Mostrando postagens com marcador camara cascudo. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador camara cascudo. Mostrar todas as postagens

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Ciganos no Brasil

No século XV, hordas de ciganos, vindos dos Pirineus, entraram na Espanha, aí chegando a 11 de junho de 1449. Extenuados pelas fadigas longas, banidos dos países por onde passavam, lançados para fora de todas as terras, pediam nesse refúgio o esquecimento e a paz para os delitos de sua vida impersistente e de lutas incomensuráveis. E uma espécie de noite os protegeu por algum tempo, começando na Espanha a sua existência ativa, o seu despertar na sociedade, no reinado de Carlos III, que os utilizou em proveito das artes.

Esta reabilitação moral foi transitória e enganadora; novos governos desencadearam contra os pariás-erradios atrozes perseguições, despojando-os de seus empregos e profissões, destituindo-os da naturalização e privilégios a que tinham direito.

Aos azares da má sorte, no combate braço a braço contra o destino adverso, numerosas avançadas emigraram para Portugal, indo mais tarde alimentar as chamas das fogueiras inquisitoriais de dom João II, que aumentara dos códigos portugueses leis expressamente promulgadas para puni-los [1] .

A respeito dessa raça, isto é, de sua origem, costumes e tradições, nenhum eco se escapa das velhas crônicas portuguesas, a não ser o de seus passos nos tribunais do crime e de seus lamentos, ao tom das vagas, nas amuradas dos navios que os conduziam aos degredos do Brasil e Angola.

E é pela legislação que vamos surpreender as primeiras turmas que aportaram às nossas plagas, determinando a prioridade das províncias que as receberam.

Abramos as Ordernações do Reino.

Diz o decreto de 27 de agosto de 1685: “Fica comutado aos ciganos o degredo da África para o Maranhão”.

Nas provisões de 15 de abril de 1718, 23 de agosto de 1724, 29 de maio de 1726 e de 29 de julho de 1740, lê-se: “Se os ciganos e outros malfeitores, degradados do reino para Pernambuco. não adotarem nesta capitania algum modo de vida estável e continuarem a cometer crimes, serão novamente degradados dela para Angola”.

Em 1718, por decreto de 11 de abril, “foram degradados os ciganos do reino para a praça da Cidade da Bahia, ordenando-se ao governador que ponha cobro e cuidado na proibição do uso de sua língua e gíria, não permitindo que se ensine a seus filhos, a fim de obter-se a sua extinção”.

Foi por essa data, segundo o sr. Pinto Noites, estimável e venerando calon [2] de 89 anos, que chegaram ao Rio de Janeiro os seus avós e parentes — nove famílias para aqui degradadas, em razão de um roubo de quintos de ouro atribuído aos ciganos.

De sua prodigiosa memória, arquivo inesgotável da história de sua nação entre nós, deixou rolar, durante duas horas que com ele conferenciamos, informações admiráveis de critério e saber tradicional. Daí a notícia que possuímos de famílias importantes do Brasil cruzadas com eles, e a lista nominal das que acima referimos. de onde emergem algumas da Cidade Nova, Minas, Bahia, etc.

Na intimidade desse povo inteligente e às mais das vezes caluniado, conseguimos escrupulosamente verificar que as palavras do discreto ancião ajustavam-se à versão popular dos mais esclarecidos de sua tribo.

O sr. Pinto Noites, dando-nos a relação das nove famílias, ou pelo menos o nome dos seus chefes, compreendidos no decreto de banimento de 11 de abril de 1718, estabelece a ordem seguinte:

João da Costa Ramos, por alcunha João do Reino, com seu filho Fernando da Costa Ramos e sua mulher dona Eugênia; Luís Rabelo de Aragão; um Ricardo Fraga, que seguiu para Minas; Antônio Laço, com sua mulher Jacinta Laço; o conde de Cantanhede; Manuel Cabral e Antônio Curto, que foram para a Bahia, acompanhados, além de mulher e. filhos, de noras, genros e netos.

— Logo que desembarcaram, terminou o nosso conferente, “alojaram-se em barracas no Campo dos Ciganos, enorme e inculta praça que se estendia da rua do Cano até a Barreira do Senado”.

Empregavam-se eles, pelo que pudemos depreender da narrativa, no trabalho dos metais: eram caldeireiros, ferreiros, latoeiros e ourives; as mulheres rezavam de quebranto e liam a sina.

Qual o rumo posteriormente tomado pelos deportados, quantos internaram-se nas florestas ou permaneceram nos centros colonizados, é uma questão complexa e de resolução dificílima.

Tropas e tropas vagabundas infestavam o norte e o sul, vivendo da natureza e na natureza, comerciando nos pequenos povoados e pirateando nas estradas. A reprodução entre si deu-se em grande escala; o cruzamento com as três raças existentes efetuou-se, sendo o cigano a solda que uniu as três peças de fundição da mestiçagem atual do Brasil [3].

À ebulição dos elementos disparatados de nossa formação, mais portugueses e boêmios vieram juntar-se em 1808, em desproveito do negro, cujo manancial ia em breve estancar-se com a abolição do tráfico.

O estado do Brasil nessa época era todo especial; a família real portuguesa traslada-se para a colônia, alterando a fisionomia do passado.

Acontecimentos notáveis se sucedem; o país atravessa nova fase na sua organização política, administrativa e econômica.

Estudemos os fatos.

À chegada da corte real portuguesa, o Rio de Janeiro era a capital de uma colônia, que a sua metrópole considerava como uma feitoria. O comércio e toda a espécie de indústria lhe eram vedados; trabalhava na agricultura e nas minas, para mandar o produto do seu trabalho a seus dominadores da Europa.

O príncipe-regente veio quase inesperadamente, escoltado por uma esquadra inglesa de nove naus, comandada pelo vice-almirante Sidney Smith. A esquadra portuguesa compunha-se de muitas naus de linha, além dos navios mercantes que iam chegando, perfazendo ao todo 3.000 pessoas, as que acompanharam o rei, no dizer do conselheiro Drumond.

O Conde dos Arcos [4], personificação escolhida de todos os defeitos de sua casta, perseguia barbaramente o contrabando, que eram todos os produtos estrangeiros. Rodeou-se de malsins, que denunciavam quem tinha uma peça ou outra de fazenda inglesa ou francesa. Se o infeliz era negociante, mandavam que fosse por alguns dias posto de sentinela, carregado de armas, à porta da Alfândega, enquanto durasse o despacho. Isto não contando as somas com que o condenavam.

