terça-feira, 6 de setembro de 2011

Terence Fisher

Terence Fisher, cineasta britânico, que atuou principalmente regendo filmes da Hammer Films, nasceu em 23 de fevereiro de 1904 em Maida Vale (Londres) e faleceu em 18 de Junho de 1980 em Twickenham. Seu pai morreu quando ele tinha quatro anos de idade, ficando sua educação a cargo de sua mãe e avós.

Seus avôs de férreas tradições vitorianas o matriculam, contra sua vontade, em uma escola militar. Porém se alista na marinha mercante, como aprendiz a bordo do H. M. S. Conway, onde percorrerá o mundo durante cinco anos. Após regressar a Londres trabalha como empregado numa loja de tecidos.

Para se distrair começa a freqüentar os cines. Maravilhado com o que vê na tela, decide trabalhar na indústria cinematográfica a qualquer custo.

Em 1930 foi trabalhar na Shepard’s Bush Studios como editor, mas apenas iria dirigir seu primeiro filme em 1948, A Song for Tomorrow. Mas foi na Hammer Films que o diretor conseguiria seus mais importantes filmes. Já trabalhara para a Hammer Films em 1933 nos primeiros filmes de ficção-científica da produtora, Four-Sided Triangle e Spaceways.

Em 1957 juntou-se ao roteirista Jimmy Sangster e aos atores Peter Cushing e Christopher Lee para refilmar Frankenstein, o clássico da Universal Pictures. Tendo Cushing como o doutor Frankenstein e Lee como a criatura (totalmente deformada, pois a produção não pode contar com as formas da criatura imortalizadas por Boris Karloff, cuja patente pertencia à Universal Pictures), o filme foi um enorme sucesso.

A mesma equipe foi reunida outra vez para, no ano seguinte, filmar O Vampiro da Noite, que superou todas as expectativas e seu estupendo sucesso colocou os filmes de terror outra vez no cenário cinematográfico mundial, tendo a Hammer Films como sucessora da Universal Pictures neste terreno – tanto que esta última, em acordo, cedeu os copyrights de seus monstros para que a Hammer produzisse seus filmes.

Estas duas obras dirigidas por Fisher praticamente definiram as produções de terror até a década de 70. Além da introdução das cores neste tipo de filme, a sensualidade era também mais destacada, com a constante presença de lindas mulheres com decotes bastante provocantes e, quase sempre, com seios grandes.

Os monstros também eram apresentados de maneira direta, diferentemente do que acontecia nos filmes da Universal Pictures, sempre envolvidos com problemas com a censura e com a distribuição. Mesmo assim, Fisher impunha um rígido código moral nas suas obras: o mal era sempre derrotado no final. Fisher aproveitou-se das novas condições morais menos rígidas e das novas tecnologias cinematográficas para renovar o universo de terror.

Fisher foi, sem dúvida, um dos diretores de filmes de terror mais influentes da segunda metade do século XX. Primeiro a imprimir o estilo gótico com a tecnologia a cores da Technicolor, com ênfase no sangue, na sensualidade e horror explícito que, se hoje parecem moderados, foram uma inovação em seu tempo.

Apesar de sua temática ser sombria e escatológica, seus filmes foram comercialmente bem sucedidos, mesmo que a crítica sempre o desdenhasse, ao longo de sua carreira. Somente após sua morte é que houve um justo reconhecimento por seus trabalhos.

Seu estilo pode ser definido como próprio, uma mistura de contos de fadas, mitos e sensualidade. Ao longo disso, uma temática cristã está fortemente presente, onde as forças do mal são derrotadas por um herói através da combinação da fé em Deus com a razão, em contraste com outras personagens que ou são bastante supersticiosos ou céticos, como observou o crítico Paul Leggett (in: Terence Fisher: Horror, Myth and Religion, 2001).

Uma completa análise de seus trabalhos foi feita na obra "The Charm of Evil: The Films of Terence Fisher" de Wheeler Winston Dixon (Londres, Scarecrow Press, 1991).

