sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Gérard de Nerval

Contemporâneo de Victor Hugo, Musset e Lamartine, Nerval nada tem em comum com esses românticos franceses: como Edgar Allan Poe, cresceu de olhos postos na Alemanha de Hoffmann e foi um precursor do simbolismo, de Baudelaire e do surrealismo.

Gérard Labrunie, que adotou o pseudônimo Gérard de Nerval, nasceu em Paris em 22 de maio de 1808. Filho de um médico militar, perdeu a mãe aos dois anos e passou a infância junto ao avô, na região do Valois. Em 1822 foi estudar em Paris, onde freqüentou os círculos artísticos e dissipou a fortuna na boêmia. Aos vinte anos publicou uma tradução do Faust, de Goethe, que fascinou o autor.

Em 1934 Nerval viajou à Itália e, de volta, apaixonou-se pela atriz Jenny Colon, que se transformaria em imagem mítica das futuras obras do poeta. Nerval também viajou pela Alemanha e pelo Oriente Médio.

Na criação de Nerval, a sonoridade da linguagem acentua a magia de seu significado, em que se misturam influências cristãs e gregas, cabalísticas e orientais, sobretudo nos sonetos de Les Chimères (As quimeras), coletânea acrescida aos contos de Les Filles du feu (1854; As filhas do fogo), que incluem Sylvie, evocação transcendente do mundo de beleza e inocência da infância no Valois.

Ainda mais significativo, para muitos, é o romance Aurélia ou Le Rêve et la vie (1855; Aurélia ou O sonho e a vida), em que imagens da amada e da Virgem Maria se mesclam oniricamente. O melhor de sua obra foi realizado nos últimos anos, em que sofreu graves crises mentais e foi várias vezes internado, acabando por enforcar-se em Paris, em 26 de janeiro de 1855.

Fonte: Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda.
Leia mais...

Kafka e a desesperança

A desesperança e a alienação do homem moderno, imerso num mundo que não consegue compreender, estão magistralmente descritas na obra de Kafka, escritor tcheco de expressão alemã.

Franz Kafka nasceu em Praga, então pertencente ao império austro-húngaro, em 3 de julho de 1883, de família judia remediada. Sua infância e adolescência foram marcadas pela figura dominadora do pai, comerciante próspero, para quem apenas o sucesso material contava.

Na obra de Kafka, a figura paterna está freqüentemente associada à opressão ou aniquilação da vontade humana, especialmente na célebre Brief an den Vater (1919; Carta a meu pai).

Na formação intelectual de Kafka tiveram peso especial a leitura de Heinrich von Kleist, Flaubert, Pascal e Kierkgaard e o ambiente de Praga, cidade medieval gótica dotada de elementos eslavos, alemães e de barroco sombrio.

De 1901 a 1906, estudou direito na Universidade de Praga, onde conheceu seu grande amigo (e posterior biógrafo) Max Brod. Começou então a freqüentar os círculos literários e políticos da pequena comunidade judaico-alemã, na qual circulavam idéias e atitudes críticas e inconformistas, com que Kafka se identificava. Concluído o curso, empregou-se em 1908 numa companhia de seguros, como inspetor de acidentes de trabalho.

Apesar da competência profissional e da consideração que lhe dispensavam os colegas de trabalho, Kafka sempre se sentiu insatisfeito, pois o emprego o impedia de dedicar-se totalmente à atividade literária. Também a vida emocional foi conturbada, com noivados e amores infelizes.

Tais circunstâncias acentuaram o sentimento de solidão e desamparo que nunca o abandonaria e que ele próprio manifestou nos fragmentos publicados em 1909 sob o título Beschreibung eines Kampfes (Descrição de uma luta) e publicado na íntegra em 1936. Nessa inquietante e perturbadora narração, que passou quase despercebida, o mundo dos sonhos, tema constante na produção do autor, adquiria uma desconcertante e persistente lógica no mundo da realidade.

Em 1912 Kafka escreveu a maior parte do romance Amerika, que permaneceu inacabado e foi publicado postumamente em 1927. Em vida, publicou apenas Die Verwandlung (1915; A metamorfose), em que o personagem acorda certo dia transformado num imenso e repugnante inseto; Das Urteil (1916; A sentença); In der Strafkolonie (1919; Na colônia penal), que narra as torturas a que são submetidos presidiários que desconhecem a natureza dos crimes que cometeram; e Ein Landarzt (1919; Um médico rural), coletânea de contos.

