terça-feira, 6 de setembro de 2011

Esposa bem tratada

O Guedes avisou:

— A Luci é dureza, percebeste?

Miranda virou-se:

— Dureza? E por que dureza?

O outro foi explicando: — “É séria por natureza e, além disso, o Braga é o melhor marido do mundo, caxias até debaixo d’água. Tu achas que ela vai trair um marido que nunca lhe fez nada, que a trata como uma rainha? Pensa bem”.
Impressionado, Miranda balbucia:

— Eu não sabia que o Braga era assim. E deve ser o único, porque todos os maridos que eu conheci, até agora, são uns bestalhões de fivela!

Então o Guedes, que conhecia o casal, que lhe freqüentava a casa, que almoçava e jantava lá de vez em quando, entrou a traçar o retrato daquele esposo extraordinário. Entre outras coisas que abalaram o Miranda, revelou o seguinte: — o Braga jamais traíra a mulher, jamais. Insistiu:

— Então achas que uma mulher tão bem tratada vai trair?

O outro, no seu despeito e na sua frustração, rosna: — “Quem sabe?”. Guedes pulou:

— Quem sabe, uma ova! E vou te dizer o seguinte: — queres saber o que é mulher séria? — Pausa e conclui: “Séria é a mulher bem tratada. Portanto desiste, rapaz, porque desse mato não sai cachorro, ou coelho, sei lá!”.

O APAIXONADO

Miranda era conhecido como o sujeito que tinha amores imortais, de quinze minutos. Mas a paixão pela esposa do Braga parecia um sentimento inédito na sua vida. Há três meses que gostava da Luci e só da Luci. Conhecera-a numa festa em casa de família. Podia ter convidado a pequena para dançar. Mas era de uma timidez agressiva em certas ocasiões. Apresentado à jovem senhora, mal pôde gaguejar um “muito prazer”, e foi só. Mas não lhe tirava os olhos de cima e não sossegou enquanto não se sentou perto de Luci. Ela conversava com outra senhora e o assunto era parto. Miranda ouviu a pequena dizer:

— Graças a Deus, nunca levei um ponto!

Referia-se aos próprios partos, que eram simples, fáceis, quase indolores. E Miranda, que não entendia nada de maternidade, achou que o fato de uma parturiente não levar ponto constituía um privilégio altíssimo. Saiu da festa febril de paixão. Luci era do “tipo gordinho” que, desde menino, o deslumbrava. Dia após dia, ele viveu em função desse amor. Abriu o coração com o seu amigo Guedes. Este o dissuadiu. Miranda considerou o raciocínio do amigo e levantou-se:

— Acho que você tem razão. O golpe é desistir.

De pé também, o Guedes bateu-lhe no ombro:

— Arranja outra. Mulher é que não falta. Escolhe uma que não seja bem tratada pelo marido.

O MILAGRE

Dois dias depois, estava o Miranda no escritório, batendo umas faturas, numa depressão medonha. Numa mesa perto, o Azevedo, que era um velho patusco, estava dizendo, com alegre ferocidade: — “Eu acredito em milagre. E digo mais: — só acredito em milagre”. Então, na sua tristeza, o Miranda pensou que, para ele, o milagre seria o êxito no seu amor por Luci. Pois bem: — neste justo momento, o boy o chama ao telefone. Levanta-se e atende. Ouve uma voz feminina, que diz:

— Sabe quem está falando?

Confessa:

— Não, não sei. Quem é?

Resposta:

— Luci

— Que Luci?

E a outra, provocante:

— A Luci em que você está pensando.

O trote pareceu-lhe evidente. Foi grosseiro no telefone:

— Sossega o periquito. E das duas uma: — ou diz quem é ou desligo.

Do outro lado da linha, a pequena ria. E só uns cinco minutos depois é que Miranda convenceu-se em definitivo: era Luci, sim, a fabulosa Luci, que o procurava e ligava para ele. No maior deslumbramento de sua vida, encheu-se de dedos. Ela ria, ainda:

— Você pensa que eu não percebo que você não tira os olhos de cima de mim? Podia ter me telefonado, ora essa, e por que não?

O inepto pergunta: — “E seu marido?”. Respondeu: — “Meu marido não está sempre em casa”. No fim de meia hora de conversa, Miranda, num arranco de coragem suicida, propõe-lhe um encontro, que a menina aceita com uma deliciosa naturalidade. Ela fez, porém, uma ressalva:

— Tem que ser num interior.

