quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Justo pelo pecador

De repente, ela começou a se interessar pelos passarinhos que via nas árvores, em cima do muro e pousados nos fios telefônicos. Quando saíam os dois, marido e mulher, de braço, ela estacava de repente:

— Ah, que amor!

E ele:

— O quê?

Apontava:

— Aquela cambaxirra.

Às vezes, não era cambaxirra; era pardal ou coisa que o valha. Outras vezes, Lúcia não via, mas ouvia um bem-te-vi. Começava a procurar. E se, por acaso, descobria o pássaro, puxava o marido pela manga do paletó e fazia questão fechada que ele olhasse também:

— Ali, meu filho, ali!

— Onde?

— Em cima daquela árvore, assim, assim.

Malvino era míope e, além de ser míope, tinha um prosaico e irremediável desinteresse pelos pássaros, sem exceção de cor, feitio e nome. Para fazer a vontade da mulher, acabava admitindo:

— Agora estou vendo.

Ela, inflamada, continuava no mesmo lugar, interessadíssima, vendo o bichinho pulando de galho em galho. De repente, o bem-te-vi batia as asas, desaparecia, e Lúcia, ainda excitada, tinha pena de ir embora, na secreta esperança de que o pássaro voltasse. E, um dia, depois do jantar, mexendo o café, fez a comunicação:

— Sabe de uma coisa, meu filho?

— Que é?

— Vou comprar uma gaiola amanhã.

Malvino achou aquilo sem pé nem cabeça; e fez o natural espanto:

— Gaiola, sem passarinho?

A própria Lúcia, por um momento, ficou meio sem jeito, como que percebendo o absurdo da própria idéia. Afinal, explicou:

— O passarinho se arranja!

O CANÁRIO

Malvino não ligou muito. Estava em vésperas de um clássico do futebol carioca e ele não pensava senão no jogo que se aproximava. Botafogo fanático, esfregava as mãos, antegozando as alternativas do match:

— Vai ser uma barbada! Vamos papar o Flamengo direitinho!

E fazia o gesto respectivo, querendo significar que iam fazer a barba e o bigode do Flamengo. De noite, sonhava com os gols do Botafogo; uma vez por outra amargava pesadelos medonhos, no decorrer dos quais o juiz marcava pênaltis contra seu time. Ao acordar, batia na madeira:

— Isola!

Ora, um torcedor passional não tem discernimento para observar e interpretar umas tantas modificações da vida conjugal. Por exemplo: a mulher trouxera da casa dos pais uma gata, por quem nutria verdadeira paixão. Chamava-se Bonifácia, não sei por que cargas-d’água, e era o ai-jesus de Lúcia. Ela chegava ao exagero de querer dormir com o bicho. E, no princípio, Malvino tivera que achar ruim e fazer prevalecer sua autoridade de marido:

— Ah, não, tem paciência. Esse bicho não dorme na cama, não, que esperança!

E Lúcia:

— Que mal há, meu bem? Sempre dormiu comigo!

— Dormiu, enquanto você foi solteira! Agora a coisa mudou de figura! E tinha graça!

Pois bem. Passou-se o tempo, até que sobreveio, em Lúcia, a mania súbita, intempestiva e sem precedente, pelos pássaros. Malvino, se não andasse tão absorvido pelo campeonato, poderia, perfeitamente, estranhar e perguntar: “Que negócio é esse? Você nunca, na sua vida, se interessou por passarinho!”.

Mas achou, talvez, que aquilo era uma mania passageira; e não viu que Lúcia já não ligava para Bonifácia. Há quinze dias, com efeito que ela não levava, em mão, o pires de leite para a gata. Esta miava, de vez em quando, numa saudade justificada do antigo afeto e da antiga assistência.

Um dia, Malvino chegou do emprego e deu com a mulher na cozinha, muito entretida com uma gaiola. Ele caiu das nuvens:

— Que é isso?

E ela, radiante:

— Você não está vendo? A gaiola, meu filho!

Sim, comprara a gaiola, alpiste, o diabo. De martelo em punho, bateu um prego na parede. E, trepando num banquinho, pôs lá a gaiola. Então, Malvino fez o único comentário que a situação comportava:

— Você é maluca, é? Onde já se viu! Uma gaiola com alpiste e sem passarinho? Mulher é um bicho engraçado.

