Pondo os suspensórios, pergunta:
— Como vai a besta do teu marido?
Vilma boceja:
— Navegando.
Edgard começa a dar o nó na gravata. Pensa naquele homem que era traído regularmente, três vezes por semana. Quer saber:
— E ele não desconfia de nada? Tens certeza?
— Absoluta.
Finalmente, já de paletó, Edgard resume sua opinião:
— Esse negócio de adultério não depende da mulher, e sim do homem, da vocação do homem. O sujeito já nasce “marido enganado”.
E Vilma:
— Um chato.
O MARIDO
Só quando ela passou pela Central é que viu as horas: — dez da noite. Tomou um susto. Estava casada com um homem que, segundo a opinião de todo mundo, tinha o defeito de ser bom demais. E, com efeito, ninguém mais doce, mais paciente, mais terno, do que Aristóteles Passarinho. Não se lhe conhecia, em toda a existência, uma vaga e inofensiva irritação. Quem brigava, naquela casa, era Vilma; Passarinho, nunca. Nem com a esposa, nem com ninguém. A pequena vinha de uma família de nervosos. O pai acabara no hospício e ela mesma levava, no mais íntimo de si mesma, o medo, o pressentimento da loucura. Conhecera Edgard numa fila de ônibus e fora o que se pode chamar de uma conquista fácil. Logo da primeira vez, o rapaz quis saber por que ela traía o marido. Vilma vacilou. Eis a verdade: — não havia motivo nenhum, respondeu, vaga:
— É de uma bondade que dá nojo.
Há dois anos que durava aquele romance secreto. Naquela noite, Vilma perdera a noção do tempo. Entrou em casa às dez e trinta e cinco. Embora desprezasse o marido, achou que era demais. E, pela primeira vez, criou a hipótese: — “Será que ele vai dar a bronca?”. Mas foi encontrá-lo como sempre, com a mesma cordialidade mansa, o mesmo olhar amável, o mesmo sorriso bom. Levantou-se ao vê-la:
— Tudo OK?
Vilma percebeu que se assustara à toa. Teve para si mesma o comentário irritado: — “Boba!”. E quando ele inclinou-se para beijá-la, ela fugiu com o rosto. Surpreso, Aristóteles balbuciou, sem entender a repulsa:
— Que é isso, meu bem? — Ela explodiu:
— Fui eu que cheguei e sou eu que devo beijar, se quiser, e não você.
O outro riu, vermelho:
— Está certo, meu anjo, está certo.
Assim escorraçado, foi ler a página de esporte da última edição.
DESESPERO
Talvez faltasse um pouco de medo ao romance proibido. Aquele adultério sem sobressaltos, sem correrias, sem incidentes, pouco diferia da rotina matrimonial. Vilma fez para si mesma o raciocínio: — “Não tenho amante. Tenho dois maridos”. O pior de tudo, porém, era a personalidade de Aristóteles. Seria real aquela cegueira ou simulada? E, um dia, em que ela o destratou, ele respondeu com tanta doçura que ela, nervosíssima, perdeu a cabeça de vez:
— Por que é que você não grita comigo?
E ele:
— Meu anjo, não se deve gritar com ninguém!
Cresceu para o marido:
— Não se deve gritar, uma ova! Por que não, ora pipocas? Já sei o que você quer: — quer me humilhar com a sua bondade! Você vive esfregando na minha cara a sua superioridade. Mas fique sabendo: — estou até aqui, percebeste? Até aqui!
Aristóteles, ao seu lado, consternado, não sabia o que dizer, o que fazer. Viu a mulher atirar-se em cima de uma cadeira, aos soluços. Ele próprio já tinha vontade de chorar. Para não irritá-la mais, porém, calou-se. Vilma continuava, por entre lágrimas:
— Eu preferia que você me batesse! Mil vezes a pancada!
O pobre-diabo abriu os braços:
— Quem sou eu para te bater?
