Saíram juntos da festa. E o amigo vinha entusiasmado:
— Foi contigo! Fez fé com tua cara!
Referia-se a Teresinha Seixas, que não tirara os olhos do Asdrúbal, num
flerte escandaloso. Tinha sido uma coisa de chamar a atenção. Raimundo,
eufórico como se o beneficiado fosse ele, atiçava o outro:
— Está pra ti. Dá em cima, que é canja. Quero ser mico de circo se ela não entregar os pontos.
Mas o Asdrúbal, que era um tímido e exagerava as dificuldades, coçava a cabeça:
— O negócio não é assim como você diz. É muito mais complicado.
— Complicado o quê! Barbada. E, ainda por cima, uma sujeita cheia da
“erva”. Tem pra lá de vinte mil contos. Sabes lá o que é isso?
Despediram-se, afinal. E o Asdrúbal, sujeito sem vintém, escravo do
salário, entrou em casa com aquilo na cabeça: vinte mil contos! Tirou a
roupa e, nu da cintura para cima, ficou ruminando a situação que
subitamente se criara na sua vida. O fato é que Teresinha, filha do
Seixas dos lotações, parecia interessadíssima e ele já se via rico,
milionário, o diabo.
ROMANCE
No dia seguinte, pela manhã, quando Asdrúbal entrou no emprego,
encontrou o Raimundo à sua espera. Tomara-se de um interesse medonho
pelo caso. E foi logo intimando: “Olha aqui, sua besta: você vai
telefonar agorinha mesmo para fulana”. Asdrúbal, que tinha horror da
ação, quis escapar. Mas ele, implacável, coagiu o outro e foi ao cúmulo
de fazer a ligação. Asdrúbal, quisesse ou não, teve que falar. Gaguejou
no telefone, suou, meteu os pés pelas mãos. Raimundo, do lado, bufava:
“Mas que animal!”. E foi preciso que Teresinha, desembaraçadíssima
(sabia até francês), conduzisse a conversa e inventasse os assuntos.
No fim de dez minutos, a timidez de Asdrúbal evaporava-se. Já se
permitia até piadas. Raimundo soprou: “Marca um encontro! Marca um
encontro!”. O rapaz acabou tomando coragem e sugerindo o encontro. E
quando Raimundo percebeu que Teresinha concordava, assoviou de pura
delícia. Finalmente, despediram-se. E então, triunfante, Raimundo cantou
vitória:
— Mulher, quando cisma com um cara, já sabe. Está no papo, direitinho!
E Asdrúbal maravilhado: “Veremos. Veremos”. Pensava nos lotações do sogro e suspirava.
Horas depois, num café, ainda confabulavam; e foi então que, baixando a
voz, Raimundo insinuou: “Tu me arranjas um emprego com o velho, não me
arranja? Vê lá! Sou teu, do peito!”. E insistiu:
— Mas um emprego bacana. Micharia não interessa!
E começaram os encontros. Ofuscados pelo dinheiro da pequena, os dois
amigos esqueciam-se de um pequeno detalhe: ou seja, a própria pequena.
Tinham desta uma idéia vaga, nebulosa. E se lhes pedissem para descrever
o feitio do nariz, do queixo, do corpo de Teresinha, não saberiam
fazê-lo. Ignoravam, honestamente, se era bonita, feia ou simpática.
NOIVOS
Num instante, a menina meteu o namorado dentro de casa. Asdrúbal
conheceu o pai, mãe, irmãs e tias. Jantou lá e suou frio quando serviram
o peixe. Não sabia direito qual o garfo. Já por ocasião da sopa,
recebeu um impacto tremendo, pois a moça soprou-lhe: “Faz menos
barulho”. Saiu humilhado e, ao mesmo tempo, mais preso do que nunca
àquela família.
E, pouco a pouco, foi contando à menina as suas dificuldades e,
sobretudo, as desconsiderações que sofria no emprego. Aliás, o amigo o
industriara: “Conta miséria, rapaz”. E o Asdrúbal, segurando a mão da
pequena, gemia: “O chefe tomou assinatura comigo”. Ela o considerava um
anjo, espantava-se:
— Mas por quê?
— Porque não sou puxa como os outros. Digo o que tenho de dizer e pronto.
Teresinha, solidária, reforçava:
— Faz bem, se ele se fizer de besta, mete-lhe a mão na cara.
— E o emprego?
— Por minha conta. — E acrescentou: — Fome você não passa.
Raimundo, quando soube da conversa, inflamou-se:
— Ótimo! Se ela garante o negócio, nem se discute.
O fato é que Asdrúbal passou a ser outro no escritório. Ele que sempre
se caracterizara pela subserviência mais deslavada, pela humildade mais
constrangedora — roncava grosso e já falava em “quebrar caras”. Um dia, o
chefe soube que ele não saía do telefone e o convocou para o competente
sabão:
— Que negócio é esse que andam me contando? O senhor pensa que isso aqui é a casa da Mãe Joana? Não, senhor, absolutamente!
A princípio, por uma questão de hábito, Asdrúbal ouviu só, calado. Mas
lembrou-se de que o dinheiro do sogro cobria a retaguarda. Num instante,
estava de dedo espetado na cara do chefe: “Seu palhaço! Vem cá para
fora que eu te parto a cara. Cretino!”. O chefe, lívido, numa crise de
pânico, escondia-se detrás dos móveis e punha a boca no mundo. Tiveram
que arrastar Asdrúbal, aos apelos de “não faça isso”. Nos corredores,
ele ainda esbravejava: “Eu sou é homem!”.
