O amigo foi no escritório buscá-lo:
— Vamos tomar um drinque.
E ele:
— Fica para outro dia. Hoje não posso.
Mas o amigo, que era íntimo, que tinha confiança, fez pé firme:
— Outro dia uma ova! Tem que ser agora! Vamos, põe o paletó, anda!
O dr. Hildegardo pôs o paletó e, tirando os óculos e guardando-os no bolsinho do lenço, foi dizendo:
— Vou chegar tarde em casa! É o diabo!
— Por quê, ora essa?
E ele, entrando no elevador:
— Minha mulher não gosta! Minha mulher fica tiririca!
Dirigiram-se para o bar da esquina, sentaram-se lá. Enquanto o garçom os
servia, pensava na mulher, na cozinheira e na filha. E, depois de beber
um e mais outro, o dr. Hildegardo estalou a língua e, com certa
euforia, fez a revelação envaidecida:
— Estou casado há vinte e cinco anos. E nunca traí minha mulher.
— Nunca?
Repetiu, já inspirado pelo terceiro drinque:
— Nunca.
O MARIDO FIEL
O amigo não acreditou: exaltou-se, até:
— Não existe homem fiel! Nunca existiu!
— Pois eu sou. Fidelíssimo. Te juro, te dou minha palavra de honra. E te
digo mais: no fim do mês comemoro minhas bodas de prata. Estás
convidado!
— O homem fiel é uma besta! Podia andar de quatro, trotar no meio da rua!
Meia hora depois, dr. Hildegardo teve um lampejo, no fundo de sua
embriaguez; catou o relógio; espiou os ponteiros: “Oito horas!”. Gemeu:
“Minha mulher deve estar bufando!”. Pagou a despesa, arrastou o amigo:
“Vais comigo. Tens que ir! Minha mulher me mata!”. O amigo foi,
resmungando, mas foi; entraram num táxi e, durante toda a viagem, o
assunto pouco variou. Dr. Hildegardo, em pânico, excitava o chauffeur.
“Mete o pé, com apetite!”. De repente, bate na testa:
— Vais me fazer um favor, de mãe pra filho.
— Qual?
E ele:
— Vais dizer a minha mulher que já jantaste.
— Ué!
Debruçado no ombro do outro, num bafo de bêbado, ia explicando:
— Pelo seguinte: minha mulher não gosta que eu leve ninguém pra jantar. Não topa. Nem ela, nem a cozinheira. Estrilam.
O outro arregalou os olhos:
— Já vi tudo!
O JANTAR
Entraram em casa, preocupadíssimos. Mesmo o amigo contagiara-se do
terror e do sentimento de culpa. D. Odete, assim que viu o marido, nem
ligou para o acompanhante. Via-se logo que era uma senhora
distintíssima. Dr. Hildegardo estacou; e ela, pondo as mãos nos quadris e
depois de olhá-lo de alto a baixo, balançou a cabeça:
— Sim, senhor!
O marido, quase normalizado do impacto da mulher, arremessou-se. Deu-lhe
dois beijos estalados, um em cada face. Engrolou uma explicação
qualquer, relativa a um negócio misterioso e imprevisto. Ela,
ressentida, interpelava-o:
— Isso são horas?
A filha sussurrava para o namorado:
— Papai é um caso sério!
Dr. Hildegardo pendurava-se no ombro da esposa: — “Trouxe um amigo,
filhinha, mas ele já jantou!”. Então, a esposa, satisfeita com o sabão
passado no marido, condescendeu em ser apresentada ao amigo que já
jantara. A cozinheira, fula, batia com todas as tampas de panela. E d.
Odete invocou o testemunho do visitante:
— Imagine o senhor, se é possível! Isso não é hora de jantar! Minha cozinheira fica por conta e com razão, com toda razão!
O amigo, que se chamava Bezerra, com um sono de bêbado, rosnou:
— Realmente... Realmente...
Durante o jantar, o dr. Hildegardo fez a corte à mulher, da maneira mais
servil e deslavada. Batia nos peitos: “Sou um cara de sorte, seu
Bezerra! Minha mulher é uma santa!”.
Insistiu com o amigo:
— Estás convidado para as bodas de prata!
A SERPENTE
No dia seguinte, o Bezerra compareceu ao escritório do dr. Hildegardo; baixou a voz:
— É sério aquilo que me disseste? É batata?
O dr. Hildegardo confirmou, categórico:
— Mas evidente. E trair minha mulher por quê? A título de quê?
— Realmente, realmente.
Dr. Hildegardo ergueu-se. Ficou andando de um lado para o outro, no gabinete, na comovida emoção de sua felicidade matrimonial:
— Vinte e cinco anos não são vinte e cinco dias. O maior golpe que eu
dei na minha vida foi o casamento. Um alto negócio! Aquilo já não é
esposa, é mãe, é o diabo!
O Bezerra, que estava afundado na poltrona, levantou-se; hesitou, antes de fazer a sugestão:
— Olha aqui; hoje eu vou passear com duas fulanas. Uma é minha, claro; mas a outra não tem companhia. Que tal?