Suas obras-primas, Der Prozess (1925; O processo) e Das Schloss (1926; O castelo), só foram publicadas postumamente por Max Brod. Nesses romances, a ambigüidade onírica do peculiar universo kafkiano e as situações de absurdo existencial chegam a limites insuspeitados. No primeiro, o bancário Joseph K., por razões que nunca chega a descobrir, é preso, julgado e condenado por um misterioso tribunal. A desolada poesia de sua obra, em estilo sóbrio e realista, não nascia, porém, da resignação, mas do desejo de encontrar um fundamento espiritual capaz de explicar a contradição entre o desejo humano e a realidade cotidiana.

Afligido pela tuberculose, Kafka submeteu-se, a partir de 1917, a longos períodos de repouso. Em 1922 deixou definitivamente o emprego e, excetuadas breves temporadas em Praga e Berlim, passou o resto da vida em sanatórios e balneários.

Morreu em 3 de junho de 1924, em Kierling, perto de Viena. Contra o desejo expresso do escritor, que queria que seus inéditos fossem queimados após sua morte, Max Brod publicou romances, textos em prosa, correspondência pessoal e diários de Kafka. Sua obra teve profunda influência sobre movimentos artísticos como o surrealismo, o existencialismo e o teatro do absurdo.

Fonte: Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda.
Leia mais...

O grande viúvo

Na volta do cemitério, ele falou para a família:

— Bem. Quero que vocês saibam o seguinte: — minha mulher morreu e eu também vou morrer.

Houve em torno um espanto mudo. Os parentes entreolharam-se. O pai do viúvo ergueu-se:

— Calma, meu filho, calma!

Jair virou-se, violento:

— Calma porque a mulher é minha e não sua! Pois fique sabendo, meu pai: — eu não tenho calma, não quero ter calma e só não me mato agora mesmo, já, sabe por quê?

Uma tia solteirona atalhou:

— Tenha fé em Deus!

Por um momento, Jair esteve para soltar um palavrão. Dominou-se, porém. Numa serenidade intensa, fremente, completou:

— Não me mato imediatamente porque quero fazer o mausoléu de minha mulher. Aliás, dela e meu. Quero dois túmulos, lado a lado. E vocês já sabem: — desejo ser enterrado com Dalila, perceberam?

Ninguém disse nada, e vamos e venhamos: — é muito difícil argumentar contra o desespero. E quando Jair passou, imerso na sua viuvez, a caminho do andar superior, os presentes o acompanharam com o olhar, esmagados de tanta dor. Ele subiu lentamente a escada e foi trancar-se no quarto.

O INCONSOLÁVEL

Na ausência do rapaz, um tio arrisca: — “Será que ele se mata?”. O pai apanha um cigarro e dá a sua opinião:

— Não creio. Cão que ladra não morde.

Ponderam:

— Às vezes, morde.

E o velho, que era um descrente de tudo e de todos:

— O que sei é o seguinte: — a dor de um viúvo ou de uma viúva não costuma durar mais de quarenta e oito horas.

— Não exageremos!

O pai, porém, insistia, polêmico:

— Sim, senhor, perfeitamente! — E referiu um caso concreto, que todos conheciam: — Por exemplo: — a nossa vizinha do lado. O marido foi enterrado de manhã e, de tarde, ela estava no portão, chupando Chicabon. Isso é dor que se apresente?

O episódio do sorvete calou fundo na sala. Sentindo o sucesso, o velho carregou no otimismo:

— Vamos dar tempo ao tempo. Isso passa. — E concluiu, profundo: — Tudo passa.

A DOR

Quinze dias depois, porém, o viúvo estava tão desesperado como no primeiro momento. Não se podia dar um passo naquela casa que não se esbarrasse, que não se tropeçasse num retrato, numa lembrança da morta. E mais: — sabia-se, por indiscrição da arrumadeira, que Jair dormia, todas as noites, com vestidos, camisolas, pijamas da esposa. Certa vez, foi até interessante: — ele meteu a mão no bolso e tirou, de lá, sem querer, uma calcinha da falecida. O próprio pai já não sabia o que dizer, o que pensar. Começou a rosnar que o filho estava “le-lé”, “tantã”. Com seu implacável senso comum, chegou a cogitar de internação. Tiveram que chamá-lo à ordem:

— Internação para saudade? Para viuvez? Sossega o periquito!

— Mas qualquer dia ele mete uma bala na cabeça, ora pipocas!

Alguém lembrou o que Jair dissera, isto é, que só se mataria quando estivessem concluídas as obras do mausoléu. Diante desse filho que entupia os bolsos com as calcinhas da falecida, o ancião gemia: — “Por que que uma grande dor é sempre ridícula?”. Desesperava-o que Jair passasse os dias no cemitério, agarrado a um túmulo, chorando como no primeiro dia. E o pior é que a viuvez do filho era altamente declamatória. De volta do cemitério, ele vinha para casa deblaterar:

— Não se esquece a melhor mulher do mundo! Eu desafio que alguma mulher chegue aos pés da minha!