Admirou-se: — “Como num interior?”. Com certa impaciência, a outra põe os pingos nos is: — “Você não tem um apartamento?”. O pobre-diabo quase agonizou no telefone. Desvairado, promete: — “Arranja-se. É o de menos”. Larga o telefone com as pernas bambas, a vista turva. Senta-se, aperta a cabeça entre as mãos e procura pôr ordem nas idéias.

Pensa: — “Deve ser sonho ou, então, é o milagre”. Procura o Guedes, conta-lhe tudo:

— Entrou de sola, compreendeste? E fiquei de telefonar, de manhã, dando o endereço do apartamento.

O Guedes, atônito, via ruir por terra a sua teoria da “esposa bem tratada”.

Miranda, aflito, cutucava-o:

— Temos que arranjar um apartamento, digno da “Rainha de Sabá”.

ABERRAÇÃO

Miranda conseguiu o que queria com o Lobato. Este, garoto milionário e irresponsável, montara um apartamento que só faltava falar. Tinha lá de tudo, inclusive uma geladeira suntuária, monumental. O Lobato entrega-lhe a chave e aconselha: — “Mostra-lhe a geladeira!”. E justificava: “Mulher se impressiona muito com geladeiras!”. Miranda embolsa a chave e bufa: — “Tu és uma mãe”.

No dia seguinte pela manhã, diz à pequena, pelo telefone, o endereço do apartamento em Copacabana. Combinaram tudo, de pedra e cal, para as quatro horas. Miranda continuava inseguro. Dizia até para o Guedes: — “Será que eu estou sonhando?”. O Guedes, interessado no episódio, foi levá-lo até a esquina do edifício. Miranda chegou antes, uns quarenta minutos na frente. Às quatro em ponto, Luci apareceu. Diante dela, ele balbucia, numa embriaguez total:

— Minha gordinha!

O FIM

Duas horas depois, Luci está diante do espelho, pondo batom. Tem um lírico lamento: — “Você me arranhou com a sua barba!”. E, então, ele vem por trás e, na sua felicidade, quer saber: — “Tu gostas de mim?”. Luci vira-se: — “Eu não gosto de ti”. Ele não entende. Insiste: — “Nem um pouquinho?”. Ela responde, doce, mas inapelável: — “Nada”. E ele atônito: — “Sério?”. Encara-o: — “Seríssimo!”. Sentiu que Luci não mentia e, no seu despeito, segura aquela mulher possuída:

— Se não gostas de mim, por que traíste teu marido?

Luci ergue-se. Apanha a bolsa, enquanto o amante espera. Diz-lhe:

— Traí meu marido porque, todas as noites, ele tira a dentadura e põe num copo.

Miranda não fez um gesto quando a pequena passou por ele, sem uma palavra, um olhar, um sorriso. Deixou-a ir e, só no quarto, sentou-se na extremidade da cama e pôs-se a chorar.
________________________________________________________________
A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
Leia mais...

Diabólica

Na noite do pedido oficial, Dagmar, de braço com o noivo, foi até a janela, que se abria para o jardim. Então, com uma tristeza involuntária, uma espécie de presságio, suspirou. E foi meio vaga:

— Caso sério! Caso sério!

E Geraldo, baixo e doce:

— Por quê?

Dagmar vacila. Finalmente, tomando coragem, indica com o olhar:

— Estás vendo minha irmã?

— Estou.

Durante alguns momentos, olharam, em silêncio, a pequena Alicinha, de treze anos, que, na ocasião, apanhava uma flor no jarro, para dar não sei a quem. Dagmar pergunta: “Bonita, não é?”. Geraldo concorda: “Linda!”. Então, pousando a mão no braço do noivo, a pequena continua:

— Por enquanto, Alicinha é criança. Mas daqui a um ano, dois, vai ser uma mulher e tanto.

— Um espetáculo!

Sorriu, triste:

— Um espetáculo, sim! — Pausa e, súbito, tem uma sinceridade heróica: — Há de ser mais bonita do que eu.

Geraldo interrompeu: “Protesto!”

Foi quase grosseira:

— Não me põe máscara, não! Eu tenho espelho, ouviu? Agora, que sou tua noiva, quero te dizer o seguinte.

— Fala.

E ela:

— Você é homem e eu sei que esse negócio de homem fiel é bobagem. Mas toma nota: se você tiver que me trair, que não seja nem com vizinha, nem com amiga, nem com parente. Você percebeu?

