fato, um esqueleto. Um esqueleto com um leve, muito leve, revestimento de pele. Parecia incrível que aquela criatura ainda estivesse respirando, ainda vivesse. Na primeira oportu­nidade, Norberto soprou-lhe:

— Não te disse? Batata, meu anjo. É um fenômeno de re­sistência. Qualquer dia, morre.

Coincidiu que o médico aparecesse e, falando com Norber­to e Julinha, foi terminante: “É um milagre, sua mulher já devia estar morta”. Julinha, impressionada, sugeriu: “Deve ser um sa­crifício a vida dessa criatura. Um martírio”. O médico admitiu com a voz cava:

— Natural.

E continuou a espera. Então, pouco a pouco, Julinha se de­sesperou. Começava a admitir na sua meditação que a outra não morresse nunca, que se tornasse definitivamente uma múmia. O Queiroz, teimoso, não cessava o assédio. E, sem querer, ela já o tratava de outra maneira, quase com afeto. Ele era positivo: “Eu me caso contigo em dois meses”. Julinha adotou uma ati­tude que não deixava de ser um estímulo. Disse: “Deixa o bar­co correr”. Dias depois, foi mais longe:

— Te dou a resposta dentro de um mês.

A MORTE

Esperava que, dentro desse prazo, a outra morresse. Pois bem. Passou-se o mês e nada. Perdeu a paciência: “Não interes­sa. Estou bancando a palhaça”. O Queiroz, que contava os dias na folhinha, esperou-a sôfrego: “Como é? Já decidiste?”. Julinha teve um fundo suspiro:

— Já.

— E então?

— Sim.

Combinaram ali mesmo, em voz baixa, tudo. Ele, agitado, queria o máximo de rapidez, e batia sobretudo numa tecla: “Dois meses, no máximo”. Esfregou a mão, feliz, quando soube que Julinha já preparara muita coisa do enxoval. Acabou soprando: “Vem cá um instantinho”. Levou-a ao corredor e deu-lhe um beijo na boca. Voltando ao escritório, saiu de mesa em mesa, anunciando: “Estamos noivos”. Foi uma farra entre os colegas. De repente, bate o telefone: Julinha atende e… Teve um cho­que, quando reconheceu a voz de Norberto. Falando baixo, com a boca encostada no telefone, Norberto anunciava:

— Minha mulher entrou em agonia. Agora é batata. Ques­tão de minutos. Um beijo pra ti. — E desligou.

Por alguns instantes ela não soube o que fazer. Numa ale­gria lancinante, tinha os olhos marejados, já esquecida do com­promisso com o Queiroz. E, quando este veio lhe falar, ela não teve o mínimo tato. Disse-lhe à queima-roupa: — “Olha, nada feito. Você me desculpa” etc. etc.

Ele, branco, ainda insistiu: — “Você não pode fazer isso comigo. Eu não sou nenhum moleque”. Mas quando se con­venceu que a tinha perdido, não teve dúvidas. Era nortista, afundou-lhe o punhal num dos seios. Julinha expirou, ali mes­mo, antes que a assistência chegasse.

Pouco depois, batia o telefone. Era de novo Norberto, que vinha avisar que a esposa morrera, afinal. Mas ninguém, ali, te­ve cabeça para atender. Norberto acabou desistindo. Voltou para junto da esposa morta, com a natural compostura de um viúvo. E fez, para os presentes, o seguinte comentário:

— Quem morre descansa.
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Nelson Rodrigues. A vida como ela é… São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
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quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Um caso perdido

A princípio, a família foi contra:

— Esse sujeito não presta! É um bestalhão! Um conversa-fiada!

Talvez fosse isso e muito mais. Para começar não trabalha­va, nem queria nada com o trabalho. Além disso, bebia, jogava, vivia metido com desclassificados de ambos os sexos, em pago­des espetaculares.

Apontava-se, mesmo, uma fulana, de péssimos antecedentes, que, segundo se dizia, o sustentava. Os parentes de Edgardina tentaram dissuadi-la da paixão inconveniente e es­candalosa:

— Homem é o que não falta. Escolhe outro, escolhe um que valha a pena.

— É de Humberto que eu gosto. Os outros não me inte­ressam.

Amava-o desde menina; e, através dos anos, não achara gra­ça em mais ninguém. Podiam dizer o diabo do rapaz que ela mesma explicava: “Entra por um ouvido, sai pelo outro”. A ri­gor, só ficou impressionada uma vez, uma única vez. Foi quan­do lhe disseram que o namorado vivia às custas da tal fulana. Edgardina saltou: “Mentira! Calúnia!”. Mas, apesar da reação ini­cial, muito veemente, a dúvida ficou. Acabou fazendo ao bem-amado uma pergunta frontal:

— Que negócio é esse que me contaram?

— Que foi?