Da rua telefonou para a pequena, ainda heróico; terminou com a
insinuação: “Estou sem emprego e imagina o abacaxi: devo três meses do
quarto!”.
O LAR
O sogro deu-lhe emprego na firma. Raimundo, animado com o exemplo,
brigou no emprego, disse uns desaforos ao patrão. Mas este, corpulento e
feroz, correu com ele a taponas. Desempregado, o rapaz passou a viver
às custas do Asdrúbal. Mordia-o, diariamente, em dez, vinte cruzeiros; e
estava sempre reclamando: “Vê se te casas e me arranja o tal emprego”.
Meses depois, casava-se Asdrúbal. E parte para a lua-de-mel. No último
momento, Raimundo fez-lhe um substancial pedido de dinheiro: quinhentos
cruzeiros. O sogro fez a advertência: “Trata bem minha filha, rapaz, que
tu estás feito”.
Durou trinta dias a lua-de-mel e, quando voltou, Asdrúbal parecia
espantado. Começava a conhecer verdadeiramente a mulher. Até então, ele,
na embriaguez do casamento rico, não tomara conhecimento dos defeitos e
qualidades físicas e morais de Teresinha. A experiência conjugal
abria-lhe os olhos.
Descobria, antes de mais nada, que ela era somítica demais. Tomava conta
do dinheiro, regateava até o último tostão, examinava todas as contas.
Sempre que, numa boate, ele se permitia uma gorjeta muito alta, ela o
imprensava: “Parece até que o dinheiro é teu. Calma, calma no Brasil!”.
E, não raro, o advertia antes: “Cuidado que meu pai custou muito a
ganhar esse dinheiro!”.
Voltaram da montanha para morar num palacete, na Gávea. Vamos e
venhamos: não lhe faltava nada. Casa de luxo, automóvel, piscina de
mármore, garçom, o diabo. E, na rua, os lotações do sogro continuavam
atropelando pedestres, E conseguiu, mesmo, um emprego de contínuo para o
Raimundo, na firma.
Mas ao chegar de fora teve uma surpresa: todas as criadas, de sua casa, eram pretas. Veio perguntar à mulher:
— Que negócio é esse?
E ela, categórica:
— Claro, ora essa! Ou você pensa que eu sou alguma boba? Pois sim! Criada branca não me entra aqui!
— Mas, criatura!
— Sim, senhor! Só preta e olhe lá! Não acredito em homem nenhum! Eu que
ponha uma criada bonitinha aqui, para ver o que acontece!
A RAINHA DE SABÁ
Entre as cinco ou seis empregadas, havia uma, Mariana, que se destacava
das demais. Quando Teresinha a viu teve um muxoxo: “Hum! hum!”. Mas
deixou-se convencer pela cor. Porque a menina, com seus dezenove anos,
era uma figura singular. No Carnaval anterior, saíra de Rainha de Sabá
num rancho, com espetacular sucesso. E Teresinha dizia para as visitas:
“Tem bom corpo, mas é preta!”.
Mergulhado até o pescoço na nova vida, Asdrúbal procurava Raimundo.
Parecia meio descontente; suspirava: “Não sei o que há comigo”.
Raimundo, que era agora contínuo e de uniforme, fazia uma síntese:
— Vida chata, meu Deus do céu!
De vez em quando, ele ia à casa do amigo, levar encomendas. Um dia,
chamou Asdrúbal a um canto: “Tens, em casa, um material de primeira”.
Espanto de Asdrúbal: “Quem?”. E o outro: “A Mariana”. Asdrúbal fez a
restrição racial: “Mas é preta!”. Raimundo saltou:
— Deixa de ser burro! Pode ser preta, mas que perfil. E o corpo, menino!
A verdade é que Raimundo, inferiorizado dentro do uniforme de contínuo,
tomava-se de ódio contra Teresinha. Em casa, na cama, devorado pelos
percevejos, ele ruminava: “Vou fazer a caveira dessa gaja!”. Não sabia
como, mas... Sempre que podia, interpelava Asdrúbal: “Como vai a Rainha
de Sabá? Ah, se eu fosse você!”. E Asdrúbal, cruzando com Mariana, no
corredor, já a olhava de uma certa maneira.
O amigo o sugestionava: “Deixa de preconceito besta!”.
O CHEQUE
No dia em que Asdrúbal fez trinta e cinco anos, a mulher preparou um
grande jantar, com a presença de muitos parentes, inclusive dos pais.
Quando todos se sentaram à mesa, o Asdrúbal apanhou o guardanapo e um
papel caiu no chão. Surpreso, curvou-se e apanhou. Era um cheque de
quinhentos mil cruzeiros! Enquanto ele, vermelhíssimo, relia a
importância, os parentes batiam palmas e o sogro anunciava:
— Para uma viagem a Paris e outros bichos!
Teresinha ergueu-se e veio beijá-lo na testa. Então, aconteceu o
seguinte. De pé, à cabeceira da mesa, o rapaz olhou ainda uma vez o
papel e, sem exaltação, com método, o rasgou em não sei quantos
pedacinhos. Houve alarido na sala. Que é isso? Está louco? Bêbado? Mas
todos emudeceram quando ele, em voz forte e nítida, anunciou:
— Comunico que vou me desquitar de minha mulher, aqui presente. E que me
casarei com minha criada, Mariana, no México, no Uruguai ou no raio que
o parta.
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sábado, 17 de setembro de 2011
Rainha de Sabá
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