Lúcia insistiu em que o passarinho se arranjava e o assunto passou, porque era hora da resenha esportiva e Malvino ligou o rádio. No dia seguinte, encontrou Lúcia, na cozinha, em cima do banquinho, a cara quase dentro da gaiola, no interior da qual estava instaladíssimo um canário de papo de ouro. O espanto de Malvino não teve limites.

— Onde é que você arranjou esse bicho?

Ela, dependurada, ignorou-o.

Puxou outro banco, trepou e, por alguns momentos, ficou também entretido, namorando o canário. A mulher, para excitar o bichinho, assoviava. O canário, porém, conservava-se num mutismo intransigente. Malvino perguntou:

— Não canta?

— Canta, sim. Canta até muito.

E começou uma nova fase na vida do casal. De manhã, o pássaro inaugurava o dia com verdadeiras árias. De fato, cantava muito, cantava talvez demais. Lúcia, na obsessão do canário, acordava mais cedo, vinha vê-lo. Mudava a água, renovava o alpiste e trazia a gaiola que era um brinco. Alta madrugada, acordava e vinha espiar. Seu medo constante era de que a gata pudesse derrubar a gaiola e devorar o bichinho.

Certificava-se de que o canário estava intacto e, mais tranqüila, voltava para o quarto. O pior era quando o passarinho, por um motivo ou outro, emburrava, deixava de cantar e se metia num canto, triste, como se estivesse doente. O pânico de Lúcia era uma coisa de irritar pelo exagero:

— Ele tem alguma coisa! Ah, tem, sim!

— Tem o quê, mulher! Tem coisa nenhuma! Que mania!

No fim, já Malvino fazia blagues amargas:

— Minha mulher não me liga mais! Dá muito mais importância ao passarinho!

Não deixava de ter sua razão, porque o canário era a paixão, a mania, a doença da mulher. Não tinha outro assunto e já não queria sair, não ia mais ao cinema, com medo que, na sua ausência, a Bonifácia papasse o canário. Por conta dessa possibilidade vaga, enfurecia-se:

— Ah, eu matava essa gata!

A REVELAÇÃO

Até então, não ocorrera a Malvino interessar-se pela procedência do passarinho. De fato, que maldade pode haver na aquisição de uma avezinha? E existem, na cidade, casas que negociam com aves de todos os gêneros. Há também os vendedores a domicílio. Um dia, porém, apareceu em casa de Malvino uma vizinha, uma autêntica jararaca. Era uma senhora geralmente mal-quista e temida, em função de sua maledicência. Via maldade em tudo e dissimulava o seu veneno por detrás de uns modos melífluos, que irritavam. Nem Malvino, nem Lúcia gostavam dela, mas a respeitavam. D. Lourdes conversou sobre vários casos de infidelidade. De repente, disse, com o ar mais inocente do mundo:

— Dona Lúcia, sabe quem tinha um canário igualzinho ao seu? O doutor Linhares! Ah, ele também é louco por tudo que é passarinho! Tem um viveiro que é uma maravilha!

Lúcia não fez comentário nenhum. E, depois, d. Lourdes saiu, muito amável.

Ainda disse, no portão: “Apareça”. Já era tarde e o casal estava com sono. No quarto, antes de apagar a luz e num bocejo, Malvino perguntava:

— Eu conheço esse doutor Linhares? Conheço?

Ficou sabendo que ele morava no fim da rua e que, realmente, gostava muito de passarinho. No domingo seguinte, o Botafogo perdeu e Malvino, ao voltar do jogo, num mau humor execrando, viu uma senhora cumprimentar um cavalheiro; e dizia a senhora: “Como vai, doutor Linhares?”.

Malvino olhou e constatou que era, insofismavelmente, um belo tipo de homem. Imediatamente houve nele uma associação de idéias, pois lembrou-se da alusão que d. Lourdes fizera ao passarinho do dr. Linhares. Já estava furioso com a derrota e semelhante estado psicológico facilitou uma meditação sobre o canário, a mulher, d. Lourdes e o bonitão.

Entrou em casa e foi encontrar a mulher, trepada no banquinho, assoviando para o pássaro. Não disse nada ou, por outra, rosnou apenas:

— Esse passarinho já está me enchendo!

