terça-feira, 6 de setembro de 2011

Vinte e cinco anos de casados

O amigo foi no escritório buscá-lo:

— Vamos tomar um drinque.

E ele:

— Fica para outro dia. Hoje não posso.

Mas o amigo, que era íntimo, que tinha confiança, fez pé firme:

— Outro dia uma ova! Tem que ser agora! Vamos, põe o paletó, anda!

O dr. Hildegardo pôs o paletó e, tirando os óculos e guardando-os no bolsinho do lenço, foi dizendo:

— Vou chegar tarde em casa! É o diabo!

— Por quê, ora essa?

E ele, entrando no elevador:

— Minha mulher não gosta! Minha mulher fica tiririca!

Dirigiram-se para o bar da esquina, sentaram-se lá. Enquanto o garçom os servia, pensava na mulher, na cozinheira e na filha. E, depois de beber um e mais outro, o dr. Hildegardo estalou a língua e, com certa euforia, fez a revelação envaidecida:

— Estou casado há vinte e cinco anos. E nunca traí minha mulher.

— Nunca?

Repetiu, já inspirado pelo terceiro drinque:

— Nunca.

O MARIDO FIEL

O amigo não acreditou: exaltou-se, até:

— Não existe homem fiel! Nunca existiu!

— Pois eu sou. Fidelíssimo. Te juro, te dou minha palavra de honra. E te digo mais: no fim do mês comemoro minhas bodas de prata. Estás convidado!

— O homem fiel é uma besta! Podia andar de quatro, trotar no meio da rua!

Meia hora depois, dr. Hildegardo teve um lampejo, no fundo de sua embriaguez; catou o relógio; espiou os ponteiros: “Oito horas!”. Gemeu: “Minha mulher deve estar bufando!”. Pagou a despesa, arrastou o amigo: “Vais comigo. Tens que ir! Minha mulher me mata!”. O amigo foi, resmungando, mas foi; entraram num táxi e, durante toda a viagem, o assunto pouco variou. Dr. Hildegardo, em pânico, excitava o chauffeur. “Mete o pé, com apetite!”. De repente, bate na testa:

— Vais me fazer um favor, de mãe pra filho.

— Qual?

E ele:

— Vais dizer a minha mulher que já jantaste.

— Ué!

Debruçado no ombro do outro, num bafo de bêbado, ia explicando:

— Pelo seguinte: minha mulher não gosta que eu leve ninguém pra jantar. Não topa. Nem ela, nem a cozinheira. Estrilam.

O outro arregalou os olhos:

— Já vi tudo!

O JANTAR

Entraram em casa, preocupadíssimos. Mesmo o amigo contagiara-se do terror e do sentimento de culpa. D. Odete, assim que viu o marido, nem ligou para o acompanhante. Via-se logo que era uma senhora distintíssima. Dr. Hildegardo estacou; e ela, pondo as mãos nos quadris e depois de olhá-lo de alto a baixo, balançou a cabeça:

— Sim, senhor!

O marido, quase normalizado do impacto da mulher, arremessou-se. Deu-lhe dois beijos estalados, um em cada face. Engrolou uma explicação qualquer, relativa a um negócio misterioso e imprevisto. Ela, ressentida, interpelava-o:

— Isso são horas?

A filha sussurrava para o namorado:

— Papai é um caso sério!

Dr. Hildegardo pendurava-se no ombro da esposa: — “Trouxe um amigo, filhinha, mas ele já jantou!”. Então, a esposa, satisfeita com o sabão passado no marido, condescendeu em ser apresentada ao amigo que já jantara. A cozinheira, fula, batia com todas as tampas de panela. E d. Odete invocou o testemunho do visitante:

— Imagine o senhor, se é possível! Isso não é hora de jantar! Minha cozinheira fica por conta e com razão, com toda razão!

O amigo, que se chamava Bezerra, com um sono de bêbado, rosnou:

— Realmente... Realmente...