Era proibido por lei que no Brasil houvesse ourives [5]! Esta lei foi derrogada muito depois da mudança das cortes portuguesas, e já existiam na rua dos Ourives lojas de ambos os lados, mas que só negociavam com obras feitas no Porto ou Lisboa — que a metrópole consentia que as usassem os habitantes do Brasil!

Do interminável séquito da família real poucos prestavam para alguma coisa.

Eram fidalgos e vadios. Aos fidalgos mandou-se dar pensões do tesouro: aos casados de 4.000$ e aos solteiros de 2:400$ [6]. Os vadios foram empregados nas repartições que se criaram para esse fim.

Aos fidalgos, ainda depois do regresso da família real, o tesouro do Brasil pagou alguns meses as tais pensões. Posições civis e militares, a lucrativa servidão do paço, lugares de governadores e capitães-generais das províncias lhes foram dados. E tudo isto não bastava! Criou-se a ordem da Torre e Espada [7] — valor e lealdade — para galardoar o valor dos que fugiram com o rei e a lealdade de o acompanharem para o Brasil!!!

A desapropriação, a rapina e o menoscabo dos brios da colônia excediam mesmo dos limites da afronta… E os fidalgos e os vadios não eram mais fidalgos nem menos vadios do que os ciganos, que certamente fizeram parte da comitiva…

Luminárias, músicas, Te Deum em ação de graças e demonstrações calorosas e regozijos populares assinalavam a grande recepção do senhor na senzala do cativo. Os ares pareciam sonoros, as janelas transformavam-se em jardins; as ruas, à noite, ao clarão das luzes, alongavam-se como rios de fogo…

Isto durou por nove dias.

Desde então a capital do Rio de Janeiro era toda festas. Repetidas vezes pomposos bandos, por ordem do Senado da Câmara, corriam a cidade, anunciando que iluminariam até os subúrbios, que haveria fogo de artifício, cavalhadas e corrida touros.

Quando o Brasil foi elevado a reino [8], os folguedos tocaram ao delírio: arcos triunfais, torneios, cavalhadas, carros alegóricos oferecidos pelo comércio, pela classe dos ourives, marceneiros, caldeireiros, latoeiros; representações no teatro real com o Elogio das Estações e transparentes, e o quanto a riqueza e a imaginação em manifestar de mais caprichoso: tudo contribuiu para o grandioso do ato comemorativo.

O sr. Pinto Noites, que ainda conserva a lembrança das festas que tiveram lugar por ocasião dos desposórios do sr. dom Pedro I com a princesa dona Leopoldina, duquesa d’Áustria, descreveu-nos com clareza o que vira, chamando especialmente o nosso interesse para o “curro no Campo”, por isso que aos do seu núcleo couberam as glórias mais vivas [9].

Começaram os festejos a 12 de outubro de 1818 e terminaram a 15.

No primeiro dia, depois das salvas das fortalezas, da recepção do corpo diplomático no Paço da Boa Vista e das solenidades religiosas, o povo em multidão, apinhado nas praças, nas janelas, nos telhados, impacientava-se por avistar suas majestades e a família real. As portas das casas estavam armadas de seda, as colchas de damasco espelhavam ao sol, as ruas eram cintilantes de areia fina e esmaltada de flores. Coretos com bandas militares, arcos e bandeiras tremulando nos galhardetes, soldados dos regimentos e das milícias, gente aos borbotões, davam a essa festa o cunho da magnificência das dinastias asiáticas…

Os sinos repicam, as girândolas estrugem, os batedores, à disparada, de espadas desembainhadas, abrem alas…

Dom João VI e a sua corte, às aclamações das turbas, aos sons das fanfarras, entram triunfantes no campo de Santana, para assistir ao curro.

O Senado da Câmara aí fizera preparar um anfiteatro deslumbrante: o terreiro, aplainado para as cavalhadas, achava-se circulado de arquibancadas inúmeras, com panejamentos de cores múltiplas, enfeitadas de bandeiras, destacando-se ao fundo o pavilhão de el-rei, enorme, forrado de veludo e ouro, com cortinas de damasco finíssimo, estreladas e franjadas de ouro, sobressaindo na frisa as armas portuguesas, entre legendas fulgurantes.

Nos palanques faustosamente adornados, a fidalguia e a vadiagem dominavam absolutas. El-rei e os nobres, no seu dossel suntuoso, escutam as bandas de música que executam dobrados e hinos, esperando o torneio.

A foguetaria estoura, as beldades, faiscantes de pérolas e brilhantes, anseiam pelo instante da justa, que deveria ser admirável. Em frente do palanque real, o rico e humanitário cigano Joaquim Antônio Rabelo mandara arranjar, com a maior galhardia imaginável, um tablado de preciosa madeira, de onde se erguia, dos quatro cantos, uma construção de estilo egípcio, realçando sobre o damasco, a seda e o veludo, galões e rendas de ouro.

Joaquim Antônio Rabelo, a quem a história nacional talvez um dia considere como uma força nas agitações políticas da independência, assim o determinara, para o dançado dos ciganos a quem ensaiara com entusiasmo artístico e vestira à sua custa.

Às quatro da tarde rebentam bombas, as girândolas sibilam e um soar de guizos, chocalhando nas cabeçadas e peitorais de fogosos ginetes, anuncia as cavalhadas. Vinte cavaleiros, com seus pajens, envergam esquisitos costumes, simbolizando cristãos e mouros. [10] Os cavalos, ajaezados de prata, relincham escarvando a terra, sopeados na arena.

Os justadores empunham compridas lanças com fitas na ponta; simulam desafio, traçam largo aceno com espadas e lanças, indicando posições a tomarem, e separam-se. Galopando em volta do circo, confundem-se após, saúdam o rei, pronunciam discursos de embaixada, findo o que, o partido dos cristãos toma à direita e os dos mouros à esquerda. Depois das evoluções mais arriscadas, da corrida da argolinha e das cinco cabeças, da vencida de um deles, cristãos e mouros vão às varandas implorar às formosas damas o batismo de um olhar meigo, ou a confirmação de um sorriso de amor. Flores, triunfos, palmas repetidas…

Nisso, um outro grupo salta na liça: os ciganos.  Guiando soberbos cavalos brancos arreados com igualdade e riqueza, balançando penachos implantados em discos de forma lunar, luzidos criados transpõem as barreiras. Os bailadores trazem as bailadeiras à garupa: morenas, sedutoras como as profetisas gentias.

Os homens trajam jaqueta escarlate, calção de veludo azul, meias de seda cor de rosa, chapéu desabado de veludo com plumas, sapatos baixos de fivelas. As moças ajustam à cintura flexível costume de veludo, primorosamente bordado, calção, sapatos de cetim branco com ramagens de ouro; na cabeça, como um turbante de nuvens, um toucado azul, recamado de estrelas, como o diadema das noites do Oriente.