O INOCENTE

Até que, quinze dias mais tarde, recebeu no escritório uma carta sem assinatura: “O dr. Linhares está com tudo e não está prosa”. Ele virou, revirou o papel; leu aquilo muitas vezes. Ao sair do emprego mudou de itinerário e passou pela casa do dr. Linhares. Olhou o viveiro de pássaros. E tomou sua decisão.

Entrou em casa sem beijar a mulher. Foi à cozinha, enfiou a mão na gaiola e trouxe o pássaro vivo. A mulher, atônita, não esboçou um gesto, nem disse uma palavra. E ele, também em silêncio, fez apenas isto: torceu e arrancou o bico do canário. Então a mulher teve um verdadeiro ataque.

Gritava, como uma possessa, para que todos os vizinhos ouvissem:

— Pois é verdade, ouviu? É verdade, sim! Eu gosto é do Linhares!

Ele, então, saiu de casa. Durante muitas horas andou pelas ruas. De repente, sentiu uma coisa na mão: era, ainda, o passarinho sem bico.
 ________________________________________________________________

A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
Leia mais...

História do calçado

Cobertura e proteção dos pés, os sapatos ou ‘calçados’, são contemporâneos da Idade do Bronze. Na antigüidade oriental, egípcios, sumérios e hindus andavam, de preferência, descalços.

Havia sandálias abertas, de uso mais ou menos geral. As dos egípcios eram feitas de palha, papiro ou folha de palmeira. Os hititas usavam um tamanco peculiar, cuja forma pode ainda ser vista na Anatólia.

Na Mesopotâmia, sapatos de couro cru, amarrados aos pés por tiras do mesmo material foram introduzidos no período Kassita: já eram usados pelos montanheses da fronteira com o Irã.

Os gregos não gostavam de sapatos, a não ser no inverno. Mulheres calçavam sandálias na rua e sapatos macios, de couro ou pano, dentro de casa. As tiras das sandálias eram longas e finas e enrolavam-se até cobrir dois terços da perna. O soco, um calçado com base de madeira, era um modelo corrente entre os atores: O coturno era um borzeguim de base elevada, que chegava até a panturrilha, como os coturnos modernos. Era símbolo de alta posição social.

Os romanos adotaram a carbatina etrusca, de sola alta, cordão e bico virado. Adotaram, depois, as modas gregas. Foram os primeiros a fazer sapatos diferentes para o pé esquerdo e o pé direito.

Em Roma, o sapato indicava a classe social do usuário: os cônsules, por exemplo, usavam sapatos brancos: os senadores tinham sapatos marrons presos às pernas por quatro fitas pretas de couro atadas com dois nós. As mulheres, como as de hoje, combinavam roupas com os sapatos. Os homens usavam o soco grego, uma variedade de sandália.

A cáliga, bota de cano curto, que descobria os dedos, era o calçado tradicional das legiões. Deu nome ao imperador Gaius Cesar, filho de Germânico que fora criado nos acampamentos e só usava esse tipo de calçado: ficou conhecido, na história, como ‘Calígula’.

O calceus, que originou o nome ‘calçado’, sapato fechado, do cidadão romano, não podia ser usado por escravos.

A invasão dos bárbaros foi também a invasão dos sapatos grosseiros de couro mal curtido. Mas no império do oriente perduraram as sandálias romanas, as botas de cor ; e introduziu-se a moda persa dos sapatos e botas macias, de couro fino e tecidos preciosos.

Na Idade Média, o povo calçava sapatos de couro cru, tosco, mas resistentes, e ornados de perfurações — moda que reapareceria, modernamente, nos sapatos ingleses ditos ‘brogue’. A numeração, também é de origem inglesa e data justamente da Idade Média, quando o rei Eduardo I uniformizou as medidas, decretando que uma polegada (1 inch) correspondia a três grãos de cevada postos um atrás do outro. Um sapato, que media 35 grãos, ficou sendo n.º 35.
     
Sob Eduardo III surgiu a moda dos bicos compridos, que em vão o rei limitou, por lei, a 2 polegadas (6 grãos). Sob Ricardo II, tinham 18 polegadas, ou seja, 54 grãos: 45 cm!!! Ao fim do século XV já a moda cedera lugar à dos sapatos de bico largo, ou bico-de-pato.