O DRAMA
No dia seguinte, uns dez minutos depois do marido ter saído, bate o telefone. Ela se precipita: — era o Edgard. Queria saber como a pequena chegara e se o marido fizera algum comentário. Vilma abriu o coração:
— Já não agüento! Não suporto mais!
O amante admirou-se:
— Ele te fez alguma coisa?
Explica:
— Não me fez nada. Mas eu é que não suporto. O que não me entra é a mania da bondade. Se fosse como os outros, como todo mundo! Mas quer ser melhor, compreendeu?
Edgard pondera:
— Se quer ser bom, ótimo. Imagina se ele fosse de dar pancadas ou tiros? Afinal de contas, a que horas tu chegaste ontem? Dez e lá vai fumaça. Pois é, meu anjo: não é todo mundo que suporta esses desacatos. Foi ou não foi um desacato? Foi, lá isso foi!
Esse raciocínio devia impressioná-la. Ela, porém, reagia sempre:
— Te digo, com pureza d’alma: — eu preferia um marido brabo a esse mosca-morta.
— E, chorando, continua: — “Isso não é homem! Não é nada!”.
Conversaram ainda, no telefone, algum tempo. Edgard aconselhou-lhe calma, acima de tudo. A verdade é que ele dava graças a Deus de que o enganado fosse terno e assim inofensivo. Exagerou mesmo: — “É, tem nome de passarinho e alma de cambaxirra!”. Antes de se despedir, Vilma disse:
— Qualquer dia apareço em casa às três horas da manhã. E quero ver se ele vai topar. Só quero ver!
O DESAFIO
No primeiro dia em que foi ao apartamento com o Edgard, começou: — “Queres saber de uma coisa? Vou me separar!”. Ele toma um susto: — “Por quê, carambolas?”. Vilma apanha um cigarro:
— O sujeitinho me encheu! Basta!
Então, por uma boa e farta meia hora, Edgard tratou de doutriná-la. Que não fizesse isso, que não valia a pena, que era melhor deixar como estava. Argumentou: — “Não incomoda. É inofensivo”. Tanto falou que, afinal, ela suspira: — “Vá lá, vá lá!”. Em seguida, agarra-se ao amante:
— Mas, então, só te largo às duas horas da manhã. Serve? Serve?
Recua:
— Por quê?
Diz:
— É uma experiência. Quero ver se a bondade dele é de araque ou batata. Se ele não disser nada, então eu não entendo bolacha de coisa nenhuma!
Assim combinaram e assim fizeram, embora o protesto vago de Edgard: — “Vocês, mulheres, são de amargar!”. Às duas da manhã, o rapaz a levou num táxi e soprou-lhe, por despedida: — “Cuidado! Qualquer coisa, põe a boca no mundo e corre!”. Ela chegou em casa às duas e meia. Estava lá o marido, em pijama, fumando. Trêmula, ansiosa, ela o encarou. Era impossível que, desta vez, ele não a interpelasse. Aristóteles, porém, limitou-se à pergunta:
— Já jantaste?
Ela enfureceu-se:
— Será possível que eu chego às duas da manhã e que você não diga nada? Não tem vergonha, não tem nada? Pelo amor de Deus, responde: — não queres saber onde eu estive e com quem estive?
E ele, sem desfitá-la: — “Eu acredito em ti”. Agarrou-o pelos dois braços:
— E se eu te disser que estive com um amante? E se eu te disser que tenho um amante?
Há uma pausa. Custa a responder: — “Se tens um amante é porque eu não soube amar, nem soube ser amado”. Vilma trinca os dentes:
— Basta! Basta!
O FIM
Não dormiu aquele resto de noite. Com os olhos abertos, no escuro do quarto, repetia para si mesma: — “Odeio essa bondade!”. Pela manhã, deixa o marido dormindo, levanta-se, apanha um lápis e sai escrevendo pelas paredes: — “Morro, porque o meu marido é bom demais!”.
Em seguida apanhou o fio do ferro elétrico, fez um laço e enforcou-se no fundo do corredor.
