terça-feira, 13 de setembro de 2011

O primeiro pecado

Estavam na sorveteria há meia hora, mais ou menos. Súbito, Irene pede: — “Vê que horas são”. Mário espia o relógio de pulso: — “Seis horas”. Ela tomou um susto: — “Já?”. Apanhou a bolsa, que estava ao lado, em cima da mesa.

— Vamos, porque tenho que chegar antes do meu marido.

Fez espanto:

— Você é casada?

E ela:

— Não sabia?

— Nem desconfiava.

Sorriu:

— Pois sou: — casadíssima.

— Ora veja!

Estava num espanto sincero e profundo. Pagou a despesa, deixou a gorjeta e levantou-se com a garota. Já na calçada, faz a pergunta: — “Cadê a aliança?”.

— Não uso.

Despediram-se ali mesmo, depois de marcar um encontro para o dia seguinte. E, então, ainda impressionadíssimo, ele veio andando a pé, até o bar, onde se encontrava ao cair da tarde com os amigos.

O NAMORO

Era o segundo encontro. Na véspera ele a vira, pela primeira vez, numa fila de ônibus. Enquanto esperavam condução, nasceu o flerte. E o que surpreendeu foi a facilidade. Ela não esboçou nem mesmo uma resistência convencional. Na tarde seguinte, tomavam sorvete juntos na cidade. E só então, acidentalmente, falara no marido. Para Mário, que era um moço ingênuo e tímido, a mulher casada representava uma experiência nova e inquietante. No bar, chamou o Jordão e contou-lhe o caso. Abria os braços: — “Estou com a minha cara no chão!”. Trincando batatas fritas, o Jordão pisca o olho:

— Cuidado!

— Por quê?

Explicou:

— Mulher casada dramatiza muito, compreendeste? Quer fugir, largar o marido, fazer pacto de morte, o diabo!

Mário acreditava na experiência do cinismo do Jordão.

O outro continuava: — “Em todo o caso, vale a pena, porque é uma esposa desiludida”. Pausa, bebe um pouco e completa: — “A esposa desiludida é sempre uma grande mulher”.

— Tu és capaz de me fazer um favor de mãe para filho? De me emprestar o teu apartamento?

E como julgasse perceber no rosto do outro um descontentamento, atalhou:

— Mas é só uma vez!

— Uma vez só?

— Te juro!

— Bem. Assim empresto.

Mário despediu-se, exuberante:

— És uma mãe.

O ROMANCE

Sob a alegação de que nunca namorara uma mulher casada, Jordão o instigou a entrar de sola. Mas o diabo era o seguinte: aquele caso, na vida de Mário, era uma experiência inédita. Ele perguntou a ela:

— Que tal o teu marido?

Ela fez um resumo sublime:

— Inofensivo.

Então, Mário quis ir mais longe. Perguntou, escolhendo as palavras: — “É a primeira vez que você faz isso?”

— A primeiríssima, nunca traí meu marido, sob minha palavra de honra!

— Acredito. — Pigarreia, continuando: — E outra coisa: — houve alguma coisa entre vocês? Vocês brigaram? Ele a maltratou?

Jurou:

— Nunca. Meu marido não faz mal a uma mosca, me trata na palma da mão. Que esperança!

Desconcertado, não sabia o que pensar ou o que dizer: — “Mas, então, para que você faz essas coisas? Não entendo”. Ela passou-lhe um pito: — “Olha, meu bem: — eu não gosto de homem que faz muita pergunta. Eu não estou aqui contigo? Então, pronto!”.

Gaguejou, vermelhíssimo: — “Claro, evidente!”. Caía a noite e estavam em pé, debaixo de uma árvore, numa esquina. Súbito, Irene diz-lhe:

— E já que tu não me beijas... — Ergueu-se na ponta dos pés, apertou o rosto do rapaz entre as mãos e sorveu-lhe a boca num beijo sem fim. Ele sentiu que ela estava mordendo o seu lábio inferior. Quando se desprenderam, Mário, ainda arquejante, teve uma audácia de tímido:

— Tu irias, amanhã, a um lugar assim, assim?

Irene, ofegante, exclamou:

— Como demoraste, puxa! Vou, sim, claro que vou!