Aproximou-se mais do amigo; segredou, numa tentação: “Material de
primeira!”. Dr. Hildegardo recuou, como se duvidasse da própria vista e
dos próprios ouvidos:
— Mas você tem coragem, fulano? Conhecendo minha mulher e sabendo que
eu, nunca, Ouviste, jamais? Você se esquece que no fim do mês comemoro
as bodas de prata? Francamente!
O amigo explodiu:
— Deixa de ser besta, Hildegardo, tira o cavalo da chuva! Que é que tem?
Todo mundo faz isso! Em matéria de amor, qualquer homem é um canalha!
— Eu, não! Eu, absolutamente! Ora veja! E digo mais: no terreno sexual,
só tolero uma posição, a clássica, a tradicional. Sou do “papai-mamãe”
rasgado.
O outro, porém, insistiu numa obstinação quase indecente; seus conselhos
tinham o seguinte nível: “Só uma vez, seu imbecil! A pequena é um
pirãozinho”. Dr. Hildegardo, já transpirando, resistia: “Não! Nunca!”.
Novos argumentos e, por fim, a exaltação. O Bezerra segurava, com as
duas mãos e pela gola, o amigo indefeso: “Escuta, ó cara! O sujeito que
só conhece uma mulher é um cretino! Tenha vergonha!”. Quarenta minutos
depois, o derrotado dr. Hildegardo telefonava para casa: “Filhinha,
imagina só o abacaxi. Estou tão amolado! Apareceu um negócio importante,
de forma que eu não posso jantar...”. Quando desligou, virou-se para o
amigo, que, do lado, numa satisfação inteiramente gratuita e torva,
esfregava as mãos; e disse, com ar de mártir:
— Estás querendo ver minha caveira. No duro que estás!
Desceu do elevador com o amigo, rumo à primeira infidelidade, com o ar
típico e insofismável do condenado à morte; gemia: “Estou metendo os pés
em vinte e cinco anos de felicidade”.
A OUTRA
No dia seguinte, era o próprio dr. Hildegardo quem andava atrás do
Bezerra; assim que o encontrou, fez a pergunta sôfrega: “Vamos lá outra
vez?”. O amigo exigiu um relatório: se tinha gostado; se o material era
ou não um grande material; se a fulana era um pirãozinho ou... Dr.
Hildegardo, evocativo, maravilhado, dava o seu depoimento autorizado: “É
muito liga, sim; uma grande praça”. O outro o cutucava:
— Não te disse? Vai por mim, que você vai bem! Aproveita!
Foram lá essa vez e mais outras. De quando em quando tinha crises
morais: “Mas não está direito! Eu amo a minha mulher”. Um dia, beberam
juntos, dr. Hildegardo e o Bezerra. E este, depois de entornar vários
chopes, teve uma sinceridade feroz de ébrio: “Tua mulher é uma jararaca!
Um bucho!”. Dr. Hildegardo, então, chorou. E houve, na mesa do bar,
entre eles uma polêmica de bêbados. O marido pretendendo que a esposa
era uma santa, uma mãe — uma adoração de mulher.
AS BODAS DE PRATA
Enfim, chegou o dia das bodas de prata. O Bezerra estava lá, firme e
grave. Vieram parentes até do Norte. O namorado da filha única do casal
compareceu também, de azul-marinho. E, quando não faltava mais ninguém,
dr. Hildegardo, no meio da sala, fez um gesto; e pediu: “Silêncio!
Silêncio!”. Todos se calaram; pensou-se num discurso. E então, o dr.
Hildegardo, em voz bem alta e nítida, disse:
— Comunico que, neste momento, deixo esta casa!
Silêncio profundo, enquanto cada um dos parentes ia assimilando o fato. A
primeira a reagir foi d. Odete: caiu dura. Houve um tumulto na casa
toda. As hipóteses estavam no ar, vivas: loucura? Embriaguez? Pilhéria?
Mas já o dr. Hildegardo, seguido do triunfante Bezerra, varava a muralha
dos convidados, a caminho da porta, atropelando as senhoras
enchapeladas. A filha tinha um desmaio. E o futuro genro se arremessava,
no encalço do sogro. Na calçada, o rapaz o alcançou; balbuciou a
pergunta: “Mas que foi que houve? Não faça isso!”. Então, o dr.
Hildegardo abriu-se:
— O que houve foi o seguinte: há vinte e cinco anos que minha mulher me faz de palhaço! E chega! Uma chata!
— Mas sua filha?
Dr. Hildegardo, que já ia mais adiante, estacou: “Ah, sim, a filha!”. Veio ao encontro do genro:
— Queres um conselho, rapaz? Manda a minha filha passear. Puxou ao gênio
da mãe, imagina! Vai no meu golpe; deixa de ser burro! Chuta a minha
filha!
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terça-feira, 6 de setembro de 2011
Vinte e cinco anos de casados
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