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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
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— Como vai a besta do teu marido?
Vilma boceja:
— Navegando.
Edgard começa a dar o nó na gravata. Pensa naquele homem que era traído regularmente, três vezes por semana. Quer saber:
— E ele não desconfia de nada? Tens certeza?
— Absoluta.
Finalmente, já de paletó, Edgard resume sua opinião:
— Esse negócio de adultério não depende da mulher, e sim do homem, da vocação do homem. O sujeito já nasce “marido enganado”.
E Vilma:
— Um chato.
O MARIDO
Só quando ela passou pela Central é que viu as horas: — dez da noite. Tomou um susto. Estava casada com um homem que, segundo a opinião de todo mundo, tinha o defeito de ser bom demais. E, com efeito, ninguém mais doce, mais paciente, mais terno, do que Aristóteles Passarinho. Não se lhe conhecia, em toda a existência, uma vaga e inofensiva irritação. Quem brigava, naquela casa, era Vilma; Passarinho, nunca. Nem com a esposa, nem com ninguém. A pequena vinha de uma família de nervosos. O pai acabara no hospício e ela mesma levava, no mais íntimo de si mesma, o medo, o pressentimento da loucura. Conhecera Edgard numa fila de ônibus e fora o que se pode chamar de uma conquista fácil. Logo da primeira vez, o rapaz quis saber por que ela traía o marido. Vilma vacilou. Eis a verdade: — não havia motivo nenhum, respondeu, vaga:
— É de uma bondade que dá nojo.
Há dois anos que durava aquele romance secreto. Naquela noite, Vilma perdera a noção do tempo. Entrou em casa às dez e trinta e cinco. Embora desprezasse o marido, achou que era demais. E, pela primeira vez, criou a hipótese: — “Será que ele vai dar a bronca?”. Mas foi encontrá-lo como sempre, com a mesma cordialidade mansa, o mesmo olhar amável, o mesmo sorriso bom. Levantou-se ao vê-la:
— Tudo OK?
Vilma percebeu que se assustara à toa. Teve para si mesma o comentário irritado: — “Boba!”. E quando ele inclinou-se para beijá-la, ela fugiu com o rosto. Surpreso, Aristóteles balbuciou, sem entender a repulsa:
— Que é isso, meu bem? — Ela explodiu:
— Fui eu que cheguei e sou eu que devo beijar, se quiser, e não você.
O outro riu, vermelho:
— Está certo, meu anjo, está certo.
Assim escorraçado, foi ler a página de esporte da última edição.
DESESPERO
Talvez faltasse um pouco de medo ao romance proibido. Aquele adultério sem sobressaltos, sem correrias, sem incidentes, pouco diferia da rotina matrimonial. Vilma fez para si mesma o raciocínio: — “Não tenho amante. Tenho dois maridos”. O pior de tudo, porém, era a personalidade de Aristóteles. Seria real aquela cegueira ou simulada? E, um dia, em que ela o destratou, ele respondeu com tanta doçura que ela, nervosíssima, perdeu a cabeça de vez:
— Por que é que você não grita comigo?
E ele:
— Meu anjo, não se deve gritar com ninguém!
Cresceu para o marido:
— Não se deve gritar, uma ova! Por que não, ora pipocas? Já sei o que você quer: — quer me humilhar com a sua bondade! Você vive esfregando na minha cara a sua superioridade. Mas fique sabendo: — estou até aqui, percebeste? Até aqui!
Aristóteles, ao seu lado, consternado, não sabia o que dizer, o que fazer. Viu a mulher atirar-se em cima de uma cadeira, aos soluços. Ele próprio já tinha vontade de chorar. Para não irritá-la mais, porém, calou-se. Vilma continuava, por entre lágrimas:
— Eu preferia que você me batesse! Mil vezes a pancada!
O pobre-diabo abriu os braços:
— Quem sou eu para te bater?