Ali mesmo ele apanhou um papelzinho e escreveu o endereço: — “Toma: — é aí. Às nove horas da manhã, nove, ouviu?”.

Estava sujo de batom até a alma.

O PECADO

O horário fora idéia do Jordão. A princípio Mário quisera relutar — “Por que tão cedo?”.

— Mas claro, nenhum marido desconfia da mulher às nove da manhã! Os maridos começam a desconfiar das mulheres depois das duas da tarde!

O raciocínio era válido; e, além disso, Jordão tinha a autoridade de dono do apartamento. Ao deixar a pequena, Mário procura aflito o amigo. Encontrou-o no bar de sempre e estendeu a mão: — “A chave, a chave!”.

Recebeu a chave e a embolsou. Mais tranqüilo, narrou o episódio do beijo, exagerando: — “Quase me arrancou os lábios!”. E exibia os beiços feridos. O Jordão, que já bebera o oitavo chope, sentenciou:

— Das duas, uma! — Ou a mulher é fria ou morde. Sem dentada não há amor possível!

Mário baixa a voz: — “Sabe que estou nervoso? E se ela tiver má impressão de mim?”. Na hora de sair, perguntou ao amigo: — “Ponho perfume?”. O outro admitiu:

— Perfume discreto é bom. Mas vê lá se vai usar loção de gafieira, vê lá!

A CHAVE

Estava tão emocionado que passou a noite em claro, fumando um cigarro atrás do outro. Irene podia ser considerada uma pequena muito interessante. Mas o que o impressionava era o seu estado civil. Amar uma mulher casada parecia-lhe uma delícia completa. Às cinco horas da manhã, estava na banheira. Esfregou-se com um brio sem precedente. E, depois, pôs perfume no peito, nos braços, nos cabelos. Ao apanhar a meia, lembrou-se de passar talco nos pés. Às sete horas, de terno branco, estava no local, nervosíssimo. A última recomendação do Jordão fora a seguinte: — “Primeiro, dá-lhe um beijo no ouvido. Mas olha: — um beijo de estalo”. A obsessão, a idéia fixa do amigo, era a orelha feminina.

Argumentava: — “Há mulheres que só têm sensibilidade nas orelhas!”. Irene chegou às nove e cinco, exatamente. Vinha num estampado leve, juvenil, que a tornava irremediavelmente garota. Antes de se deixar beijar, disse-lhe num alegre desafio:

— Tu és sagrado e és o segundo homem que eu conheço. E não quero sair daqui desiludida!

Naquele momento, Mário não se esqueceu do beijo no ouvido, que o outro preconizara com tanto empenho. Procurou eletrizá-la: — “Olha que eu sinto cócegas!”. Mas o rapaz, no desvario, teimou; e ela, fora de si, dava gargalhadas, que todo o andar havia de escutar. Uma hora e quarenta minutos depois, estava ela diante do espelho, refazendo a pintura dos lábios. Então, Mário, que a contemplava numa espécie de febre, aproximou-se.

— Explica uma coisa: — se você vive bem com o seu marido, se ele não a maltrata, por que fazer isso? Por quê?

Sua curiosidade o dilacerava. Ela acabara de maquilar-se; levantou-se. Face a face com Mário, respondeu, fixando nele os olhos verdes e frios.

— O único homem que tinha me beijado, que eu enfim conhecia, era meu marido. — Pausa e continua: — Quis conhecer outro, fazer uma experiência com outro. Questão de curiosidade.

Mário recuou, lívido.

— Quer dizer que eu sou a experiência? Eu sou a cobaia?

Na sua fúria, segurou-a pelos braços:

— Agora vais dizer, Ouviste? Qual foi o resultado da experiência. Anda, diz!

Respondeu, tranqüilamente, sem medo.

— O pior possível. Você não chega aos pés do meu marido. Foi a primeira e a última vez. De agora em diante, nem você, nem outro idiota põe a mão em cima de mim.