A embaixada cigana dirige-se ao palanque real; a música toca, e os corcéis, levemente fustigados, empinam-se no centro da planície, rodam, dançam a polca. A multidão, contente do desempenho, manifesta-se com ruído.

Findos os primeiros exercícios, os pajens tomam da brida dos animais e conduzem os cavaleiros ao recinto do baile.

Aí, depois das cortesias à família real, ”uma salva de castanholas marca o princípio do dançado… E, ao som das guitarras, o fandango espanhol peneira, arde e geme — mansinho como as ondulações de um lago, quente como os beijos das odaliscas, lascivo como as inspirações do poeta-rei. Os dançarinos são vitoriados: flores, fitas, aplausos, eles os conquistam pela magia plangente de seus instrumentos, pela graça ideal de suas danças.

Dom João VI, participando do agrado geral, fá-los vir à sua presença. Uma banda de música precede-os na maior ordem. Subindo ao pavilhão, dois camaristas trazem, estendidos num coxim de púrpura, os prêmios que lhes eram destinados: patentes militares aos homens e jóias às mulheres [11].

As ovações, os vivas a el-rei e as harmonias coroavam os artistas e a festa… Restabelecido o silêncio, voltaram jubilosos a seu palanque. Preludiaram na guitarra uns acordes casados a vozes de uma cantilena em sua linguagem. A tradição olvidou a toada e as letras… Para o sr. Pinto Noites, era o Canto egipcio.

Às 6 horas os clarins, à frente de enorme préstito, ecoavam na cidade. El-rei nosso senhor via as luminárias…

Uma mulher trigueira, no auge da aflição, olhando para uma cruz vermelha [12], pintada no alto de sua porta, fitou o rei na sua passagem, e, estendendo os braços. como que querendo repelir uma visão perseguidora, exclamou:

Jála-te, bengue! [13]

_________________________________________________________________________
Morais Filho Filho, Alexandre José de Melo. Os ciganos no Brasil e Cancioneiro dos ciganos. Belo Horizonte, Editora Itatiaia; São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 1981 (Reconquista do Brasil, nova série, 59), p.25-33

Notas - As notas indicadas por (M) foram feitas pelo autor, todas as outras são de autoria de Luís da Câmara Cascudo

1. Ordenações, Liv. 5º  tít. 69, § 10. Leis de 7 de janeiro de 1606, de 13 de setembro de 1613, de 24 de outubro de 1647, de 5 de fevereiro de 1649, de 26 de janeiro e de 10 de novembro de 1708, de 20 de setembro de 1760. Decretos de 30 de julho de 1648, de 20 de setembro de 1649, de 27 de agosto de 1686, de 28 de fevereiro de 1718 e de 17 de julho de 1745. Provisão de 9 de julho de 1679. Cartas Régias de 3 de dezembro de 1614 e de 30 de junho de 1639 e Aviso de 15 de maio de 1756. Pelo Alvará de 20 de outubro de 1760 se procedeu contra ciganos, que deste reino foram degradados para o Estado do Brasil, e aí viviam despóticos, cometendo furtos de cavalos, escravos e carregando-se de armas de fogo pelas estradas. Vejam a esse respeito as Leis de 13 de março de 1526, de 26 de novembro de 1538, de 17 de agosto de 1557 e o Alvará de 14 de março de 1573. (M).

2. Cigano (M). “O nome calon é tirado dum dos nomes genéricos da nação dos ciganos, Isto é, de kalo, no plural kala, que verdadeiramente quer dizer negro, os negros”; José B. de Oliveira China, “Os ciganos do Brasil”, Revista do Museu Paulista, nº 21, p.552, São Paulo, 1937 (Obs.: O M entre parênteses (M) indica que a nota é do autor e não tendo assinatura é de Luís Câmara Cascudo). 

3. É evidentemente exagerada a opinião do autor. A percentagem cigana não constituiu elemento étnico capaz de merecer a frase. A dissolução do cigano sedentário se processou pelo duplo efeito da mestiçagem e da assimilação da vida burocrática ou comercial citadina. Nos dois maiores centros de densificação cigana, Bahia e Rio de Janeiro, seu desaparecimento como massa sensível foi completo. De mais raro e difícil dispersamento étnico está sendo ainda o cigano nômade, vivendo no grupo errante, por todos os estados do Brasil desde o século XVIII.

4. Dom Marcos de Noronha e Brito, oitavo conde dos Arcos, décimo-quinto e último vice-rei do Brasil, 1806-1808. A ação do conde dos Arcos na administração e política brasileira foi intensa, envolvendo-se nas lutas e manobras partidárias da época com entusiasmo. É uma figura de homem hábil, enérgico, sabendo conquistar e manter amizades. Sebastião Pagano estudou-o, O conde dos Arcos e a revolução de 1817, e em Portugal, Rocha Martins no O último vice-rei do Brasil fixou-lhe a fisionomia sugestiva, inquieta e viva.

5. As “obras de ouro e prata” tinham sido proibidas no Brasil pela carta régia de 30 de julho de 1766. Os primeiros favores apareceram na carta de lei de 10 de abril de 1808. A autorização plena só ocorreu pelo alvará com força de Lei de 11 de agosto de 1815, oficialmente ab-rogando a carta régia de 30 de julho de 1766.

6. “Só para pensões a fidalgos e outras pessoas que o acompanharam, dom João criou a despesa de 164:394,824$. Essas pensões variavam desde 4:000$ até 30$ por ano, “Tobias Monteiro, Elaboração da independência, p.107″.

7. A Ordem da Torre e Espada foi “restaurada e renovada” (criara-a o rei dom Afonso V, o africano, em 1459) por decreto de 13 de maio de 1808 e regulamentada pela carta de lei de 29 de novembro do mesmo 1808. Dom João, na carta de lei, explicava a necessidade de uma ordem puramente honorífica, destinada a premiar civis e militares, nacionais e estrangeiros, especialmente ingleses. As três ordens existentes eram militares e religiosas, excluindo dos quadros os não-católicos que a não podiam receber. A Torre e Espada não fazia essas exigências. Por toda carta de lei o regente menciona como um dos títulos credenciários à condecoração o gesto daqueles que preferiram a honra de acompanhar-me a todos os seus interesses, abandonando-os a feliz dita de me seguirem. A ordem vinculava bens territoriais brasileiros, sobrevivência jurídica pouco citada. O artigo IX declarava: “Sendo o fim principal da renovação desta ordem premiar as grandes ações, e serviços, que se me fizerem, Hei por bem estabelecer seis comendas para os seis Grãos Cruzes Efetivos, que hão de consistir em uma doação de duas léguas de raiz ou quatro quadradas de terra cada uma, e oito comendas de légua e meia de raiz, ou duas e um quarto quadradas para os comendadores”. O artigo X esclarecia ser o terreno dessas comendas inculto e desaproveitado e absolutamente por cultivar e sobre o qual não houvesse domínio ou posse. Com essas restrições, naturalmente não apareceu comendador que requeresse sua comenda territorial, contentando-se com a placa, medalha, colar e mais honras visíveis. A ordem (artigo XIV) sua festa oficial em cada dia 22 de janeiro, aniversário da chegada do príncipe regente ao Brasil.