O DRAMA
No dia seguinte, uns dez minutos depois do marido ter saído, bate o telefone. Ela se precipita: — era o Edgard. Queria saber como a pequena chegara e se o marido fizera algum comentário. Vilma abriu o coração:
— Já não agüento! Não suporto mais!
O amante admirou-se:
— Ele te fez alguma coisa?
Explica:
— Não me fez nada. Mas eu é que não suporto. O que não me entra é a mania da bondade. Se fosse como os outros, como todo mundo! Mas quer ser melhor, compreendeu?
Edgard pondera:
— Se quer ser bom, ótimo. Imagina se ele fosse de dar pancadas ou tiros? Afinal de contas, a que horas tu chegaste ontem? Dez e lá vai fumaça. Pois é, meu anjo: não é todo mundo que suporta esses desacatos. Foi ou não foi um desacato? Foi, lá isso foi!
Esse raciocínio devia impressioná-la. Ela, porém, reagia sempre:
— Te digo, com pureza d’alma: — eu preferia um marido brabo a esse mosca-morta.
— E, chorando, continua: — “Isso não é homem! Não é nada!”.
Conversaram ainda, no telefone, algum tempo. Edgard aconselhou-lhe calma, acima de tudo. A verdade é que ele dava graças a Deus de que o enganado fosse terno e assim inofensivo. Exagerou mesmo: — “É, tem nome de passarinho e alma de cambaxirra!”. Antes de se despedir, Vilma disse:
— Qualquer dia apareço em casa às três horas da manhã. E quero ver se ele vai topar. Só quero ver!
O DESAFIO
No primeiro dia em que foi ao apartamento com o Edgard, começou: — “Queres saber de uma coisa? Vou me separar!”. Ele toma um susto: — “Por quê, carambolas?”. Vilma apanha um cigarro:
— O sujeitinho me encheu! Basta!
Então, por uma boa e farta meia hora, Edgard tratou de doutriná-la. Que não fizesse isso, que não valia a pena, que era melhor deixar como estava. Argumentou: — “Não incomoda. É inofensivo”. Tanto falou que, afinal, ela suspira: — “Vá lá, vá lá!”. Em seguida, agarra-se ao amante:
— Mas, então, só te largo às duas horas da manhã. Serve? Serve?
Recua:
— Por quê?
Diz:
— É uma experiência. Quero ver se a bondade dele é de araque ou batata. Se ele não disser nada, então eu não entendo bolacha de coisa nenhuma!
Assim combinaram e assim fizeram, embora o protesto vago de Edgard: — “Vocês, mulheres, são de amargar!”. Às duas da manhã, o rapaz a levou num táxi e soprou-lhe, por despedida: — “Cuidado! Qualquer coisa, põe a boca no mundo e corre!”. Ela chegou em casa às duas e meia. Estava lá o marido, em pijama, fumando. Trêmula, ansiosa, ela o encarou. Era impossível que, desta vez, ele não a interpelasse. Aristóteles, porém, limitou-se à pergunta:
— Já jantaste?
Ela enfureceu-se:
— Será possível que eu chego às duas da manhã e que você não diga nada? Não tem vergonha, não tem nada? Pelo amor de Deus, responde: — não queres saber onde eu estive e com quem estive?
E ele, sem desfitá-la: — “Eu acredito em ti”. Agarrou-o pelos dois braços:
— E se eu te disser que estive com um amante? E se eu te disser que tenho um amante?
Há uma pausa. Custa a responder: — “Se tens um amante é porque eu não soube amar, nem soube ser amado”. Vilma trinca os dentes:
— Basta! Basta!
O FIM
Não dormiu aquele resto de noite. Com os olhos abertos, no escuro do quarto, repetia para si mesma: — “Odeio essa bondade!”. Pela manhã, deixa o marido dormindo, levanta-se, apanha um lápis e sai escrevendo pelas paredes: — “Morro, porque o meu marido é bom demais!”.
Em seguida apanhou o fio do ferro elétrico, fez um laço e enforcou-se no fundo do corredor.
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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.