Saiu de lá, sem olhá-lo, e desiludida do pecado. Nos dias que se seguiram, ele a perseguiu como um louco, pelo telefone. Mas, assim que reconhecia a voz, Irene desligava sumariamente. Até que, um dia, deu com a garota na rua do Ouvidor; pôs-se a acompanhá-la. Como ela o repelisse, rosnou: — “Sua mascarada!”. A pequena, então, meteu-lhe a bolsa na cara.
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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
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O pirralho

Era uma menina muito boazinha, incapaz de fazer mal a uma mosca. E, a rigor, seu grande e talvez único defeito era o seguinte: não gostava de crianças. Ou por outra: não tinha, como ela própria admitia, “paciência”. Dizia das crianças:

— Fazem muito barulho. São muito levadas. Me põem nervosa.

Mesmo os sobrinhos, que eram uns amores, a irritavam. Marita não os deixava em paz, numa marcação de enervar: “Não mexe aí. Vai embora e vê se não enche! Que coisa chata!”. É claro que as mães não gostavam nem um pouquinho; vendo os filhos enxotados. Uma não se continha:

— Você tomou assinatura com meu filho, hein!

E ela:

— Você me desculpe. Mas não posso, não está em mim!

A outra, entredentes, observava:

— Nada como um dia atrás do outro. E você há de ser mãe.

Marita não dizia nada ou enrolava uma desculpa. Mas fazia, para si mesma, a reflexão: “O espeto do casamento é esse negócio de filho”.

Enfim, o tempo foi passando; e, lá um belo dia, eis que Marita está se casando com Clodomir. Dois meses depois, apareceu com umas manifestações esquisitas, inclusive enjôos, náuseas, vertigens. Clodomir, novato dessas situações, telefonou para um médico. Contou ao médico os sintomas, tintim por tintim.
O outro foi lacônico:

— Batata.

JOVEM MÃE

O filho nasceu. Marita ainda não tinha um ano de casada. Dir-se-ia que apanhara gravidez sob protesto. Vivia praguejando:

— Estou pagando todos os meus pecados!

No dia do nascimento, comportou-se muito mal; foi grosseiríssima com a parteira; interrompia os gemidos para esbravejar:

— Vai amolar o boi!

E culminou quando, em certa altura dos acontecimentos, meteu o pé em plena boca da santa senhora. Uma calamidade autêntica. Mas, enfim, bem ou mal, nasceu a criança, aliás, um menino. Ao mesmo tempo que davam no guri o primeiro banho, Marita, exausta, ainda teve ânimo para dizer:

— Nunca mais! Nunca mais!

A INSATISFEITA

A parteira estava com o lábio inchado e um dente amolecido. Mas a sua experiência profissional era variada e a forrava de paciência e misericórdia. Disse que “doente sempre tem razão” etc. etc. Quinze dias depois, Marita já gritava com o filho, fazia verdadeiros escândalos:

— Mas olha só que criança porca!

E impingia a fralda substituída ao marido:

— Toma! Toma! Leva isso daqui, depressa!

Cheirava as próprias mãos, ia lavá-las com sabonete e, não contente, recorria à água-de-colônia. O marido, amargurado com esses exageros, ponderava:

— Afinal de contas, é teu filho, nosso filho!

E ela, espalhafatosa:

— Por acaso a fralda do nosso filho não cheira mal, hein? Que calma!

RELAXADA

Durante dois anos, não puderam ter babá por um motivo muito simples: as finanças do casal não andavam boas. Enquanto não vinha a ama, era o próprio pai quem mudava as fraldinhas do guri. Marita continuava com a mesma intolerância ou pior; e, conforme o caso, fechava as narinas entre dois dedos, numa exclamação:

— Que horror!

Nem sempre, porém, o pai estava em casa e Marita, quisesse ou não quisesse, era obrigada a substituí-lo naquelas funções. Tiro e queda: perdia logo o apetite. Já várias pessoas observavam, à boca pequena, que “aquilo já passava dos limites”, “não era, não podia ser normal”. E a alergia de Marita foi tão intensa que, por fim, sem querer, sem sentir, ela foi relaxando. Passava, às vezes, horas sem mudar a roupa do menino. O marido chegava, ia direto ao berço e o seu primeiro cuidado era examinar a fralda. A exclamação explicava:

— Molhada!

E reclamava que Marita precisava tomar cuidado, o filho poderia se resfriar etc. etc. etc.

E ela:

— Tem dó, que diabo!