Principais filmes

1947 - Colonel Bogey
1948 - To the Public Danger
1948 - Song for Tomorrow
1948 - Portrait From Life
1949 - Marry Me!
1949 - The Astonished Heart (co.)
1950 - So Long at the Fair (co.)
1951 - Home to Danger
1952 - The Last Page
1952 - Wings of Danger
1952 - Stolen Face
1952 - Distant Trumpet
1953 - Four Sided Triangle
1953 - Mantrap
1953 - Spaceways
1953 - Blood Orange
1953 - Three's Company (co.)
1954 - Face the Music
1954 - The Stranger Came Home
1954 - Mask of Dust
1954 - Final Appointment
1954 - Children Galore
1955 - Murder By Proxy
1955 - The Flaw
1955 - Stolen Assignment
1956 - The Last Man to Hang?
1957 - Kill Me Tomorrow
1957 - he Curse of Frankenstein
1958 - Horror of Dracula
1958 - The Revenge of Frankenstein
1959 - The Hound of the Baskervilles
1959 - The Man Who Could Cheat Death
1959 - The Mummy
1959 - The Stranglers of Bombay
1960 - The Two Faces of Doctor Jeckyll
1960 - The Brides of Dracula
1960 - The Sword of Sherwood Forest
1961 - The Curse of the Werewolf
1962 - The Phantom of the Opera
1962 - Sherlock Homes und das Halsband des Todes
1964 - The Horror of It All
1964 - The Gorgon
1964 - The Earth Dies Screaming
1966 - Dracula - Prince of Darkness
1966 - Island of Terror
1967 - Frankenstein Created Woman
1967 - Night of the Big Heat
1968 - The Devil Rides Out
1969 - Frankenstein Must Be Destroyed
1974 - Frankenstein and the Monster from Hell

Fontes: Terence Fisher; Wikipédia; e traduzido da"Biografía de Terence Fisher"
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Pai por um cheque

O pai, seu Alfredo, tinha uma frota de trezentos lotações, rodando dia e noite pela cidade. Era um homem rico, muito rico, milionário. No dia em que a filha ficou noiva, ele, numa satisfação bárbara, a chamou:

— Vem cá, minha filha, vem cá.

Diga-se de passagem que seu Alfredo, em que pese a sua fortuna imensa, tinha instrução primária e era de origem bem humilde. Sabia fazer três das quatro operações: somar, diminuir e multiplicar. Dividir, não; aos cinqüenta anos de vida, não sabia ainda dividir. Por outro lado, seus modos ou, por outra, sua falta de modos clamava aos céus. Tinha uma educação mais que discutível. E não faltava quem, despeitado com a sua prosperidade, rosnasse: “É um cavalo!”.

Pois bem, no dia em que sua filha, Dorinha, ficou noiva do dr. Fernando, ele a convocou: “Tudo bem, minha filha? Tudo OK?”. A menina suspirou: “Tudo!”. Mascando um charuto infecto, o velho olhava em torno: “Não está faltando nada?”. Num gesto grosseiro, bateu no bolso, e insistia:

— Dinheiro há! Dinheiro há! Se quiserem alguma coisa, é só pedir. O que tu queres? Fala! Queres alguma coisa?

Dorinha vacila. E, então, diante do pai, sonha em voz alta:

— Papai, o senhor sabe qual é a coisa que eu mais desejo na vida? Sabe?

— O que é?

E ela:

— Um filho. Quero, sempre quis um filho, ouviu, papai?

Seu Alfredo esfrega as mãos:

— Mas isso é pinto, é canja, minha filha. — E repetia: “É o de menos. Casa e pronto, compreendeste? Batata, minha filha, batata!”.

FLOR DE MENINA

Havia entre pai e filha um contraste de arrepiar. Enquanto seu Alfredo representava uma espécie de gângster, de Al Capone dos lotações, Dorinha era uma figurinha frágil, delicada, ou, como diziam, um biscuit. Aprendera nos melhores colégios, sabia correntemente o francês, o inglês, bordava com um gosto de fada e era uma pianista de mão cheia. Aos dezesseis anos, apaixonara-se pelo advogado da companhia do pai, o dr. Fernando, rapaz bonito, vagamente afetado, que beijava a mão das senhoras e tinha sempre o ar de quem lavou o rosto há dez minutos. Mas a sua característica que mais impressionava e deslumbrava o sogro era a seguinte: chovesse ou fizesse sol, o dr. Fernando andava de colete e polainas. De resto um homem que sabia viver. Seu Alfredo, com sua contundente falta de tato e sua bestial espontaneidade, dizia abertamente:

— Gosto de meu futuro genro porque é um puxa-saco! Geralmente, o puxa-saco dá um marido e tanto!

Presunção, como se vê, um tanto precária. Mas o fato é que o noivado ia de vento em popa. Seu Alfredo vivia açulando as mulheres da família:

— Quero um casamento de arromba! Gastem sem pena, nem dó! — E mostrava a carteira recheada, repetindo: “Dinheiro há! Dinheiro há!”.