Durante o jantar, o dr. Hildegardo fez a corte à mulher, da maneira mais servil e deslavada. Batia nos peitos: “Sou um cara de sorte, seu Bezerra! Minha mulher é uma santa!”.

Insistiu com o amigo:

— Estás convidado para as bodas de prata!

A SERPENTE

No dia seguinte, o Bezerra compareceu ao escritório do dr. Hildegardo; baixou a voz:

— É sério aquilo que me disseste? É batata?

O dr. Hildegardo confirmou, categórico:

— Mas evidente. E trair minha mulher por quê? A título de quê?

— Realmente, realmente.

Dr. Hildegardo ergueu-se. Ficou andando de um lado para o outro, no gabinete, na comovida emoção de sua felicidade matrimonial:

— Vinte e cinco anos não são vinte e cinco dias. O maior golpe que eu dei na minha vida foi o casamento. Um alto negócio! Aquilo já não é esposa, é mãe, é o diabo!

O Bezerra, que estava afundado na poltrona, levantou-se; hesitou, antes de fazer a sugestão:

— Olha aqui; hoje eu vou passear com duas fulanas. Uma é minha, claro; mas a outra não tem companhia. Que tal?

Aproximou-se mais do amigo; segredou, numa tentação: “Material de primeira!”. Dr. Hildegardo recuou, como se duvidasse da própria vista e dos próprios ouvidos:

— Mas você tem coragem, fulano? Conhecendo minha mulher e sabendo que eu, nunca, Ouviste, jamais? Você se esquece que no fim do mês comemoro as bodas de prata? Francamente!

O amigo explodiu:

— Deixa de ser besta, Hildegardo, tira o cavalo da chuva! Que é que tem? Todo mundo faz isso! Em matéria de amor, qualquer homem é um canalha!

— Eu, não! Eu, absolutamente! Ora veja! E digo mais: no terreno sexual, só tolero uma posição, a clássica, a tradicional. Sou do “papai-mamãe” rasgado.
O outro, porém, insistiu numa obstinação quase indecente; seus conselhos tinham o seguinte nível: “Só uma vez, seu imbecil! A pequena é um pirãozinho”. Dr. Hildegardo, já transpirando, resistia: “Não! Nunca!”. Novos argumentos e, por fim, a exaltação. O Bezerra segurava, com as duas mãos e pela gola, o amigo indefeso: “Escuta, ó cara! O sujeito que só conhece uma mulher é um cretino! Tenha vergonha!”. Quarenta minutos depois, o derrotado dr. Hildegardo telefonava para casa: “Filhinha, imagina só o abacaxi. Estou tão amolado! Apareceu um negócio importante, de forma que eu não posso jantar...”. Quando desligou, virou-se para o amigo, que, do lado, numa satisfação inteiramente gratuita e torva, esfregava as mãos; e disse, com ar de mártir:

— Estás querendo ver minha caveira. No duro que estás!

Desceu do elevador com o amigo, rumo à primeira infidelidade, com o ar típico e insofismável do condenado à morte; gemia: “Estou metendo os pés em vinte e cinco anos de felicidade”.

A OUTRA

No dia seguinte, era o próprio dr. Hildegardo quem andava atrás do Bezerra; assim que o encontrou, fez a pergunta sôfrega: “Vamos lá outra vez?”. O amigo exigiu um relatório: se tinha gostado; se o material era ou não um grande material; se a fulana era um pirãozinho ou... Dr. Hildegardo, evocativo, maravilhado, dava o seu depoimento autorizado: “É muito liga, sim; uma grande praça”. O outro o cutucava:

— Não te disse? Vai por mim, que você vai bem! Aproveita!

Foram lá essa vez e mais outras. De quando em quando tinha crises morais: “Mas não está direito! Eu amo a minha mulher”. Um dia, beberam juntos, dr. Hildegardo e o Bezerra. E este, depois de entornar vários chopes, teve uma sinceridade feroz de ébrio: “Tua mulher é uma jararaca! Um bucho!”. Dr. Hildegardo, então, chorou. E houve, na mesa do bar, entre eles uma polêmica de bêbados. O marido pretendendo que a esposa era uma santa, uma mãe — uma adoração de mulher.