Dalila era muito mais amada morta do que em vida. O próprio Jair acabou sentindo um certo orgulho, uma certa vaidade, dessa dor que não arrefecia. E continuava fiel à idéia do suicídio. Batia sempre na mesma tecla: — não acreditava nos viúvos e nas viúvas que sobrevivem. E quando, certa vez, o pai quis argumentar contra esse suicídio datado, ele cortou:

— Meu pai, não adianta: — o senhor já perdeu seu filho. Sou, praticamente, um defunto.

E coisa curiosa: — fosse por auto-sugestão ou por motivo de saúde, o fato é que a pele de Jair adquiria um tom esverdeado de cadáver.

O OUTRO

Então, a família começou a procurar, desesperadamente, uma maneira de salvá-lo. Foi quando um primo longe de Jair teve uma idéia. Chamou o pai do rapaz e começou:

— Olha aqui, o negócio é o seguinte: — só há um meio de curar Jair.

— Qual?

O outro baixa a voz:

— Destruindo o amor que o prende à falecida.

O velho esbugalha os olhos: — “Mas como? Com que roupa? É impossível!”. Seguro de si, o primo encosta o cigarro no cinzeiro:

— “Nada é impossível!”. Pigarreia e continua:

— Digamos que se descobrisse, de repente, que a falecida teve um amante.

O outro pulou:

— Mas Dalila era honestíssima, séria pra chuchu!

Ri o primo:

— Que era séria, sei eu. Mas até aí morreu o Neves. — Novo pigarro e insinua: — Nenhuma mulher, viva ou morta, está livre de uma boa calúnia. Podíamos inventar, não podíamos, um amante de araque? E quem pode provar o contrário?

Pálido, o pai balbucia:

— Continua.

E o outro:

— Ora, uma vez convencido de que Dalila foi uma vigarista, Jair perderia, automaticamente, a paixão. Compreendeu o golpe?
Custou a responder:

— Compreendi.

A REVELAÇÃO

O achado da calúnia era tão persuasivo que, depois de uns escrúpulos frouxos, a família aprovou a idéia. Disseram, a título de escusa: — “Os fins justificam os meios”. Uma manhã, enquanto prosseguiam no cemitério as obras do mausoléu, convocam o viúvo. O pai, nervoso, começa perguntando: — “Você tem certeza que sua esposa merecia a sua dor?”.

Jair percebeu, no ar, a insinuação. Aperta o pai, que, em dado momento, não tem outro remédio senão desfechar o golpe: — “Embora seja muito desagradável falar de uma morta, a verdade é que Dalila teve um amante!”.

O viúvo recua: — “Que amante? Como amante?”. E não queria entender. Então, possuído pela calúnia, cada um, ali, confirmou que sabia do amante, sabia da infidelidade. Atônito, ele perguntava: — “Mas quem era ele? Quero o nome! Quero a identidade!”. A verdade é que ninguém tinha pensado no detalhe.

Fora de si, Jair agarrou o pai pelos dois braços e o sacudia:

— Eu estou disposto a acreditar no amante. Mas quero saber quem foi. Quem é? Digam! Pelo amor de Deus, digam!

O pai refugiou-se na desculpa pusilânime: — “Diz-se o milagre, mas não o nome do santo!”. Então, o filho fez, na frente de todos, promessas delirantes: — “Vocês pensam que eu vou matar? Fazer e acontecer? Juro que não! Não tocarei num cabelo do cara!”. E berrava, no meio da sala:

— Se me disserem quem foi, eu não me matarei! Preciso desse homem para viver! Ele será meu amigo, meu único amigo, para sempre amigo! Digam!

Pausa. Espera o nome. E como ninguém fala, ele dá um pulo para trás e puxa o revólver que, desde a morte da mulher, jamais o abandonava. Encosta o cano na fronte: — “Ou vocês dizem o nome ou me mato, agora mesmo!”. Então, o pai vira-se na direção do primo e o aponta:

— Ele!

Apavorado, o primo não sabe onde se meter. Jair pousa o revólver em cima do piano. Aproxima-se do outro, lentamente. Súbito, estaca e abre os braços para o céu:

— Graças por ter encontrado quem possa falar de Dalila, comigo, de igual para igual!

Agarra o primo em pânico: — “Diz para esses cabeças-de-bagre se ela foi ou não a melhor mulher do mundo?”. E chorava no ombro do pobre-diabo, como se este fosse, realmente, seu irmão, seu sócio, seu companheiro em viuvez.
 ________________________________________________________________
A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
Leia mais...