O Guedes avisou:
— A Luci é dureza, percebeste?
Miranda virou-se:
— Dureza? E por que dureza?
O outro foi explicando: — “É séria por natureza e, além disso, o Braga é
o melhor marido do mundo, caxias até debaixo d’água. Tu achas que ela
vai trair um marido que nunca lhe fez nada, que a trata como uma rainha?
Pensa bem”.
Impressionado, Miranda balbucia:
— Eu não sabia que o Braga era assim. E deve ser o único, porque todos
os maridos que eu conheci, até agora, são uns bestalhões de fivela!
Então o Guedes, que conhecia o casal, que lhe freqüentava a casa, que
almoçava e jantava lá de vez em quando, entrou a traçar o retrato
daquele esposo extraordinário. Entre outras coisas que abalaram o
Miranda, revelou o seguinte: — o Braga jamais traíra a mulher, jamais.
Insistiu:
— Então achas que uma mulher tão bem tratada vai trair?
O outro, no seu despeito e na sua frustração, rosna: — “Quem sabe?”. Guedes pulou:
— Quem sabe, uma ova! E vou te dizer o seguinte: — queres saber o que é
mulher séria? — Pausa e conclui: “Séria é a mulher bem tratada. Portanto
desiste, rapaz, porque desse mato não sai cachorro, ou coelho, sei
lá!”.
O APAIXONADO
Miranda era conhecido como o sujeito que tinha amores imortais, de
quinze minutos. Mas a paixão pela esposa do Braga parecia um sentimento
inédito na sua vida. Há três meses que gostava da Luci e só da Luci.
Conhecera-a numa festa em casa de família. Podia ter convidado a pequena
para dançar. Mas era de uma timidez agressiva em certas ocasiões.
Apresentado à jovem senhora, mal pôde gaguejar um “muito prazer”, e foi
só. Mas não lhe tirava os olhos de cima e não sossegou enquanto não se
sentou perto de Luci. Ela conversava com outra senhora e o assunto era
parto. Miranda ouviu a pequena dizer:
— Graças a Deus, nunca levei um ponto!
Referia-se aos próprios partos, que eram simples, fáceis, quase
indolores. E Miranda, que não entendia nada de maternidade, achou que o
fato de uma parturiente não levar ponto constituía um privilégio
altíssimo. Saiu da festa febril de paixão. Luci era do “tipo gordinho”
que, desde menino, o deslumbrava. Dia após dia, ele viveu em função
desse amor. Abriu o coração com o seu amigo Guedes. Este o dissuadiu.
Miranda considerou o raciocínio do amigo e levantou-se:
— Acho que você tem razão. O golpe é desistir.
De pé também, o Guedes bateu-lhe no ombro:
— Arranja outra. Mulher é que não falta. Escolhe uma que não seja bem tratada pelo marido.
O MILAGRE
Dois dias depois, estava o Miranda no escritório, batendo umas faturas,
numa depressão medonha. Numa mesa perto, o Azevedo, que era um velho
patusco, estava dizendo, com alegre ferocidade: — “Eu acredito em
milagre. E digo mais: — só acredito em milagre”. Então, na sua tristeza,
o Miranda pensou que, para ele, o milagre seria o êxito no seu amor por
Luci. Pois bem: — neste justo momento, o boy o chama ao telefone.
Levanta-se e atende. Ouve uma voz feminina, que diz:
— Sabe quem está falando?
Confessa:
— Não, não sei. Quem é?
Resposta:
— Luci
— Que Luci?
E a outra, provocante:
— A Luci em que você está pensando.
O trote pareceu-lhe evidente. Foi grosseiro no telefone:
— Sossega o periquito. E das duas uma: — ou diz quem é ou desligo.
Do outro lado da linha, a pequena ria. E só uns cinco minutos depois é
que Miranda convenceu-se em definitivo: era Luci, sim, a fabulosa Luci,
que o procurava e ligava para ele. No maior deslumbramento de sua vida,
encheu-se de dedos. Ela ria, ainda:
— Você pensa que eu não percebo que você não tira os olhos de cima de mim? Podia ter me telefonado, ora essa, e por que não?
O inepto pergunta: — “E seu marido?”. Respondeu: — “Meu marido não está
sempre em casa”. No fim de meia hora de conversa, Miranda, num arranco
de coragem suicida, propõe-lhe um encontro, que a menina aceita com uma
deliciosa naturalidade. Ela fez, porém, uma ressalva:
— Tem que ser num interior.
Admirou-se: — “Como num interior?”. Com certa impaciência, a outra põe
os pingos nos is: — “Você não tem um apartamento?”. O pobre-diabo quase
agonizou no telefone. Desvairado, promete: — “Arranja-se. É o de menos”.
Larga o telefone com as pernas bambas, a vista turva. Senta-se, aperta a
cabeça entre as mãos e procura pôr ordem nas idéias.
Pensa: — “Deve ser sonho ou, então, é o milagre”. Procura o Guedes, conta-lhe tudo:
— Entrou de sola, compreendeste? E fiquei de telefonar, de manhã, dando o endereço do apartamento.
O Guedes, atônito, via ruir por terra a sua teoria da “esposa bem tratada”.
Miranda, aflito, cutucava-o:
— Temos que arranjar um apartamento, digno da “Rainha de Sabá”.
ABERRAÇÃO
Miranda conseguiu o que queria com o Lobato. Este, garoto milionário e
irresponsável, montara um apartamento que só faltava falar. Tinha lá de
tudo, inclusive uma geladeira suntuária, monumental. O Lobato
entrega-lhe a chave e aconselha: — “Mostra-lhe a geladeira!”. E
justificava: “Mulher se impressiona muito com geladeiras!”. Miranda
embolsa a chave e bufa: — “Tu és uma mãe”.
No dia seguinte pela manhã, diz à pequena, pelo telefone, o endereço do
apartamento em Copacabana. Combinaram tudo, de pedra e cal, para as
quatro horas. Miranda continuava inseguro. Dizia até para o Guedes: —
“Será que eu estou sonhando?”. O Guedes, interessado no episódio, foi
levá-lo até a esquina do edifício. Miranda chegou antes, uns quarenta
minutos na frente. Às quatro em ponto, Luci apareceu. Diante dela, ele
balbucia, numa embriaguez total:
— Minha gordinha!
O FIM
Duas horas depois, Luci está diante do espelho, pondo batom. Tem um
lírico lamento: — “Você me arranhou com a sua barba!”. E, então, ele vem
por trás e, na sua felicidade, quer saber: — “Tu gostas de mim?”. Luci
vira-se: — “Eu não gosto de ti”. Ele não entende. Insiste: — “Nem um
pouquinho?”. Ela responde, doce, mas inapelável: — “Nada”. E ele
atônito: — “Sério?”. Encara-o: — “Seríssimo!”. Sentiu que Luci não
mentia e, no seu despeito, segura aquela mulher possuída:
— Se não gostas de mim, por que traíste teu marido?
Luci ergue-se. Apanha a bolsa, enquanto o amante espera. Diz-lhe:
— Traí meu marido porque, todas as noites, ele tira a dentadura e põe num copo.
Miranda não fez um gesto quando a pequena passou por ele, sem uma
palavra, um olhar, um sorriso. Deixou-a ir e, só no quarto, sentou-se na
extremidade da cama e pôs-se a chorar.
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terça-feira, 6 de setembro de 2011
Esposa bem tratada
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