INFÂNCIA TRISTE

Então aquele menino foi crescendo, sem nenhum carinho e com assistência apenas paterna. De Marita tinha apenas ralhos, puxões de orelha, blasfêmias, chineladas. Qualquer arte que ele fizesse, já sabe, a mãe trovejava: “Não sei por que esse diabo nasceu!”. Batia, sem dó, numa fúria de alucinada.

— Peste do inferno! Excomungado! Olha que eu te arrebento!

A vizinha, diante dessa dissipação de crueldade, fazia seus comentários: “Peste é ela!”. Tratado em casa a pontapés, o menino, que se chamava Helinho, era um triste, um doente. Quando, aos quatro anos, teve coqueluche, Marita se enfurecia até com os acessos de tosse que o deixavam roxinho. Saltava:

— Pára com essa tosse!

O marido, que adorava o pequeno, explodia por sua vez:

— Sua desalmada! Mãe sem consciência! Olha que Deus te castiga!

E ela:

— Imagine! Rogando praga em mim! Tudo por causa dessa pestinha!

Depois que o ambiente serenava, o pai atormentado chamava o filho, punha-o no colo, apertava sua cabeça de encontro ao seu peito, e só faltava pedir perdão de tê-lo posto no mundo. A coisa se tornou tão grave que as mães da rua acabaram fazendo um espécie de greve. E diziam para os filhos:

— Olha aqui: não te quero na casa do Helinho! Não me põe os pés lá!

A MUDANÇA

E, de repente, sem nenhuma explicação possível, Marita começou a fazer uma escandalosa exceção para uma criança dos seus oito anos que, por sinal, morava no princípio da rua. Era um menino espertíssimo, chamado Simão, e moleque como ele só.

A primeira vez em que foi vista fazendo festas no garoto, rindo com ele, conversando, houve o natural espanto. Houve até um comentário, não sei de quem:

— Hoje vai chover, na certa.

— Por quê?

— Dona Marita tratando bem uma criança, imagine!

De admirar, com efeito. E começou o escândalo: ela não podia ver o Simão que não o chamasse, que não lhe fizesse festas, que não lhe oferecesse doces. Era curioso ver a adulta em longas conversas com o pirralho, como numa equiparação absurda. Se o filho estava perto e queria entrar na conversa, a mãe o escorraçava:

— Vai-te embora, some!

Helinho obedecia, para não levar uns tapas. Marita, cada vez mais entretida com Simão, queria saber de sua vida, se estudava, se fazia muita arte. O pirralho falava da própria mãe, que morrera há anos. Marita, numa curiosidade minuciosa e ardente, pedia detalhes: se ele fora ao enterro, se visitava o túmulo materno, se tinha saudades da morta. Um dia, não se conteve e fez a pergunta:

— Queres me fazer um favor?

— Faço, sim, senhora.

Ela baixou a voz:

— É o seguinte: eu queria que tu me chamasses de mamãe. Chama, não chama? Olha que eu podia ser tua mãe. Está bem?

D. MARITA

E Marita fez mais: de vez em quando, depois do almoço, apanhava Simão, embonecava-se toda e ia à matinê dos cinemas do bairro. E, sobretudo, não perdia uma fita de Tarzã. Nada mais natural ou obrigatório que levasse o próprio filho. Mas não. Dizia para Helinho:

— Eu não te levo porque você tem feito malcriação. Pensa que eu me esqueço?
E não levava nunca, alegando a malcriação imaginária. No dia seguinte, ela ainda discutia com o Simão as situações da fita: “Viste o bofetão que o bandido levou? Eu gostei!”. O marido, quando viu aquele agarramento com o pirralho dos outros, fez espanto:

— O que é que há contigo? Alguma coisa há!

Ela foi ríspida:

— Não me aborrece, não me amola!

O marido, amargo, concluía:

— Certas mulheres não deviam ter filhos.

O MOTIVO

Certo dia, aconteceu o pior: Simão e Helinho se engalfinharam no meio da rua. Marita, que apareceu na janela e viu a briga trivial dos dois meninos quase da mesma idade, veio de casa como uma fera. Em plena rua, deu uma surra tremenda no filho. Vizinhos intervieram, levaram a criança. Alguém rosnou que aquilo era “caso de polícia”. E Marita, atracada a Simão, apertava-o de encontro ao seio, beijava-o num delírio de ternura.