8. A carta de Lei de 16 de dezembro de 1815 elevou o vice-reinado do Brasil à dignidade, preeminência e denominação de Reino do Brasil. O artigo III dava ao príncipe dom. João o título de príncipe regente do Reino-Unido de Portugal e do Brasil e Algarve.

9. Não era a primeíra vez que os ciganos tomavam parte, oficialmente, num programa de festas protocolares. O barão de Eschwege. Brasilien die neue welte, v.2, p.55 narra a participação entusiasta de um grupo cigano na comemoração pública quando do casamento da princesa dona Maria Teresa, primogênita do príncipe regente, com seu primo, Infante de Espanha, dom Pedro Carlos, a 13 de maio de 1810. Eschwege informa: “Os ciganos foram.convidado para as festas dadas na capital brasileira por ocasião do casamento da filha mais velha de dom João VI com o infante espanhol. Os moços desta nação, trazendo à garupa suas noivas, entraram no circo montando belos cavalos ricamente ajaezados. Cada par pulou no chão, com incrível agilidade, e todos juntos, executaram os mais lindos bailados que eu jamais vira. Todos só tinham olhos para as jovens ciganas e os outros bailados que também executaram pareceram ter tido por único fim fazer sobressair os dos ciganos como os mais agradáveis”.

10. Esses cristãos e mouros realizam uma quadrilha eqüestre, simulacro de batalha, com os melhores efeitos de alta escola de equitação. O auto popular de cristãos e mouros é diverso, também denominado chegança, nome de uma dança portuguesa do século XVIII. Semelhantemente à exibição do Rio de Janeiro em 1818, Saint Hilaire assistiu em Ilhéus, na província da Bahia. Havia ainda, além do auto e da quadrilha eqüestre, um outro ato, ocorrendo a prisão e livramento de uma princesa moura que era batizada, tema do ciclo carlovíngio que José de Alencar descreveu como se realizando na Cidade do Salvador, Minas de prata, XIII. Ver Revista da música brasileira, Renato Almeida, “Chegança dos mouros”, p.216-225, e bibliografia citada.

11. A Joaquim Antônio Rabelo, sargento-mor do 3º regimento de milícias da corte, foi concedida a mercê de melhoramento de reforma no posto de tenente-coronel; e nomeados alferes agregados das Ordenanças da corte, José Cardoso Rebelo. Manuel Laço, Antônio Vaz Salgado Fernando José da Costa, José Luís da Mota, Baltasar Antônio Policarpo e João do Nascimento Natal. (M)

12. Era uma intimação de despejo, por ordem de el-rei, para que o morador cedesse a casa aos recém-chegados do reino. (M). Tobias Monteiro esclarece: “Pela chamada Aposentadoria Real o Soberano podia requisitar as casas de que precisasse para si e as pessoas a quem quisesse acomodar, desalojando desse modo os ocupantes. O papel pregado à porta dessas casas com as iniciais P. R, Príncipe Real, passou a ser traduzido jocosamente pelo povo; queria dizer: “ponha-se na rua”, Elaboração da independência, p.100-101. Alguns fidalgos do séquito real ficaram ocupando as residências alheias, sem pagar, durante mais de década, como o conde de Belmonte e a duquesa de Cadaval.

13. Vai-te, diabo!
Leia mais...

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

O homem que pôs um ovo

Um marido tinha uma mulher muito gabola de saber guardar segredo. Vivia dizendo que as outras eram saco rasgado e ninguém podia confiar no juízo dela. Tanto se gabou e se gabou que o marido pensou em fazer uma experiência para ver se a mulher era mesmo segura de língua.

Uma noite, voltando tarde para casa, o homem trouxe um grande ovo de pata, que é muito maior do que os da galinha e deitou-se na cama. Lá para as tantas da madrugada, acordou a mulher, todo assustado e pedindo que ela guardasse todo segredo, contou que acabara de pôr um ovo! A mulher só faltou morrer de admiração mas o marido mostrou o ovo e ela acreditou, jurando que nem ao padre confessor havia de dizer o que soubera.

Ora muito bem. Pela manhã, assim que o marido saiu para o trabalho a mulher correu para a vizinha e, pedindo segredo de amiga, contou que o marido pusera um ovo na cama e estava todo aborrecido com essa desgraça. A vizinha prometeu que ninguém saberia mas passou o dia contando o caso, ao marido, aos vizinhos, aos conhecidos, sempre pedindo segredo.

E como quem conta um conto aumenta um ponto, toda vez que a história passava adiante o ovo ia mudando de número. Primeiro era um, depois dois, depois três. Ao anoitecer já o homem pusera meio cento de ovos. Voltando para casa, o marido encontrou-se com um amigo e este lhe disse que havia novidade naquela rua.

- Qual é a novidade?

- Não soube? Uma cousa esquisita! Imagine que um morador nesta rua pôs, penso eu, quase um cento de ovos, seu mano! Diz que está muito doente e que cada ovo tem duas gemas. É o fim do mundo.

O marido não quis saber quem estava de vigia. Entrou em casa, chamou a mulher, agarrou uma bengala e passou-lhe a lenha com vontade, dando uma surra de preceito, que a deixou de cama, toda doída e com panos de água e sal.

Depois o homem saiu contando como o caso começara e a mulher ficou desmoralizada. Por isso é que os antigos diziam que:

Quem tiver o seu segredo
Não conte a mulher casada
Ela conta ao seu marido
O marido aos camaradas...
_________________________________________________________________________
(CASCUDO, Luís da Câmara. Contos tradicionais do Brasil)
Leia mais...

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Discussão por acenos

Era uma vez um sábio muito arrogante de sua inteligência e cultura e que estava convencido do sol nascer todas as manhãs exclusivamente para o seu serviço intelectual.

Foi a uma cidade próxima e desafiou todos os literatos do lugar para uma discussão pública. Queria mostrar que somente ele sabia o que todos ignoravam.