Variaram os modelos, apareceram as solas de couro, e os sapatos de veludo, seda e brocado. No século XVII, as botas de uso universal, de cano alto, folgado em cima e dobrado para baixo. Os sapatos de homem eram enfeitados com laços de fita e saltos altos (salto Luís XV). Os sapatos de mulher passaram a ser feitos com o mesmo estofo dos vestidos. Sob Luís XVI, voltou à moda dos saltos baixos e foi lançada a das fivelas, de Ouro e prata.
      
Do século XVIII data a fabricação em massa de sapatos. O artesanato cedeu lugar à produção industrial. Mas só com a invenção da máquina de costura, no século XIX, o calçado ficou mais barato e acessível a todas as classes.

As polainas cinza eram muito elegantes no início do século XX. Os sapatos de verniz apenas são conservados para acompanhar o smoking. Os calçados informais, inteiriços, de modelo italiano (mocassins), substituíram, na preferência geral, os sapatos ingleses, formais, de cordão. O advento da moda hippie trouxe de volta a sandália como calçado de uso diário. Foram introduzidos, na indústria a napa, a camurça e os materiais sintéticos.         

Fonte: Enciclopédia Barsa.
Leia mais...

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Esposa bem tratada

O Guedes avisou:

— A Luci é dureza, percebeste?

Miranda virou-se:

— Dureza? E por que dureza?

O outro foi explicando: — “É séria por natureza e, além disso, o Braga é o melhor marido do mundo, caxias até debaixo d’água. Tu achas que ela vai trair um marido que nunca lhe fez nada, que a trata como uma rainha? Pensa bem”.
Impressionado, Miranda balbucia:

— Eu não sabia que o Braga era assim. E deve ser o único, porque todos os maridos que eu conheci, até agora, são uns bestalhões de fivela!

Então o Guedes, que conhecia o casal, que lhe freqüentava a casa, que almoçava e jantava lá de vez em quando, entrou a traçar o retrato daquele esposo extraordinário. Entre outras coisas que abalaram o Miranda, revelou o seguinte: — o Braga jamais traíra a mulher, jamais. Insistiu:

— Então achas que uma mulher tão bem tratada vai trair?

O outro, no seu despeito e na sua frustração, rosna: — “Quem sabe?”. Guedes pulou:

— Quem sabe, uma ova! E vou te dizer o seguinte: — queres saber o que é mulher séria? — Pausa e conclui: “Séria é a mulher bem tratada. Portanto desiste, rapaz, porque desse mato não sai cachorro, ou coelho, sei lá!”.

O APAIXONADO

Miranda era conhecido como o sujeito que tinha amores imortais, de quinze minutos. Mas a paixão pela esposa do Braga parecia um sentimento inédito na sua vida. Há três meses que gostava da Luci e só da Luci. Conhecera-a numa festa em casa de família. Podia ter convidado a pequena para dançar. Mas era de uma timidez agressiva em certas ocasiões. Apresentado à jovem senhora, mal pôde gaguejar um “muito prazer”, e foi só. Mas não lhe tirava os olhos de cima e não sossegou enquanto não se sentou perto de Luci. Ela conversava com outra senhora e o assunto era parto. Miranda ouviu a pequena dizer:

— Graças a Deus, nunca levei um ponto!

Referia-se aos próprios partos, que eram simples, fáceis, quase indolores. E Miranda, que não entendia nada de maternidade, achou que o fato de uma parturiente não levar ponto constituía um privilégio altíssimo. Saiu da festa febril de paixão. Luci era do “tipo gordinho” que, desde menino, o deslumbrava. Dia após dia, ele viveu em função desse amor. Abriu o coração com o seu amigo Guedes. Este o dissuadiu. Miranda considerou o raciocínio do amigo e levantou-se:

— Acho que você tem razão. O golpe é desistir.

De pé também, o Guedes bateu-lhe no ombro:

— Arranja outra. Mulher é que não falta. Escolhe uma que não seja bem tratada pelo marido.

O MILAGRE

Dois dias depois, estava o Miranda no escritório, batendo umas faturas, numa depressão medonha. Numa mesa perto, o Azevedo, que era um velho patusco, estava dizendo, com alegre ferocidade: — “Eu acredito em milagre. E digo mais: — só acredito em milagre”. Então, na sua tristeza, o Miranda pensou que, para ele, o milagre seria o êxito no seu amor por Luci. Pois bem: — neste justo momento, o boy o chama ao telefone. Levanta-se e atende. Ouve uma voz feminina, que diz:

— Sabe quem está falando?