AS BODAS DE PRATA

Enfim, chegou o dia das bodas de prata. O Bezerra estava lá, firme e grave. Vieram parentes até do Norte. O namorado da filha única do casal compareceu também, de azul-marinho. E, quando não faltava mais ninguém, dr. Hildegardo, no meio da sala, fez um gesto; e pediu: “Silêncio! Silêncio!”. Todos se calaram; pensou-se num discurso. E então, o dr. Hildegardo, em voz bem alta e nítida, disse:

— Comunico que, neste momento, deixo esta casa!

Silêncio profundo, enquanto cada um dos parentes ia assimilando o fato. A primeira a reagir foi d. Odete: caiu dura. Houve um tumulto na casa toda. As hipóteses estavam no ar, vivas: loucura? Embriaguez? Pilhéria? Mas já o dr. Hildegardo, seguido do triunfante Bezerra, varava a muralha dos convidados, a caminho da porta, atropelando as senhoras enchapeladas. A filha tinha um desmaio. E o futuro genro se arremessava, no encalço do sogro. Na calçada, o rapaz o alcançou; balbuciou a pergunta: “Mas que foi que houve? Não faça isso!”. Então, o dr. Hildegardo abriu-se:

— O que houve foi o seguinte: há vinte e cinco anos que minha mulher me faz de palhaço! E chega! Uma chata!

— Mas sua filha?

Dr. Hildegardo, que já ia mais adiante, estacou: “Ah, sim, a filha!”. Veio ao encontro do genro:

— Queres um conselho, rapaz? Manda a minha filha passear. Puxou ao gênio da mãe, imagina! Vai no meu golpe; deixa de ser burro! Chuta a minha filha!
________________________________________________________________
A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
Leia mais...

Terence Fisher

Terence Fisher, cineasta britânico, que atuou principalmente regendo filmes da Hammer Films, nasceu em 23 de fevereiro de 1904 em Maida Vale (Londres) e faleceu em 18 de Junho de 1980 em Twickenham. Seu pai morreu quando ele tinha quatro anos de idade, ficando sua educação a cargo de sua mãe e avós.

Seus avôs de férreas tradições vitorianas o matriculam, contra sua vontade, em uma escola militar. Porém se alista na marinha mercante, como aprendiz a bordo do H. M. S. Conway, onde percorrerá o mundo durante cinco anos. Após regressar a Londres trabalha como empregado numa loja de tecidos.

Para se distrair começa a freqüentar os cines. Maravilhado com o que vê na tela, decide trabalhar na indústria cinematográfica a qualquer custo.

Em 1930 foi trabalhar na Shepard’s Bush Studios como editor, mas apenas iria dirigir seu primeiro filme em 1948, A Song for Tomorrow. Mas foi na Hammer Films que o diretor conseguiria seus mais importantes filmes. Já trabalhara para a Hammer Films em 1933 nos primeiros filmes de ficção-científica da produtora, Four-Sided Triangle e Spaceways.

Em 1957 juntou-se ao roteirista Jimmy Sangster e aos atores Peter Cushing e Christopher Lee para refilmar Frankenstein, o clássico da Universal Pictures. Tendo Cushing como o doutor Frankenstein e Lee como a criatura (totalmente deformada, pois a produção não pode contar com as formas da criatura imortalizadas por Boris Karloff, cuja patente pertencia à Universal Pictures), o filme foi um enorme sucesso.

A mesma equipe foi reunida outra vez para, no ano seguinte, filmar O Vampiro da Noite, que superou todas as expectativas e seu estupendo sucesso colocou os filmes de terror outra vez no cenário cinematográfico mundial, tendo a Hammer Films como sucessora da Universal Pictures neste terreno – tanto que esta última, em acordo, cedeu os copyrights de seus monstros para que a Hammer produzisse seus filmes.