Num colégio de padres os professores ficaram atarantados com o desafio e tristes com a impossibilidade de aceitá-lo. Demais a mais, o sábio declarara disputar sem palavras, por mímica, apenas agitando as mãos e pondo posições aos dedos. Quem ia enfrentar uma maravilha destas?

Pois, senhores, um criado dos padres, labrego finório, analfabeto e ladino, foi-se oferecer para discutir com o sábio. Os padres tentaram dissuadi-lo mas como teimasse, vestiram-no decentemente, esperando apenas a desgraça do atrevido.

Multidão, autoridades, jornalistas, devotos de novidades, basbaques, gente com o foguete na mão para gloriar o intruso mal educado. Frente a frente, em duas tribunas de mogno, os antagonistas. O sábio e o criado dos padres.

O sábio olha o adversário e, lentamente, estende o dedo indicador, como se admoestasse. Vai o labrego e estira os dois dedos. Pasmo do sábio. Balança a cabeça aprobativamente. Estira três dedos, em garfo, no ar. O criado, de cara feia, cerra o punho e exibe-o como se fosse lutar. O sábio saúda-o. Mete a mão na túnica de veludo e mostra uma maçã. O criado retira do bolso um pão e agita-o, como respondendo. O sábio cumprimenta, desce da tribuna e declara que seu antagonista respondera muitíssimo bem às questões apresentadas.

— Quais foram essas questões, mestre? — perguntam todos.

— Mostrei um dedo! Deus é uno. Respondeu-me com os dois que tinha duas pessoas distintas. Retruquei serem três, fechou o punho mostrando-me a unidade da divindade trina. Mostrei-lhe a maçã com que Eva se perdeu. Mostrou-me o pão com que Cristo salvou a todo nós...

No colégio, cercado de agrados e festas, o criado explicava ao seu modo, a polêmica.

— Imaginem que aquele doido ameaçou-me furar um olho com o dedo. Mostrei que tinha dois dedos para vazar-lhe os dois olhos. Botou os três para riscar-me a cara. Faço com a mão para dar-lhe um bom murro. Aí o homem amansou e ofereceu-me uma maçã. Mostrei-lhe o pão para provar que não precisava do presente. Não fez mais nada, desceu e veio abraçar-me. É doido varrido!...

É uma história bem antiga. Já estava escrita há seiscentos anos quase. Vem da Idade Média espanhola, de um dos mais vivos, sugestivos e pitorescos espíritos da época. João Ruís, Arcipresta de Hita, arcebispado de Toledo, nasceu em 1283 e faleceu em 1350. Há dele apenas um volume de versos, histórias e exemplos, Libro de buen amor, muito reeditado. A minha edição argentina da Espasa Caipe, Buenos Aires, 1945. Ouviu ao povo ou há gente impressa?

Esta disputa do sábio com o rústico está às páginas 20-21.

Os gregos, conta o Arcipreste de Hita, disseram aos romanos que ensinariam suas leis depois de uma discussão por sinais. Mandassem uma delegação para o desafio. Vestiram um malandro de Roma e mandaram-no para a Grécia.

O grego mostrou ao romano o polegar. O romano mostrou três dedos, o polegar sobre o indicador e o médio. O grego mostrou a mão aberta. O romano, o punho fechado. Nada mais. Tradução do grego: Deus é uno. Mas em três distintas pessoas. Tem tudo à sua vontade divina. Porque tinha poder para criar e castigar (punho fechado). Tradução do romano: Um dedo para um olho, dois dedos para os dois olhos e o polegar para machucar-lhe os dentes. Daria uma palmada. Responderia com um murro.

Falta, como se vê, a exibição dos alimentos. Mas em resumo, a história era popular em Espanha quase dois séculos antes do Brasil ser encontrado...
______________________________________________________________________
Luís da Câmara Cascudo
Cascudo, Luís da Câmara. "Discussão por acenos". Tribuna de Petrópolis. 31 de dezembro de 1949.
Leia mais...

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Licantropia sertaneja

 
Ao ilustre amigo Dr. Robert Lehmann Nitsche.

Lycaon, filho de Pelasgo, rei da Arcádia, tentou matar Júpiter, seu hóspede duma noite. Foi transformado em lobo. Para conjurar tamanho castigo, os Árcades construíram um templo a Júpiter-Lyceo (do grego, Lycos, lobo). Na Grécia, vindo dessa origem mítica, registrou-se gravemente o fenômeno. Desaparecendo a forma de um suplício, surgiu a licantropia. Era uma moléstia.
Durante o mês de Fevereiro, os licantropos pululavam. Heródoto assela-os em sua história. Em Roma, Pan era Luperco (do latim, Lupus, lobo). Daí as Lupercaes, festas votivas em Fevereiro, justamente comemoração solene dos Mortos entre os gregos...

... e a multiplicação de licantropos. Acca Laurentia, a loba, foi deificada. Em todas as estátuas e medalhas, signos e camafeus, era representada sob a forma lupina.

Para Pomponius Mela, os Neuros podiam transmudar-se em lobos. Os Neuros habitavam a Scythia, e, segundo Aristeus Proconnesius, Isigonus Nicaeiensis, Ctesias, Onescritus, Polystephanus e Hegesias, citados por Aulo Gello, era um país de assombros. Os Scythas eram antropófagos.

Nas regiões vizinhas, moravam raças espantosas, desde os Arismaspes, que tinham um só olho no meio da testa como ciclopes, até os outros homens que possuíam os calcanhares às avessas, gênese dos Matuyus que o Padre Simão de Vasconcellos devia encontrar no Brasil. Vem a série dos firmes credores do licantropo. Foram Isocrates, Varrão (em Santo Agostinho), Heródoto, Pompinius Mela, Petrônio, e Plínio, o Antigo. Petrônio descreve detalhadamente a licantropia.

Pedem a Niceros, conviva do faustoso Trimalcion, uma narrativa de aventuras. Historia o interrogado que, tendo de ir a Capua, convidou um soldado valente, seu velho camarada. Era noite de lua. Atravessando um cemitério, o soldado conjurou as estrelas, despiu-se, pôs urina nas roupas e tornou-se lobo, uivando e correndo pelo mato. Niceros não pode recolher as roupas do companheiro porque haviam tomado a forma de pedras. Atemorizado, fugiu para casa de Melissa de Tarento.

Esta contou-lhe o assalto de um grande lobo ao redil e subsequente luta com um fâmulo que ferira o animal no pescoço. No outro dia, Niceros encontrou o amigo nas mãos dum médico – tinha um profundo ferimento na nuca. Era um Versipelio, no dizer de Plínio.