O NETO

No dia do casamento, foi até interessante e impróprio. Seu Alfredo, sem nenhuma noção da própria inconveniência, dava tapas imensos nas costas do genro:

— Quero um neto, ouviu? Um neto caprichado! A jato!

Ria, ao clamar a pilhéria. E tinha, mal comparando, um riso grosso e soluçante de cachorro de desenho animado. Os convidados riram também. Mas um vizinho, aliás um frustrado, cochichou ao ouvido de outro: “Que animal!”. Referia-se, é claro, ao destemperado dono da casa. Muito bem. Na altura da meia-noite, partem os noivos para a lua-de-mel. Mas antes que o automóvel arrancasse seu Alfredo enfiou o carão no interior do carro:

— Olha o meu neto! Quero o meu neto!

E o genro grave:

— Perfeitamente, perfeitamente.

CALAMIDADE

No fim de uns vinte dias, voltou o casal. A mãe, d. Eduarda, de olho rutilante, quer saber: “Tudo bem, minha filha?”. Tudo bem, sim. Todavia, a pequena parece inquieta: “Mamãe, o negócio é o seguinte: eu ainda não estou sentindo nada”. D. Eduarda acha graça: “Ainda é cedo. Calma, minha filha, calma!”. No dia seguinte, dr. Fernando vai reassumir o cargo na firma. O sogro, porém, quase irritado, mandou-o de volta:

— Não, senhor! Em absoluto! O seu lugar é ao lado de sua esposa!

O outro reluta: “E o emprego?”. Seu Alfredo trovejou:

— Você agora só tem o emprego de marido de minha filha. Só. Percebeu?

Como resistir a um sogro que tinha trezentos lotações rodando, independentemente de prédios, avenidas, terrenos, o diabo? O velho veio trazê-lo, cordialmente, até a porta. Olha para os lados, e baixa a voz:

— O negócio do meu neto está caminhando direitinho? Ótimo! E olha: no dia em que o médico disser que é batata, tu passas por aqui, que eu te dou um cheque de cem mil cruzeiros, pra teus alfinetes!

DECEPÇÃO

O tempo passou. No fim de quatro meses, a decepção era trágica: nada, absolutamente nada. Dorinha voltava de suas visitas mensais ao médico numa depressão medonha: “Minhas amigas têm filhos até em pé. E eu não, por quê?”. O sogro perdeu a paciência com o genro: “Mas o que é que há contigo, rapaz? Estás dormindo no ponto?”. Metido no seu eterno colete, nas suas indescritíveis polainas, dr. Fernando abria os braços: “Não compreendo”. A título de espicaçá-lo, o velho piscava o olho:

— Sou homem de uma palavra só. Disse que te dava cem contos por neto, não disse? Pode contar. É dinheiro em caixa!

Desesperado, dr. Fernando corre a um médico: faz todos os exames. E recebe um impacto quando o médico, batendo no seu ombro, anuncia:

— Não pode ter filho, ouviu? Não pode.

DESESPERO

Dr. Fernando teve medo da reação da mulher, dos sogros. Guardou para si, só para si, o resultado. Com um descaro que as circunstâncias impunham, simulava um espanto imenso: “Mas eu não posso compreender!”. Verificava-se o seguinte: a lânguida, meiga, diáfana Dorinha tinha uma única e selvagem paixão: a maternidade. Queria ser mãe, eis tudo. Acuado pelo sogro, dr. Fernando refugiava-se na seguinte desculpa: “Mas eu não posso fazer milagres!”.
O sogro partiu para ele, de dedo espetado: “Fazer filho não é milagre, nunca foi milagre, seu bestalhão!”.

O FIM

Transcorreu mais um ano. Dr. Fernando andava, em casa, pelos cantos, numa humilhação treda e torva. Quanto a Dorinha, perdera o viço, a alegria de viver, petrificada no seu desgosto. E, de repente, acontece realmente o milagre: Dorinha vai ao médico e volta com a grande notícia: “Estou, estou!”. No delírio geral, houve uma única exceção: a do pai presuntivo, que, sentado, as duas mãos em cima dos joelhos, esbugalhou os olhos, incapaz de uma palavra. Finalmente, ele ergue-se: vira-se para a mulher: “Vou dar a notícia pessoalmente a teu pai”.

Apanha o automóvel e voa para a firma de lotações. Salta lá, precipita-se para o gabinete do velho. Seu Alfredo teve um choque tremendo. Abraçou-se chorando ao genro: determinou que se encerrasse o expediente mais cedo. Enfim, um autêntico carnaval.