Depois, Helinho veio para casa, cheio de equimoses. Marita prometeu à vizinhança que daria mais no filho naquele dia; e suspirou: “Que vida a minha!”. A criança refugiara-se no quarto, à espera do pai. Este chegou tarde; vinha triste e cansado. Então, Helinho, beijando Clodomir, teve um lampejo de ódio nos olhos azuis. E disse ao ouvido do pai:

— Mamãe vai ao cinema com o pai do Simão! Anda com o pai do Simão de automóvel!

E o Clodomir, que era fraco e tinha paixão pela mulher, ficou muito pálido, o lábio trêmulo, e começou a chorar. Quando, pouco depois, irritada com a demora, Marita apareceu na porta, o pirralho e o adulto uniam suas lágrimas.

Vendo a mulher, Clodomir passou as costas da mão nos olhos:

— Já vou, meu anjo.
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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
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O dilema

Tempos atrás, a filha, então com quinze anos, irrompera no seu escritório:

— É verdade o que me contaram, papai?

Tércio ergueu-se da cadeira giratória, fez a volta da mesa e veio falar com a garota, face a face. Ela continuou, com o lábio inferior tremendo:

— É verdade que mamãe se matou?

Recuou, atônito.

— Quem?

E ela:

— Mamãe. É verdade que ela se matou? É verdade que o senhor obrigou minha mãe a se matar? Responda, papai! Quero saber! É verdade?

Antes de responder, ele, muito pálido, foi fechar a porta do gabinete à chave. Voltou-se para a filha. Com uma aparente serenidade, que escondia seu dilaceramento, perguntou: “Quem te disse? Quem te contou?”. Antes, porém, que Malva abrisse a boca, o velho Tércio mergulhou o rosto entre as mãos e rebentou em soluços. Sem uma palavra, num misto de fascinação e de asco, ela viu o pranto do homem que punha acima de tudo e de todos. Finalmente, ele ergueu o rosto devastado:

— É verdade, sim! Sua mãe se matou, porque eu quis, porque eu mandei!

O SUICÍDIO

Fora criada na lenda piedosa segundo a qual a mãe havia morrido de parto. Sejam os parentes, sejam os mais íntimos da casa, todos confirmavam a versão generosa. Eis que, de repente, um telefonema anônimo e brutal colocara a menina diante da verdade. Correu ao pai e este confessou. Malva crispou-se de pena e angústia. Apertou, de encontro ao seio, a cabeça do velho: “Oh, papai!”. E, então, Tércio passou duas, três horas, com a filha no colo, contando a tragédia de sua experiência matrimonial. Explica: “Eu sempre te escondi isso, porque não queria ser cruel com uma morta. Mas já que te contaram...”.

Malva ouviu como espantada, com sofrida curiosidade. Soube que a mãe fora infiel e que o pai criara o dilema: “Ou tu te matas ou eu te mato!”. Ele mesmo, com um ódio sóbrio e inapelável, preparou o copo com o veneno e lhe ofereceu:

— Toma, anda!

Antes de beber, ela balbuciara: “Deus abençoe minha filha”. Malva tinha sete ou oito anos de vida, só. Tantos anos depois, ao conhecer a verdade, da boca do próprio pai, quis saber, com uma curiosidade não isenta de doçura: “Era parecida comigo, papai?”.

Tércio agarra-se à filha; tem um esgar de choro:

— Demais! Parecida demais!

Crispa as mãos num apelo: “Mas não quero que tenhas o mesmo destino! Não quero!”.

OBSESSÃO

A partir deste momento, Malva foi outra. Andou pela casa, procurando nas gavetas, nas malas, um retrato dessa mãe tão linda e tão infeliz como uma Inês de Castro. Morrera de amor e isto bastava. Passou vários dias imersa numa meditação deliciosa. De vez em quando, o pai a surpreendia diante do espelho, enamorada de si mesma.

Visitas começaram a observar: “Malva está ficando mais mulher, não está?”. As velhas parentas cochichavam entre si: “É a mãe escrita e escarrada!”. E, então, Tércio percebeu que mudavam os hábitos da filha única. Não parava em casa. Vivia com amigas, em festas, cinema, teatro. Em casa, o telefone não parava: “Malva está?”. Até que, uma tarde, um velho amigo de Tércio vem procurá-lo. Primeiro, faz a ressalva:

— Olha, fulano: eu não gosto de me meter na vida dos outros. Mas acontece o seguinte: sou teu amigo, do peito; gosto mais de ti do que de meus irmãos. Compreendeste?