A origem da lenda é naturalmente religiosa e comum ao Egito, aos Vedas, à Caldéia, às regiões da Ásia e África. Com o Império Romano espalhou-se a crendice, amalgamando outras, adaptando-se aos novos ambientes. É a repetição do caso de domínio contraproducente. O país vencedor é quase sempre influído pelo derrotado. Depois de Grécia vencida é que os Romanos conheceram a Hellade. Veio o Versipelio para Portugal com a conquista. Deve ter aí tomado o nome que hoje usa.

A licantropia deve ser de origem ética. Vingança de um ser divino em quem desobedeceu as leis sagradas de hospedagem. Os eternos viajantes gregos podiam ter posto curso a esta história antecipando pelo terror um melhor tratamento nas paragens visitadas. As narrativas de Platão, Ovídio e Pausanias sobre Licaon, tornaram-no tipo de mau hospedador. A justiça vinda do alto Olimpo caía sobre o crime de um príncipe na pessoa de um deus.

No Brasil, as complicadas teogonias selvagens exilam o versipelio. Criaram o Capelobo, animal fantástico, invulnerável, velocíssimo e perseguidor dos índios e caçadores ousados. O Capelobo é criado pelo ramo racial dos mamelucos. Não pode ser autóctone como o Anhangá e o Caipora. Para algumas tribos é o velho que já esqueceu a idade. Noutras, é um animal como o Tapuaiauara, misto de paquiderme e felino, com patas de anta e orelhas de cão.

O licantropo grego, o versipelio latino, o loup-garou de França, o vou-kadlak dos Eslavos, o verfölfe alemão, o capelobo ameríndio, estão absolutamente irmanados com o Lobisomem sertanejo.

Em Portugal o lobisomem é o filho que nasce depois de uma série de sete filhas. Em geral fica pálido, doente, tristonho, cheio de manias, quase sempre geófago contumaz. Encontrando o lugar onde os animais se espolinham, o predestinado se espoja e “vira” lobisomem. Isto às terças ou sextas-feiras. Sob a pele do fenômeno, terá de correr as sete partidas do mundo, sete adros, sete vilas, sete outeiros, sete encruzilhadas. Ao terceiro cantar do galo retoma a forma humana. É de notar o uso de um número que a astrológica caldaica tornou fatídico – o 7. Para desencantá-lo é mister o signo de Salomão, a estrela de dois triângulos. Vendo-a, perde o veso das correrias. Podem matá-lo também. Invulnerável a tiro, é sensível a qualquer ferro aguçado. Quem manchar-se no sangue do lobisomem, herda o hábito.

Para o Sertão o lobisomem está fixado em dois modos: como castigo e como moléstia. A reminiscência de Licaon é patente no primeiro caso. Júpiter, pai dos homens, castigou um filho espúrio, fazendo-o lobo. O mau filho é candidato a lobisomem. O “doente” é pessoa apontada comumente. Magro, descarnado, vacilante, de olhos apagados e face decaída, o licantropo sertanejo é um tipo vulgar de opipalo, uma vítima da verminose, mais filho do helminto que de Belzebu. Em casos especiais, o malefício se opera determinado por uma lei de punição suprema.

É o raríssimo incesto. O incestuoso ou seu descendente mais próximo, será lobisomem. Semelha à manceba do vigário que é a “Burrinha de Padre”, trotando pelos descampados, se, por funesto acaso o pároco esqueceu de amaldiçoá-la antes de celebrar missa.

O cerimonial para ser-se lobisomem é simples. Na noite da quinta para a sexta-feira, antes das 11 horas, o futuro loup-garou matuto dirige-se ao local onde os animais se espojam. Quase sempre na encruzilhada existe o capim machucado e revolto pelos irracionais preguiçando. Depois de despir-se, põe a roupa pelo avesso, dá sete nós na camisa e rola da esquerda para a direita, reunindo os pés e as mãos. Daí em diante, como na história de Petrônio, lupus factus est, ululare coepit, et in silvas fugit.

Até o terceiro cantar do galo, o lobisomem galopa e rincha, berra e foge, espalhando terror. Ataca os caminhantes solitários para sugar-lhes o sangue. Vendo duas pessoas, esconde-se. Picando-o à faca, “quebram” o fado por aquela noite. É vulnerável a tiro. Some-se ouvindo o canto do galo. O galo, em todas as histórias e lendas sertanejas, é o libertador do medo, o vencedor das trevas, augúrio do Sol, arauto do dia longínquo. Não há fantasma ou alma penada que resista a seu canto sonoro. Curioso é lembrar-se que Apolônio de Tiana evocou a sombra de Aquiles e esta desapareceu após o galo ter cantado. Quando a coruja, o mocho e o corvo servem de emblemas às bruxarias e maldades, o galo é o símbolo da alegria, das forças sadias e votadas ao Bem. É ele, ancestralmente, o inimigo do Demônio.

Ferunt, vagantes Daemonas
Laetos tenebris noctium,
Gallo canente exterritos
Sparsim temere, et cedere.

Cantava o poeta Prudêncio, já cristão e amável louvador do ilustre galináceo. De um antiquíssimo canto que fazia parte da liturgia na diocese de Salisbury, havia estrofes cheias de amizade e carinho, onde se destacava esta afirmativa:

Gallo canante spes redit.

Acresce aos atributos divinos do Galo, além de fazer reaparecer a esperança, a honra de ter sido a primeira ave a anunciar o nascimento de Jesus. Cristo nasceu! É o canto dos galos na noite de Natal.

Com o estridor sonoro de seu grito, o lobisomem grune e rosna, mas, receia e foge.

Todos aqueles que anotaram a vida sertaneja, dedicam largas páginas ao Lobisomem. Henry Koster registrou-o em sua viagem de Recife a Camocim. Gustavo Barroso, um dos verdadeiros conhecedores do Sertão, ilustre e consciente folclorista, narra uma história ouvida por mim vezes diversas.

Um casal ia visitar um amigo que morava distante. Atravessando uma capoeira, o marido pretextou ligeira necessidade e meteu-se pelo mato. Daí a minutos a mulher era assaltada por um animal furioso. Defendendo-se, sacudiu o xale de lã vermelha na goela da fera e fugiu, trepando numa árvore. O bicho sumiu-se. No outro dia, a mulher, reparando na dentadura do marido que dormia ressupino, encontrou nos dentes, as felpas do xale vermelho: o marido era o lobisomem. O monstro não respeita rezas nem invocações aos Santos. Antonio Ferreira, morador em Estivas, teve uma luta com um lobisomem durante duas horas. Gritou pelo Céu inteiro, tentando ferir o bicho à faca. Pela madrugada, semiexausto, pode segurar um galho de aroeira e salvar-se. A velha Victoria Maria, pernoitando numa casinha entre Timbó e Curral de Baixo, município de Ceará-Mirim, teve ocasião de assistir um encantamento, pondo fim ao bruxedo com um pequeno golpe de machadinha no braço do pseudo fantasma.