Ela, sem tirar os olhos dele, disse:

— Que você toma dinheiro de mulher.

A CONFISSÃO

Imprensado pela pequena que, na verdade, era seu primei­ro e grande amor, Humberto teve, diante de si, dois caminhos: ou negar ferozmente ou… Ia negar, em pânico. Mas quando abriu a boca, deu uma coisa nele, uma espécie de heroísmo súbito, quase histérico. De olhos esbugalhados, os beiços trêmulos, transpassou a pequena com a revelação:

— É verdade, sim. Tomo dinheiro de mulher. Sempre tomei.

A menina cobriu-se de uma palidez mortal, como nos ve­lhos romances. Mal pôde suspirar:

— Humberto!

Foi uma cena magnífica e atroz. Ele, que pegara embala­gem, foi até o fim, contou tudo, sem omitir nada. Disse que, sem emprego, sem níquel, aceitava dinheiro de uma, de ou­tra. Batia nos peitos, atirava patadas no assoalho. Por fim, flagelou-se, cruelmente, aos olhos da pequena; chamou-se de “canalha”, “patife”, “caso perdido”. E terminou, num desa­fio frenético:

— Você sabe tudo. E agora pode me cuspir na cara. Cospe! Anda, cospe!

Ofereceu o rosto. E como Edgardina, petrificada, não dis­sesse uma palavra, não esboçasse um gesto, ele caiu em uma crise medonha de choro. Então, a menina, que era um anjo au­têntico, teve uma dessas comoções que não se esquecem, uma dessas piedades incoercíveis. E, se já o amava antes, agora mui­to mais. Aos seus olhos, a confissão do bem-amado o purificara de tudo e de todos. Disse mais:

— Não interessa o que você fez, meu filho. Eu gosto de vo­cê, pronto, acabou-se.

E ele:

— Você é um anjo. Se não fosse você, eu metia uma bala na cabeça, já, imediatamente!

Então, mais calmos, os dois combinaram tudo: data do ca­samento etc. etc. No fim, Edgardina impôs apenas uma condição:

— Você vai me prometer uma coisa.

— O quê?

— Que nunca mais aceita dinheiro de mulher. É tão feio!

— Te juro! Te dou minha palavra de honra!

O CASAMENTO

E, de fato, a partir da confissão, Humberto foi outro ho­mem. Deixou de beber, de jogar e quando entrava num café e vinha o garçom, ele, erguendo o rosto numa espécie de desa­fio às potências do álcool, dizia:

— Água mineral!

E fez mais: devolveu à tal fulana que o sustentara um reló­gio, um anel com suas iniciais, um cinto com fivela de prata, um porta-chaves caríssimo. Rompeu, em termos definitivos, com todas as suas antigas ligações. Os amigos tentavam seduzi-lo:

— Deixa de ser besta!

Mas ele, embora com água na boca, tinha um repelão fu­rioso: “Esse negócio, para mim, acabou. Estou noivo, vou me casar, stop”. Foi uma mudança tão patética que o próprio futu­ro sogro, que era um espírito de porco, se deixou impressio­nar: “Parece que meu genro tomou vergonha”. E o resto da fa­mília em coro:

— Tomara! Tomara!

Dois dias antes do casamento, Humberto ia chegando em casa quando deu de cara com a fulana que o sustentara. A alma caiu-lhe aos pés. Em pânico, olhou para todos os lados: “Imagi­ne, se vissem”. Arrastou-a para um canto discreto; e, lá, discuti­ram, em voz baixa. A mulher fez uma súplica desesperada, que o horrorizou. Insistiu, cravando as unhas nas mãos do rapaz:

— Só essa vez! Só essa vez!

— Você está maluca? Não pode ser! Vou me casar amanhã!

A outra agarrava-se a ele:

— É a despedida, Humberto! — E teimava no argumento: — “Pela última vez!”.

Na verdade, o que a tentava, naquele momento, era o noi­vo alheio, o noivo da outra, na antevéspera do casamento. E ele, que era um fraco diante da mulher em geral, mesmo das feias, mesmo das sem graça, quase sucumbiu àquele assalto no­turno. Lembrou-se, porém, de Edgardina e, fazendo das tripas coração, desprendeu-se histericamente, arremessou-se para den­tro de casa.

Ofegante, descabelado, fechou as portas atrás de si, arriou as trancas. Já então a fulana, do lado de fora, uivava:

— Te dei muito dinheiro, cachorro! Olha, não me troco pela lambisgóia da tua noiva!

Caras espavoridas apareciam em várias janelas. No dia se­guinte, Humberto contou tudinho à noiva. Descobrira que era negócio dizer a verdade e, mesmo, exagerar a verdade. A noi­va, maravilhada com esta sinceridade, deu-lhe um beijo na testa.