Pigarreou:

— Toca o bonde.

O outro baixa a voz:

— Tércio, abre o olho.

— Por quê?

— Abre o olho, porque tua filha foi vista, de automóvel, com um homem casado, sabe onde? Na avenida Niemeyer. O negócio é batata.

Não chorava desde a morte da mulher. E, agora, as lágrimas caíam-lhe dos olhos, de quatro em quatro. Baixou a cabeça: “Obrigado”.

PAI E FILHA

Quando Malva chegou, muito linda, linda demais, ele a interpelou. Referiu a denúncia e, na sua cólera contida, quis saber: “É verdade?”. A princípio, Malva nega, ferozmente. Ele, porém, continua: “Quero a verdade!”. Acaba explodindo: “Pois é verdade, pronto, é verdade!”. O pai a contempla, estupefato. Nunca fora tão viva a semelhança entre mãe e filha. Dir-se-ia a mesma graça frívola e pungente. Fora de si, ele põe-se a gritar dentro da sala:

— A senhora não me sai mais de casa! Não me põe o pé na rua!

Estava sentada, ergueu-se. Com um brilho cruel nos olhos azuis (tão parecidos com os da que morrera), desafiou o velho:

— Papai, eu tenho um encontro marcado com essa pessoa, amanhã, às quatro horas. Quero que o senhor saiba: se eu não for, eu me mato, papai, eu me mato!

Ele não dormiu nada nessa noite. Andou no quarto, de um lado para o outro, até o amanhecer. Mais tarde, no escritório, não trabalhou. Às três e meia, bate o telefone; era a filha. Pergunta:

— Posso ir, papai? Está na hora. Posso ir?

Ele faz um esforço sobre si mesmo:

— Não!

Silêncio. E, súbito, ela tem no telefone um riso soluçante, terrível: “O senhor matou a mãe. Agora vai matar a filha!”. Corta a gargalhada; novamente serena, diz, calçando as palavras: “Papai, quando o senhor entrar em casa, vai encontrar o meu cadáver!”. Desliga. O velho perde a cabeça. Chorando, voa para casa. Diante da filha, é um trapo humano. Diz apenas:

— Vai, pode ir.

MALUQUINHA

Era verdade, sim, a aventura com o homem casado. Nos dias seguintes, os parentes vinham falar espavoridos com o velho. Punham as mãos na cabeça: “Você deixa? Você topa?”. Ele respondia: “Só não quero que minha filha tenha a sina da mãe. O resto não interessa”. Mas o escândalo foi tão violento que ele, afinal, tentou descobrir a solução. Conversa com a filha: “Mas não é nem um casamento no México? No Uruguai?”. Malva o desiludiu:

— Que esperança, papai! Ele vive até muito bem com a mulher!

Duas ou três vezes, Tércio tentou intervir. Ela, porém, o gelou, com ameaça: “Olha, papai: já tenho o veneno. O senhor quer que eu me mate como a mamãe? Quer? É só dizer!”. Fazia o desafio com uma frivolidade cínica que o aterrava.
Tércio recuava, porque jamais esquecera a que obrigara a matar-se. Até que, um dia, é procurado por uma senhora em estado interessante. Conta, chorando: “Sua filha me tirou o marido. Meu filho vai nascer sem pai”.

Não soube o que dizer a essa mulher que ia ser mãe e que estaria no sétimo ou oitavo mês de gravidez. De noite, chama a filha; tranca-se com ela no gabinete. Começa a contar a visita que recebera, mas ela o interrompe: “É verdade, sim. E daí?”. Desafiava-o como das vezes anteriores. Então, Tércio lembra-se da outra, a que morrera. Levanta-se: “Eu volto já”. Reaparece, pouco depois, com um copo cheio. Fez a filha segurar o copo. Põe o revólver em cima da mesa, ao mesmo tempo que cria o dilema:

— Ou tu bebes isso ou te mato.

Apanhou o revólver e apontou para o coração de Malva. Diante do pai, ela bebeu até o fim. Depois, largou o copo vazio, que se estilhaçou no chão.
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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
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