Uma das mais extraordinárias histórias é a do vaqueiro José Francisco de Paula na Fazenda São Tomé, em Santa Cruz, largamente conhecida pelos comboieiros e traficantes de algodão e sal. Sob o alpendrado, rara seria a noite em que, cinco ou seis vaqueiros e mascateantes, não dormissem, contando, à ceia, aventuras e viagens.

Numa noite em que estava o casal sozinho, ouviu-se o latido desenfreado dos grandes cães de caça que José Francisco possuía. Não prestou atenção. Em cada semana, da quinta para sexta-feira, os cães “acuavam” barulhosamente. Finalmente o vaqueiro entreabriu, altas horas, a janela e viu passar, seguido pelos cachorros enfurecidos, um animal corpulento, meio-baixo, roncando e batendo insistentemente as largas orelhas de perro.

Daí a dias, um comboio pernoitou na latada. Narraram-se assombramentos e caçadas. José Francisco historiou o caso. Um do grupo, adoidado e façanheiro, bateu na coronha do bacamarte, jurando morte ao monstrengo assustador. Veio a treva. Ao nascer da lua, pelas proximidades da meia-noite, ouviram o tonitroar dos cães e a marcha resfolegada de um bicho correndo. Aperraram as armas. De gatilho alçado, esperaram. De repente o abantesma surgiu. Estalaram as espoletas e uma descarga relampejou num estrondo pelo pátio deserto e mudo. O animal, num ronquejo horrendo, caiu pela barranca do rio já seco no verão escaldante que se iniciava.

Correram para lá. Era um lobisomem. Ferido de morte, não se desanimalizara inteiramente. Da cintura para cima, era um homem moreno, forte, de nariz aprumado, mãos delicadas, cabeleira castanha, encaracolada, um desses mestiços de família, criados na ociosidade das vilas sertanejas: da cintura para baixo, semelhava um porco, sarrudo, cheio de lama e de garranchos, os cascos firmemente cravados na areia frouxa do rio. Enterraram-no ali mesmo. José Francisco de Paula mudou-se para Estivas onde morreu anos depois, sem nunca esquecer a noite da caçada impressionante e trágica.

Francisco Teixeira, Seo Nô, por muito tempo nosso guarda num sítio, reproduziu, inconscientemente, a narrativa de Niceros, no Satiricon petroniano. Trabalhando num engenho de açúcar, Nô passava o serão levando em descrédito as aparições e bruxarias comentadas pelos companheiros. Um deles, João Severino, meio zangado, declarou-lhe que, em breve tempo, se arrependeria de zombar dos lobisomens. Os colegas do eito foram explicando ao Nô que ele andasse armado e não fosse muito longe das casas.

Uma noite atravessando uma varjota, Nô encontrou-se com um bezerro grande, todo negro e peludo que se precipitou num salto sobre ele. Nô bateu mão da faca e lutou deveras. Sentindo-se cansado, sacudiu uma facada bem dirigida, apanhando o agressor no pescoço. Este, grunhindo, correu. Pela manhã, não vendo João Severino entre os habituais cortadores de cana, inquiriu e veio a saber que ele estava doente. Correndo até a casa, encontrou-o de nuca amarrada e bebendo mezinhas. Estava com um corte no pescoço. Se Nô soubesse latim teria citado Petrônio: intellexi illum versipellem esse.

Os milheiros de histórias de lobisomens são quase iguais. É sempre o animal atacando ou fugindo com uma picadela de mais. O antídoto é o “sino saimão”, “sino salamão” ou sinal de Salomão, a cruz feita em dois triângulos, com a palha santa no domingo de Ramos. Põe-na no lugar dos encantamentos. Vendo-a, o versipelio nunca mais beiradeja córregos e bufa, aos trancos, por descampados e várzeas. Se esconderem a roupa, ficará sempiternamente lobisomem.

Acredito que essas superstições, de cunho rigidamente moral, tenham sido postas em circulação pelos letrados, como elemento de ordem ética, equilibrando para uma melhor conduta, a gente semi-bárbara do Sertão.

O medo ao sobrenatural, o castigo após a morte, a vastidão das penas, o tempo sem fim do remorso, são, através das idades, bases naturais das religiões. Seria inútil mostrar de como a Igreja Católica soube inteligentemente popularizar os seus dogmas, usando lendas cultuadas desde a mais remota ancianidade.

Os Neuros de Heródoto e Pomponius Mela, os homens-serpentes dos Vedas, são necessariamente utilizados como persuasão e terror. Aqui já se não dá o auto-milagre dos Neuros. O lobisomem é castigo, uma penalidade infamante e arriscada a morte certa. Por isso, talvez, o elemento letrado, indicando maior tendência à moralização dos costumes, não obstou a propagação da crendice, ajudando-a, antes, porque ela expressava um meio idêntico, com maior eficácia. Dá-se como ultrajante e hórrida, sorte a deste animal vagabundo semipoderoso e semifrágil. Para atemorizar o sertanejo se fez mister uma pena, prolongada após a morte. Sem temer a lei, zombando da força e habituado às batalhas dos elementos, o sertanejo, sub-raça que se adaptara a todos os climas, necessitava desta ambiação mítica, pressão à sua luxúria porejante, à sua avareza latente, ao seu temperamento irrequieto, dentro de aparente insensibilidade.

Estranho, misterioso, surgindo do intricado negro dos juremais, saltando, inopinado, da sombra escura das faveleiras e cardeiros esguios, correndo pelo ondulado relvoso das pradarias, o lobisomem, pecado vivo, dentro da grande noite supersticiosa, mantém sempre acesa a perene formação de assombros.

Agora que estamos tentando possuir uma literatura brasileira, sem o estreito regionalismo e pondo na Arte o mundo poliforme das esperanças nativas, o folclore sertanejo terá um papel eficiente e decisivo fixando a fisionomia espiritual do Povo, nas suas manifestações de crença, atitude ancestralmente definidora da moral coletiva em face duma geração que interroga e analisa.

É o coração humano, inquieto e palpitando em presença do susto, do sobrenatural e do inexplicável.

Sob a jaqueta de lã do Bretão ou na gibona de couro do vaqueiro, o pavor é idêntico, vendo, debaixo das oiticicas imensas ou na penumbra dos menhirs batidos pelo luar, a figura ligeira e negra, impressionadora e terrível do loup-garou, do lobisomem, capelobo dos índios, erudito versipellio, herança atávica do medo na alma triste dos homens...
_______________________________________________

Fonte: Revista do Brasil, São Paulo, Ano VIII, n. 94 p. 129-133, out. 1923.
Acervo do Instituto Câmara Cascudo – Ludovicus
Leia mais...