O DESTINO

O rapaz não tinha emprego. Mas o sogro foi de uma magnanimidade impressionante. Chamou-o:

— O negócio é o seguinte: para mim, tanto faz que meu genro trabalhe ou deixe de trabalhar. Contanto que trate bem a minha filha.

Dito e feito. Casaram-se e nunca faltou nada naquela casa. Todos os dias, de manhã, Edgardina, da maneira mais delicada e sutil possível, enfiava no bolso da calça do marido uma cédu­la, ora de vinte, ora de cinqüenta, ora de cem mil-réis.

Justiça se faça a Humberto: aceitava a situação com esplên­dida naturalidade. Lá fora, nas esquinas, nos cafés e nas residên­cias, dizia-se o diabo do rapaz. Era chamado de “palhaço”, de “sem-vergonha”, de “sujo”. Edgardina soube; solidarizou-se com o marido:

— Não liga, meu filho. O que eles têm é inveja.

Feliz, realizada, contava para os amigos: — “Bebeto é da seguinte teoria: — entre homem e mulher, não há perversão. Vale tudo!”.

A pequena estava, então, no quinto mês de gravidez. Não deixava o marido fazer nada: ela pagava as contas, dirigia a ca­sa. Dir-se-ia o homem ali dentro. Humberto não queria saber de nada, não assumia responsabilidade alguma, no horror de qualquer iniciativa. Dizia sempre:

— Isso é com minha mulher. Não tenho nada com isso.

Queria sossego. E quando o sogro, com a autoridade de quem corre com as despesas, exigiu um neto, Humberto relu­tou. Teve medo do parto, do filho; confidenciou com a mulher: “As crianças são muito levadas. Dão um trabalho danado”. Mas o sogro fez pé firme; queria um neto de qualquer maneira. In­capaz de resistências prolongadas, Humberto aquiesceu, afinal. E quando o velho soube que Edgardina ia ter neném, meteu a mão no bolso, tirou uma cédula de quinhentos e mandou a fi­lha dar ao genro.

O fato é que a perspectiva do filho tirou o sossego do ra­paz. Vivia atribulado com as possíveis doenças que o guri pudesse ter. Gemia: “Imagine se ele apanha uma coqueluche braba”. Enfim, passaram-se os meses e chegou o grande dia. Apa­vorado, Humberto viu a mulher pôr a boca no mundo: “Uai!”. O sogro berrou: “Vai buscar a parteira, que é pra já!”. Ele ar­remessou-se pelas escadas abaixo, à procura da profissional que morava duas quadras adiante. E não voltou, nunca mais.

ANOS DEPOIS

O parto foi feito de qualquer maneira. Uma vizinha improvisou-se em parteira, enquanto a outra, a autêntica, não aparecia. E a criança nasceu perfeitíssima. Então começaram a procurar o pai.

Foram à polícia, ao hospital, ao necrotério. Nada. A hipótese de fuga ou suicídio era absurda. Humberto vivera, em casa, como um paxá. Um mês depois, já não havia mais dúvida: estava morto. Não se sabia onde, mas era óbvio. E então, a viúva, no seu luto fechado, começou a fazer questão do cadáver. Exigia, em brados medonhos:

— Quero o corpo! Quero o corpo!

Havia um rio próximo. Supôs-se que o rapaz se tivesse afo­gado. E, no mínimo, as águas o levaram para outras e longín­quas terras. Edgardina teve que se conformar; mas ficou, na sua alma, o ressentimento de viúva espoliada no seu defunto. Imersa numa fúria petrificada, dizia: “Eu não enterrei meu marido”.

E os anos, sem que ela percebesse, foram passando, um a um. Edgardina sempre de preto; e feliz, envaidecida, porque a dor não arrefecia no seu coração. Doze anos depois, consen­tiu, enfim, em ir, pela primeira vez, a um circo, que estava de passagem.

Foram os dois: ela, de luto, e o filho, com doze anos, vesti­do à marinheira. Assistiam à função quando, de repente, a bate­ria da charanga cria a ilusão do perigo, do abismo. É um núme­ro mundial de equilibrismo. Um benemérito surge no arame, de sombrinha aberta. Edgardina crispa-se na cadeira. Não é pos­sível, não pode ser… Sopra, afinal, ao ouvido do filho:

— Teu pai… Teu pai…

Rompe, no circo, o grito da criança:

— Papai! Papai!

O equilibrista estaca; olha, apavorado. Larga a sombrinha, larga tudo, desaba lá de cima. Depois, no hospital, houve cenas delirantes. Humberto estava de perna engessada e suspensa. Quis saber se o filho já tivera coqueluche. Quando informaram que sim, gemeu:

— Ótimo… Ótimo…

Fizeram espetacularmente as pazes.

Mas nunca se soube por que desaparecera, naquela noite, doze anos atrás.

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Nelson Rodrigues. A vida como ela é… São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
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