Estas duas obras dirigidas por Fisher praticamente definiram as produções de terror até a década de 70. Além da introdução das cores neste tipo de filme, a sensualidade era também mais destacada, com a constante presença de lindas mulheres com decotes bastante provocantes e, quase sempre, com seios grandes.

Os monstros também eram apresentados de maneira direta, diferentemente do que acontecia nos filmes da Universal Pictures, sempre envolvidos com problemas com a censura e com a distribuição. Mesmo assim, Fisher impunha um rígido código moral nas suas obras: o mal era sempre derrotado no final. Fisher aproveitou-se das novas condições morais menos rígidas e das novas tecnologias cinematográficas para renovar o universo de terror.

Fisher foi, sem dúvida, um dos diretores de filmes de terror mais influentes da segunda metade do século XX. Primeiro a imprimir o estilo gótico com a tecnologia a cores da Technicolor, com ênfase no sangue, na sensualidade e horror explícito que, se hoje parecem moderados, foram uma inovação em seu tempo.

Apesar de sua temática ser sombria e escatológica, seus filmes foram comercialmente bem sucedidos, mesmo que a crítica sempre o desdenhasse, ao longo de sua carreira. Somente após sua morte é que houve um justo reconhecimento por seus trabalhos.

Seu estilo pode ser definido como próprio, uma mistura de contos de fadas, mitos e sensualidade. Ao longo disso, uma temática cristã está fortemente presente, onde as forças do mal são derrotadas por um herói através da combinação da fé em Deus com a razão, em contraste com outras personagens que ou são bastante supersticiosos ou céticos, como observou o crítico Paul Leggett (in: Terence Fisher: Horror, Myth and Religion, 2001).

Uma completa análise de seus trabalhos foi feita na obra "The Charm of Evil: The Films of Terence Fisher" de Wheeler Winston Dixon (Londres, Scarecrow Press, 1991).

Principais filmes

1947 - Colonel Bogey
1948 - To the Public Danger
1948 - Song for Tomorrow
1948 - Portrait From Life
1949 - Marry Me!
1949 - The Astonished Heart (co.)
1950 - So Long at the Fair (co.)
1951 - Home to Danger
1952 - The Last Page
1952 - Wings of Danger
1952 - Stolen Face
1952 - Distant Trumpet
1953 - Four Sided Triangle
1953 - Mantrap
1953 - Spaceways
1953 - Blood Orange
1953 - Three's Company (co.)
1954 - Face the Music
1954 - The Stranger Came Home
1954 - Mask of Dust
1954 - Final Appointment
1954 - Children Galore
1955 - Murder By Proxy
1955 - The Flaw
1955 - Stolen Assignment
1956 - The Last Man to Hang?
1957 - Kill Me Tomorrow
1957 - he Curse of Frankenstein
1958 - Horror of Dracula
1958 - The Revenge of Frankenstein
1959 - The Hound of the Baskervilles
1959 - The Man Who Could Cheat Death
1959 - The Mummy
1959 - The Stranglers of Bombay
1960 - The Two Faces of Doctor Jeckyll
1960 - The Brides of Dracula
1960 - The Sword of Sherwood Forest
1961 - The Curse of the Werewolf
1962 - The Phantom of the Opera
1962 - Sherlock Homes und das Halsband des Todes
1964 - The Horror of It All
1964 - The Gorgon
1964 - The Earth Dies Screaming
1966 - Dracula - Prince of Darkness
1966 - Island of Terror
1967 - Frankenstein Created Woman
1967 - Night of the Big Heat
1968 - The Devil Rides Out
1969 - Frankenstein Must Be Destroyed
1974 - Frankenstein and the Monster from Hell

Fontes: Terence Fisher; Wikipédia; e traduzido da"Biografía de Terence Fisher"
Leia mais...

Pai por um cheque

O pai, seu Alfredo, tinha uma frota de trezentos lotações, rodando dia e noite pela cidade. Era um homem rico, muito rico, milionário. No dia em que a filha ficou noiva, ele, numa satisfação bárbara, a chamou:

— Vem cá, minha filha, vem cá.