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Cascudo e o Folclore Brasileiro

"Queria saber a história de todas as cousas do campo e da cidade. Convivência dos humildes, sábios, analfabetos, sabedores dos segredos do Mar das Estrelas, dos morros silenciosos. Assombrações. Mistérios. Jamais abandonei o caminho que leva ao encantamento do passado. Pesquisas. Indagações. Confidências que hoje não têm preço." Câmara Cascudo recriou a atmosfera da sua meninice, revelando os interesses que desde então o levariam a se tomar dos mais respeitáveis pesquisadores do folclore e da etnografia de nosso país.
Luís da Câmara Cascudo, folclorista, escritor e professor, nasceu em Natal, RN, em 30/12/1898, e faleceu na mesma cidade, em 30/7/1986. Filho único do coronel Francisco Cascudo, da Guarda Nacional, em 1918 iniciou-se no jornalismo, publicando ensaios e crônicas no jornal A Imprensa, mantido por seu pai, em Natal.
No mesmo ano transferiu-se para Salvador BA, onde fez o curso de medicina até o 4° ano. Desistindo da carreira de médico, resolveu estudar direito em Recife PE, formando-se em 1928. Ainda nesse ano iniciou-se no magistério, começando como professor de história do Brasil no Ateneu Norte-Rio-Grandense, em Natal, cidade onde sempre residiu.

Dedicando-se ao estudo das tradições populares e do folclore nacional, produziu uma obra copiosa, com imensa atividade em seu Estado, tendo criado (e participado de) diversas instituições culturais.

À frente de um grupo de intelectuais, foi o responsável pela primeira apresentação de uma chegança-de-mouros numa casa de espetáculos, realizada no Teatro Alberto Maranhão, de Natal, em 1926. Pesquisou e reabilitou folguedos populares brasileiros, lutando junto a órgãos oficiais para que protegessem essas tradições.

Fundador da Academia Norte-Rio-Grandense de Letras em 1936, no mesmo ano orientou, juntamente com Valdemar de Almeida, o lançamento da revista Som. Designado “historiador da cidade de Natal” em 1948, por decreto do então prefeito Sílvio Pedrosa, no mesmo ano foi um dos responsáveis pela criação do curso de violão no Instituto de Música do Rio Grande do Norte, instituição de que foi (1960) nomeado presidente de honra.

Em 1951, com a criação da Faculdade de Direito, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, foi nomeado professor da cadeira de direito internacional público. Aposentando-se em 1966, recebeu o título de professor emérito dessa universidade, cujo Instituto de Antropologia recebeu o seu nome. Foi secretário do Tribunal de Justiça, aposentando-se em 1959 como consultor jurídico do Estado.

Em 1970 recebeu o prêmio Brasília de literatura, pelo conjunto de sua obra, concedido pela Fundação Cultural do Distrito Federal. Tradutor e anotador de obras fundamentais para o conhecimento da formação brasileira, realizou viagens de estudos à África, Europa e quase todo o Brasil.

Pertenceu a diversas entidades culturais do país, entre as quais o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a Academia Nacional de Filologia, a Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro e a Sociedade Brasileira de Antropologia e Etnologia, tendo recebido condecorações e títulos honoríficos de várias instituições, tanto no Brasil como no exterior.

Autor de mais de 160 livros e de inúmeros estudos sobre a cultura brasileira, sua enorme atividade intelectual foi bibliografada por Zila Mamede (Luís da Câmara Cascudo: 50 anos de vida intelectual. 1918-1968. Bibliografia anotada, 2 volumes em 3, Natal, 1970).

Principais obras

Viajando o sertão, Natal, 1934: Vaqueiros e cantadores, Porto Alegre, 1939; Antologia do folclore brasileiro, São Paulo, 1944 (2a. ed., São Paulo, s.d.; 3a. ed. aumentada, 2 volumes, São Paulo, 1965; 4 ed., São Paulo, 1971); Informação de história e etnografia, Recife, 1944; Contos tradicionais do Brasil, Rio de Janeiro, 1946 (2a. ed. revista e aumentada, Salvador, 1955); Geografia dos mitos brasileiros, Rio de Janeiro, 1947; História da cidade de Natal, Natal, 1947; Consultando São João, Natal, 1949; Anúbis e outros ensaios, Rio de Janeiro, 1951; Meleagro, Rio de Janeiro, 1951; História da imperatriz Porcina, Lisboa, 1952; Literatura oral, Rio de Janeiro, 1952; Cinco livros do povo, Rio de Janeiro, 1953; Contos de encantamento, Salvador, 1954; Contos exemplares, Salvador, 1954; Dicionário do folclore brasileiro, Rio de Janeiro, 1954 (2a ed. revista e aumentada, 2 volumes, Rio de Janeiro, 1954; 3a ed., Rio de Janeiro, s.d.; 3a ed. revista e aumentada (na verdade é a 4a ed.), 2 volumes, Rio de Janeiro, 1972); No tempo em que os bichos falavam, Salvador, 1954; História do Rio Grande do Norte, Rio de Janeiro, 1955; Trinta “estórias” brasileiras, Lisboa, 1955; Geografia do Brasil holandês, Rio de Janeiro, 1956; Tradições populares da pecuária nordestina, Rio de Janeiro, 1956; Jangada — Uma pesquisa etnográ fica, Rio de Janeiro, 1957; Jangadeiros, Rio de Janeiro, 1957; Superstições e costumes, Rio de Janeiro, 1958; Rede de dormir, Rio de Janeiro, 1959; Dante Alighieri e a tradição popular no Brasil, Porto Alegre, 1963; Motivos da literatura oral da França no Brasil, Recife, 1964; Made in Africa, Rio de Janeiro, 1965; Flor de romances trágicos, Rio de Janeiro, 1966; A vaquejada nordestina e sua origem, Recife, 1966; Voz de Nessus, João Pessoa, 1966; Folclore do Brasil, Rio de Janeiro, 1967; História da alimentação no Brasil, 2 volumes, São Paulo, 1967; Mouros, franceses e judeus, Rio de Janeiro, 1967; Calendário das festas, Rio de Janeiro, 1968; Coisas que o povo diz, Rio de Janeiro, 1968; Nomes da terra, Natal, 1968; Locuções tradicionais do Brasil, Recife, 1970; Prelúdio da cachaça, Rio de Janeiro, s.d. 

Fonte: Enciclopédia da Música Brasileira - Art Editora e Publifolha.
Leia mais...