Finalmente, vira-se para o rapaz: — “Eu te prometi quanto mesmo? Cem, não foi?”. Então, o genro aproxima-se e, com um meio riso ignóbil, conta-lhe o exame feito no médico: “Não posso ser pai, compreendeu?”. Respira fundo e completa:

— Nessas condições, quero mais. Acho pouco cem. Trezentos, no mínimo.

O velho levantou-se, assombrado. Súbito, pôs-se a berrar:

— Ah, não é teu? O filho não é teu? Então, tu não vais levar um níquel, um tostão! Agora, rua, ouviu? Rua!

O genro saiu de lá, debaixo de pescoções.
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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
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Amigo de infância

Quando soube que o Antunes estava de táxi na porta, desceu para o avisar:

— Mas olha: eu estou assim, de pijama, e ainda vou tomar banho.

Antunes, fumando de piteira, entra, senta-se:

— Não faz mal. Eu espero. Mas chispa.

— Agüenta a mão.

O outro ficou na sala, lendo jornal. Debaixo do chuveiro, esfregando-se briosamente, Chagas perguntava a si mesmo: “Que será?”. Tomou o banho e vestiu-se, num tempo recorde. Antes de descer, já pronto, num terno branco, comentou para a mulher, baixo: “Estou achando meio esquisito esse negócio do Antunes aparecer aqui cedo. É alguma complicação!”. Julinha fez um ar de nojo:

— Sabe que eu acho o Antunes tão chato!

— Que o quê! Ótimo sujeito! Meu amigo até debaixo d’água!

Mas Julinha, peremptória como são as mulheres nas suas antipatias, ainda resmungou: “Um falso!”. Cinco minutos depois, Chagas instalava-se no táxi do Antunes, lado a lado com o seu maior amigo. Curiosíssimo, indaga:

— Qual é o drama?

O DRAMA

Colocando outro cigarro na piteira, Antunes responde com uma pergunta:

— Confias na tua mulher?

— Como?

— Pergunto se confias na tua mulher.

Pálido, encarava Antunes. Pausa. Interpelou o amigo:

— Mas que palpite é esse? Por que essa pergunta?

Antunes não respondeu imediatamente. Com o dedo mindinho, batia na cinza do cigarro. Sereno e metódico, começou:

— Bem. O negócio é o seguinte. Tu sabes que és meu do peito, não sabes?

— Toca o bonde.

Continuou:

— E eu sou um sujeito nessas condições: se há uma coisa que eu levo a sério, na vida, é a amizade. Pra mim, o amigo está acima de tudo. Acima de dinheiro, de mulher e outros bichos. E eu soube de um negócio e...

Trincando os dentes, Chagas exigiu:

— Desembucha.

E Antunes, implacável:

— Chagas, tudo me faz crer que tua mulher, que Julinha, te trai.

Durante uns dois, três minutos, houve um silêncio entre os dois. Chagas repetia mentalmente: “Julinha me trai... Julinha me trai...”. Súbito, vira-se para o amigo. Está branco:

— Quero provas.

— Provas, como?

Repetiu, na sua cólera contida:

— Provas. Você acusa minha mulher. Muito bem. Deve ter provas. Onde estão?

O outro parecia desconcertado:

— Mas, Chagas! É muito difícil provar essas coisas. Só se eu fosse olhar pelo buraco da fechadura.

Chagas insistia, numa calma apavorante:

— Se você provar, muito bem. Mas se não provar, eu juro por tudo, por essa luz que me alumia, você está desgraçado comigo.

Quando saltaram, no mesmo lugar, porque trabalhavam no mesmo edifício, Antunes suspirou:

— Escuta, Chagas. Você faça o que quiser. Cumpri meu dever e pronto.

OS INIMIGOS

Era o fim de uma amizade que durava, ao longo dos anos, desde a infância. Chagas entrou no emprego doente. Pensava: “Devo estar com febre”. Sentado na cadeira giratória, procurava reconstituir, de cabeça, toda a sua vida conjugal. Numa meditação ardente e obstinada, tentava lembrar-se de um gesto, de uma palavra, de uma frase de Julinha que pudesse sugerir a existência de um amante. Sua memória, porém, não a acusava de coisa alguma. Quatro anos depois do casamento, a pequena era a mesma mulher, sempre igual a si mesma, duma ternura que não mudava. Na hora do lanche, Chagas vira-se para um companheiro. Faz a confidência gratuita:

— Pela primeira vez, eu conheço o ódio. Pela primeira vez eu sei o que é odiar.