Diga-se de passagem que seu Alfredo, em que pese a sua fortuna imensa, tinha instrução primária e era de origem bem humilde. Sabia fazer três das quatro operações: somar, diminuir e multiplicar. Dividir, não; aos cinqüenta anos de vida, não sabia ainda dividir. Por outro lado, seus modos ou, por outra, sua falta de modos clamava aos céus. Tinha uma educação mais que discutível. E não faltava quem, despeitado com a sua prosperidade, rosnasse: “É um cavalo!”.

Pois bem, no dia em que sua filha, Dorinha, ficou noiva do dr. Fernando, ele a convocou: “Tudo bem, minha filha? Tudo OK?”. A menina suspirou: “Tudo!”. Mascando um charuto infecto, o velho olhava em torno: “Não está faltando nada?”. Num gesto grosseiro, bateu no bolso, e insistia:

— Dinheiro há! Dinheiro há! Se quiserem alguma coisa, é só pedir. O que tu queres? Fala! Queres alguma coisa?

Dorinha vacila. E, então, diante do pai, sonha em voz alta:

— Papai, o senhor sabe qual é a coisa que eu mais desejo na vida? Sabe?

— O que é?

E ela:

— Um filho. Quero, sempre quis um filho, ouviu, papai?

Seu Alfredo esfrega as mãos:

— Mas isso é pinto, é canja, minha filha. — E repetia: “É o de menos. Casa e pronto, compreendeste? Batata, minha filha, batata!”.

FLOR DE MENINA

Havia entre pai e filha um contraste de arrepiar. Enquanto seu Alfredo representava uma espécie de gângster, de Al Capone dos lotações, Dorinha era uma figurinha frágil, delicada, ou, como diziam, um biscuit. Aprendera nos melhores colégios, sabia correntemente o francês, o inglês, bordava com um gosto de fada e era uma pianista de mão cheia. Aos dezesseis anos, apaixonara-se pelo advogado da companhia do pai, o dr. Fernando, rapaz bonito, vagamente afetado, que beijava a mão das senhoras e tinha sempre o ar de quem lavou o rosto há dez minutos. Mas a sua característica que mais impressionava e deslumbrava o sogro era a seguinte: chovesse ou fizesse sol, o dr. Fernando andava de colete e polainas. De resto um homem que sabia viver. Seu Alfredo, com sua contundente falta de tato e sua bestial espontaneidade, dizia abertamente:

— Gosto de meu futuro genro porque é um puxa-saco! Geralmente, o puxa-saco dá um marido e tanto!

Presunção, como se vê, um tanto precária. Mas o fato é que o noivado ia de vento em popa. Seu Alfredo vivia açulando as mulheres da família:

— Quero um casamento de arromba! Gastem sem pena, nem dó! — E mostrava a carteira recheada, repetindo: “Dinheiro há! Dinheiro há!”.

O NETO

No dia do casamento, foi até interessante e impróprio. Seu Alfredo, sem nenhuma noção da própria inconveniência, dava tapas imensos nas costas do genro:

— Quero um neto, ouviu? Um neto caprichado! A jato!

Ria, ao clamar a pilhéria. E tinha, mal comparando, um riso grosso e soluçante de cachorro de desenho animado. Os convidados riram também. Mas um vizinho, aliás um frustrado, cochichou ao ouvido de outro: “Que animal!”. Referia-se, é claro, ao destemperado dono da casa. Muito bem. Na altura da meia-noite, partem os noivos para a lua-de-mel. Mas antes que o automóvel arrancasse seu Alfredo enfiou o carão no interior do carro:

— Olha o meu neto! Quero o meu neto!

E o genro grave:

— Perfeitamente, perfeitamente.

CALAMIDADE

No fim de uns vinte dias, voltou o casal. A mãe, d. Eduarda, de olho rutilante, quer saber: “Tudo bem, minha filha?”. Tudo bem, sim. Todavia, a pequena parece inquieta: “Mamãe, o negócio é o seguinte: eu ainda não estou sentindo nada”. D. Eduarda acha graça: “Ainda é cedo. Calma, minha filha, calma!”. No dia seguinte, dr. Fernando vai reassumir o cargo na firma. O sogro, porém, quase irritado, mandou-o de volta:

— Não, senhor! Em absoluto! O seu lugar é ao lado de sua esposa!