Confessa:

— Não, não sei. Quem é?

Resposta:

— Luci

— Que Luci?

E a outra, provocante:

— A Luci em que você está pensando.

O trote pareceu-lhe evidente. Foi grosseiro no telefone:

— Sossega o periquito. E das duas uma: — ou diz quem é ou desligo.

Do outro lado da linha, a pequena ria. E só uns cinco minutos depois é que Miranda convenceu-se em definitivo: era Luci, sim, a fabulosa Luci, que o procurava e ligava para ele. No maior deslumbramento de sua vida, encheu-se de dedos. Ela ria, ainda:

— Você pensa que eu não percebo que você não tira os olhos de cima de mim? Podia ter me telefonado, ora essa, e por que não?

O inepto pergunta: — “E seu marido?”. Respondeu: — “Meu marido não está sempre em casa”. No fim de meia hora de conversa, Miranda, num arranco de coragem suicida, propõe-lhe um encontro, que a menina aceita com uma deliciosa naturalidade. Ela fez, porém, uma ressalva:

— Tem que ser num interior.

Admirou-se: — “Como num interior?”. Com certa impaciência, a outra põe os pingos nos is: — “Você não tem um apartamento?”. O pobre-diabo quase agonizou no telefone. Desvairado, promete: — “Arranja-se. É o de menos”. Larga o telefone com as pernas bambas, a vista turva. Senta-se, aperta a cabeça entre as mãos e procura pôr ordem nas idéias.

Pensa: — “Deve ser sonho ou, então, é o milagre”. Procura o Guedes, conta-lhe tudo:

— Entrou de sola, compreendeste? E fiquei de telefonar, de manhã, dando o endereço do apartamento.

O Guedes, atônito, via ruir por terra a sua teoria da “esposa bem tratada”.

Miranda, aflito, cutucava-o:

— Temos que arranjar um apartamento, digno da “Rainha de Sabá”.

ABERRAÇÃO

Miranda conseguiu o que queria com o Lobato. Este, garoto milionário e irresponsável, montara um apartamento que só faltava falar. Tinha lá de tudo, inclusive uma geladeira suntuária, monumental. O Lobato entrega-lhe a chave e aconselha: — “Mostra-lhe a geladeira!”. E justificava: “Mulher se impressiona muito com geladeiras!”. Miranda embolsa a chave e bufa: — “Tu és uma mãe”.

No dia seguinte pela manhã, diz à pequena, pelo telefone, o endereço do apartamento em Copacabana. Combinaram tudo, de pedra e cal, para as quatro horas. Miranda continuava inseguro. Dizia até para o Guedes: — “Será que eu estou sonhando?”. O Guedes, interessado no episódio, foi levá-lo até a esquina do edifício. Miranda chegou antes, uns quarenta minutos na frente. Às quatro em ponto, Luci apareceu. Diante dela, ele balbucia, numa embriaguez total:

— Minha gordinha!

O FIM

Duas horas depois, Luci está diante do espelho, pondo batom. Tem um lírico lamento: — “Você me arranhou com a sua barba!”. E, então, ele vem por trás e, na sua felicidade, quer saber: — “Tu gostas de mim?”. Luci vira-se: — “Eu não gosto de ti”. Ele não entende. Insiste: — “Nem um pouquinho?”. Ela responde, doce, mas inapelável: — “Nada”. E ele atônito: — “Sério?”. Encara-o: — “Seríssimo!”. Sentiu que Luci não mentia e, no seu despeito, segura aquela mulher possuída:

— Se não gostas de mim, por que traíste teu marido?

Luci ergue-se. Apanha a bolsa, enquanto o amante espera. Diz-lhe:

— Traí meu marido porque, todas as noites, ele tira a dentadura e põe num copo.

Miranda não fez um gesto quando a pequena passou por ele, sem uma palavra, um olhar, um sorriso. Deixou-a ir e, só no quarto, sentou-se na extremidade da cama e pôs-se a chorar.
________________________________________________________________
A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
Leia mais...