E, de fato, odiava Antunes. Por outro lado, descobria que há no ódio mais obstinação, mais exclusividade, mais fidelidade do que no amor. Só se pode odiar uma pessoa. E Chagas pensava em Antunes segundo a segundo, minuto a minuto. Nessa tarde, saiu mais cedo e desceu ao andar onde o outro trabalhava. Sentou-se a seu lado. Perguntou:

— Aquilo que tu me contaste. Tens certeza ou é desconfiança?

— Certeza.

— Absoluta?

— Absolutíssima.

Devia bastar. Mas Chagas teimou:

— Certeza como? Certeza por quê? Tu mesmo não disseste que certeza, nesses casos, só mesmo olhando pelo buraco da fechadura?

Antunes pôs-lhe a mão no ombro:

— Eu não olhei pelo buraco da fechadura, claro. Mas...

— Fala!

Baixou a voz:

— Mas vi, com meus próprios olhos, eu vi a tua mulher entrando num lugar assim, assim, no Leblon.

Chagas ergueu-se. Andou de um lado para outro. Sentou-se outra vez. E quis saber: “Explica uma coisa. Por que me contaste isso? Por quê?”. O outro foi lacônico:

— Achei que era meu dever de amigo.

Desesperado, protestou:

— Dever como? Dever por quê, carambolas? Ora, tu não sabes que minha mulher é tudo para mim, absolutamente tudo?

Antunes inclinou-se. Sem desfitá-lo, explicou:

— Eu não quis que bancasses o palhaço. Por isso contei.

A PROVA

E, então, a vida de Chagas mudou por completo. Não fazia a barba, não tomava banho, não mudava a camisa. Perdera todo o capricho; ou, por outra, só caprichava no desleixo. Tinha uma espécie de orgulho, de vaidade, de parecer um maltrapilho, um miserável. Julinha, impressionada, pedia: “Faz a barba ao menos, criatura!”. Ele ria, amargo; respirava fundo:

— Há coisas mais importantes do que a barba!

Todos os dias, conversava com Antunes, embora o odiasse cada vez mais. Uma tarde explodiu:

— Ah, se isso fosse uma calúnia, uma mentira tua, sórdida!... — Soluçava: “Eu te agradeceria de joelhos, se tivesses mentido, se tivesses caluniado a minha mulher!”.

O outro encarniçava-se:

— É verdade! Juro que é verdade! Quero que Deus me ce¬gue se minto! Tens que tirar esta mulher de tua vida! Não admito que um amigo meu banque o palhaço!

Rápido, Chagas levantou-se. Segurou o outro pelos dois braços e o sacudia: “Eu só acredito vendo! Tua palavra não basta!”. Sem medo, com uma determinação de amigo fanático, Antunes replicou:

— Eu incumbi uma pessoa de acompanhar os passos de tua mulher. Tu verás.

VINGANÇA

Uma semana depois, Antunes telefona para Chagas: “Olha, eu soube, pela tal pessoa, que tua mulher, hoje, às quatro da tarde, vai ao Leblon”. Às três horas, os dois partem de táxi para o local. Durante a viagem, Chagas ia dizendo, numa obsessão: “Por que não me deixaste iludido? Ela me enganaria sempre e eu não saberia nunca!”. Ria, entre lágrimas: “Nenhum marido precisa saber! Saber pra quê?”. E confessava: “Eu nunca farei nada contra a minha mulher, nunca! É absolutamente sagrada para mim. Por que não me deixaste ser traído em paz?”. O outro respondeu, lacônico:

— Sou teu amigo. — E repetia: “Ponho o amigo acima de tudo”.

Às quatro horas, Chagas estava no táxi espiando a porta central do edifício. Viu quando a mulher descia, de outro táxi, acompanhada. A seu lado, Antunes exultou:

— E agora? Viste ou não viste com teus próprios olhos? Não foi batata o que eu te disse? Foi ou não foi?

Então, arquejante, a boca torcida, Chagas virou-se para o delator. Disse:

— Eu te perdoaria se tivesses mentido, se tivesses caluniado. Mas não mentiste, nem caluniaste. Disseste a verdade. E eu não te perdôo a verdade.

Deu-lhe dois tiros, à queima-roupa. E ainda puxou o gatilho, uma terceira vez, para acabar de matar o homem que não mentira.
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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
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