Era uma vez um sábio muito arrogante de sua inteligência e cultura e que estava convencido do sol nascer todas as manhãs exclusivamente para o seu serviço intelectual.
Foi a uma cidade próxima e desafiou todos os literatos do lugar para uma discussão pública. Queria mostrar que somente ele sabia o que todos ignoravam.
Num colégio de padres os professores ficaram atarantados com o desafio e tristes com a impossibilidade de aceitá-lo. Demais a mais, o sábio declarara disputar sem palavras, por mímica, apenas agitando as mãos e pondo posições aos dedos. Quem ia enfrentar uma maravilha destas?
Pois, senhores, um criado dos padres, labrego finório, analfabeto e ladino, foi-se oferecer para discutir com o sábio. Os padres tentaram dissuadi-lo mas como teimasse, vestiram-no decentemente, esperando apenas a desgraça do atrevido.
Multidão, autoridades, jornalistas, devotos de novidades, basbaques, gente com o foguete na mão para gloriar o intruso mal educado. Frente a frente, em duas tribunas de mogno, os antagonistas. O sábio e o criado dos padres.
O sábio olha o adversário e, lentamente, estende o dedo indicador, como se admoestasse. Vai o labrego e estira os dois dedos. Pasmo do sábio. Balança a cabeça aprobativamente. Estira três dedos, em garfo, no ar. O criado, de cara feia, cerra o punho e exibe-o como se fosse lutar. O sábio saúda-o. Mete a mão na túnica de veludo e mostra uma maçã. O criado retira do bolso um pão e agita-o, como respondendo. O sábio cumprimenta, desce da tribuna e declara que seu antagonista respondera muitíssimo bem às questões apresentadas.
— Quais foram essas questões, mestre? — perguntam todos.
— Mostrei um dedo! Deus é uno. Respondeu-me com os dois que tinha duas pessoas distintas. Retruquei serem três, fechou o punho mostrando-me a unidade da divindade trina. Mostrei-lhe a maçã com que Eva se perdeu. Mostrou-me o pão com que Cristo salvou a todo nós...
No colégio, cercado de agrados e festas, o criado explicava ao seu modo, a polêmica.
— Imaginem que aquele doido ameaçou-me furar um olho com o dedo. Mostrei que tinha dois dedos para vazar-lhe os dois olhos. Botou os três para riscar-me a cara. Faço com a mão para dar-lhe um bom murro. Aí o homem amansou e ofereceu-me uma maçã. Mostrei-lhe o pão para provar que não precisava do presente. Não fez mais nada, desceu e veio abraçar-me. É doido varrido!...
É uma história bem antiga. Já estava escrita há seiscentos anos quase. Vem da Idade Média espanhola, de um dos mais vivos, sugestivos e pitorescos espíritos da época. João Ruís, Arcipresta de Hita, arcebispado de Toledo, nasceu em 1283 e faleceu em 1350. Há dele apenas um volume de versos, histórias e exemplos, Libro de buen amor, muito reeditado. A minha edição argentina da Espasa Caipe, Buenos Aires, 1945. Ouviu ao povo ou há gente impressa?
Esta disputa do sábio com o rústico está às páginas 20-21.
Os gregos, conta o Arcipreste de Hita, disseram aos romanos que ensinariam suas leis depois de uma discussão por sinais. Mandassem uma delegação para o desafio. Vestiram um malandro de Roma e mandaram-no para a Grécia.
O grego mostrou ao romano o polegar. O romano mostrou três dedos, o polegar sobre o indicador e o médio. O grego mostrou a mão aberta. O romano, o punho fechado. Nada mais. Tradução do grego: Deus é uno. Mas em três distintas pessoas. Tem tudo à sua vontade divina. Porque tinha poder para criar e castigar (punho fechado). Tradução do romano: Um dedo para um olho, dois dedos para os dois olhos e o polegar para machucar-lhe os dentes. Daria uma palmada. Responderia com um murro.
Falta, como se vê, a exibição dos alimentos. Mas em resumo, a história era popular em Espanha quase dois séculos antes do Brasil ser encontrado...
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Luís da Câmara Cascudo
Cascudo, Luís da Câmara. "Discussão por acenos". Tribuna de Petrópolis. 31 de dezembro de 1949.
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