O outro reluta: “E o emprego?”. Seu Alfredo trovejou:

— Você agora só tem o emprego de marido de minha filha. Só. Percebeu?

Como resistir a um sogro que tinha trezentos lotações rodando, independentemente de prédios, avenidas, terrenos, o diabo? O velho veio trazê-lo, cordialmente, até a porta. Olha para os lados, e baixa a voz:

— O negócio do meu neto está caminhando direitinho? Ótimo! E olha: no dia em que o médico disser que é batata, tu passas por aqui, que eu te dou um cheque de cem mil cruzeiros, pra teus alfinetes!

DECEPÇÃO

O tempo passou. No fim de quatro meses, a decepção era trágica: nada, absolutamente nada. Dorinha voltava de suas visitas mensais ao médico numa depressão medonha: “Minhas amigas têm filhos até em pé. E eu não, por quê?”. O sogro perdeu a paciência com o genro: “Mas o que é que há contigo, rapaz? Estás dormindo no ponto?”. Metido no seu eterno colete, nas suas indescritíveis polainas, dr. Fernando abria os braços: “Não compreendo”. A título de espicaçá-lo, o velho piscava o olho:

— Sou homem de uma palavra só. Disse que te dava cem contos por neto, não disse? Pode contar. É dinheiro em caixa!

Desesperado, dr. Fernando corre a um médico: faz todos os exames. E recebe um impacto quando o médico, batendo no seu ombro, anuncia:

— Não pode ter filho, ouviu? Não pode.

DESESPERO

Dr. Fernando teve medo da reação da mulher, dos sogros. Guardou para si, só para si, o resultado. Com um descaro que as circunstâncias impunham, simulava um espanto imenso: “Mas eu não posso compreender!”. Verificava-se o seguinte: a lânguida, meiga, diáfana Dorinha tinha uma única e selvagem paixão: a maternidade. Queria ser mãe, eis tudo. Acuado pelo sogro, dr. Fernando refugiava-se na seguinte desculpa: “Mas eu não posso fazer milagres!”.
O sogro partiu para ele, de dedo espetado: “Fazer filho não é milagre, nunca foi milagre, seu bestalhão!”.

O FIM

Transcorreu mais um ano. Dr. Fernando andava, em casa, pelos cantos, numa humilhação treda e torva. Quanto a Dorinha, perdera o viço, a alegria de viver, petrificada no seu desgosto. E, de repente, acontece realmente o milagre: Dorinha vai ao médico e volta com a grande notícia: “Estou, estou!”. No delírio geral, houve uma única exceção: a do pai presuntivo, que, sentado, as duas mãos em cima dos joelhos, esbugalhou os olhos, incapaz de uma palavra. Finalmente, ele ergue-se: vira-se para a mulher: “Vou dar a notícia pessoalmente a teu pai”.

Apanha o automóvel e voa para a firma de lotações. Salta lá, precipita-se para o gabinete do velho. Seu Alfredo teve um choque tremendo. Abraçou-se chorando ao genro: determinou que se encerrasse o expediente mais cedo. Enfim, um autêntico carnaval.

Finalmente, vira-se para o rapaz: — “Eu te prometi quanto mesmo? Cem, não foi?”. Então, o genro aproxima-se e, com um meio riso ignóbil, conta-lhe o exame feito no médico: “Não posso ser pai, compreendeu?”. Respira fundo e completa:

— Nessas condições, quero mais. Acho pouco cem. Trezentos, no mínimo.

O velho levantou-se, assombrado. Súbito, pôs-se a berrar:

— Ah, não é teu? O filho não é teu? Então, tu não vais levar um níquel, um tostão! Agora, rua, ouviu? Rua!

O genro saiu de lá, debaixo de pescoções.
________________________________________________________________
A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
Leia mais...