Surpreso e divertido, exclama:

— Você é de morte, hein?

AS IRMÃS

Havia entre as duas irmãs uma diferença de quatro anos; Dagmar tinha dezessete, Alicinha treze. Até então, Geraldo via a cunhada como uma menina irremediável. No fundo, talvez imaginasse que ela seria para sempre assim, criança, criança. A observação da noiva o apanhou desprevenido. Pouco depois, olhava para Alicinha com uma nova e dissimulada curiosidade. Sentiu que a mulher, ainda contida na menina, começava a desabrochar. Esta constatação o perturbou, deu-lhe uma espécie de vertigem.

Na hora de sair, despediu-se de todos. A noiva veio levá-lo até o portão. Ao ser beijada na face, disse:

— E não esqueça: Alicinha é sagrada para você!

Era demais. Doeu-se e protestou:

— Mas que palpite é esse? Que idéia você faz de mim? Sabe que assim você até me ofende?

Cruzou os braços, irredutível:

— Ofendo por quê? Os homens não são uns falsos?

— Eu, não!

Ela replicou, veemente:

— Você é como os outros. A mesma coisa, compreendeu?

FAMÍLIA

Mas quando Dagmar confessou aos pais que advertira o noivo, foi um deus-nos-acuda. A mãe pôs as mãos na cabeça: “Você é maluca?”. Quanto ao pai, passou-lhe um verdadeiro sabão:

— Foi um golpe errado. Erradíssimo!

— Eu não acho.

O velho tratou de ser demonstrativo: “Você pôs maldade onde não havia!

Despertou a idéia do seu noivo!”.

Replicou, segura de si:

— Papai, eu sei muito bem onde tenho o meu nariz.

O pai andava de um lado para outro, nervoso. Estacou, interpelando-a:

— E agora, com que cara teu noivo vai olhar para tua irmã? Vocês, mulheres, enchem! E, além disso, parta do seguinte princípio: uma irmã está acima de qualquer suspeita! Família é família, ora bolas!

E Dagmar, obstinada:

— Meu pai, gosto muito de Alicinha. É uma pequena ótima, formidável e outros bichos. Mas intimidade de irmã bonita com cunhado, não! Nunca!

CIÚMES DOENTIOS

Num instante, criou-se o caso no seio da família. Não houve duas opiniões. Segundo todo mundo, aquilo não era normal, não podia ser normal. Um dos grandes argumentos foi a idade de Alicinha: “Como pode? Como pode?”. O pai, mascando o charuto, argumentava: “Que você desconfie de todo mundo, até de poste, vá lá! Acho que uma mulher deve defender com unhas e dentes o seu homem. Mas irmã é outra coisa! Irmã é diferente!”.

Na sua tristeza, ela replicava: “O que eu não sou é burra!”. E o pai: “Nem sua irmã, nem seu noivo merecem isso!”. Por fim, já se falava, abertamente, em caso. Um primo da pequena, que era pediatra, sugeriu:

— Por que é que não levas fulana a um psiquiatra?

Ela acabou indo, vencida pelo cansaço da própria vontade. Lá, o psiquiatra, depois de um interrogatório medonho, chega à seguinte conclusão: “O negócio é extrair os dentes!”. O pai da pequena caiu das nuvens. Chorou, amargamente, o dinheiro da consulta:

— Mas que animal! Que palhaço! — E, jocoso, criava o problema: — Isso é psiquiatra ou é dentista?

Mas o fato é que, pouco a pouco, sem sentir e sem querer, Dagmar foi se deixando dominar pela pressão da família. O próprio noivo colaborou nesse sentido. Era hábil:

— Você não precisa ter medo de mulher nenhuma. Pra mim, não existe no mundo mulher mais bonita do que você. Palavra de honra!

O MAIÔ

Só quem não se dava por achada e parecia ignorar o disse-que-me-disse era a própria Alicinha. Tratava a irmã e o cunhado com a mesma naturalidade. E era tão sem maldade, tão inocente, que, certa vez, comprou um maiô fabulosíssimo e apareceu com ele na sala, diante de Dagmar e do Geraldo. Foi uma situação pânica. Por um momento, o embasbacado cunhado não soube o que dizer, o que pensar. Empalidecera e... Girando como um modelo profissional, Alicinha perguntava:

— Que tal?

Por uma fração de segundo, Dagmar pensou em explodir. Mas convencera-se de que precisava reeducar-se; dominou o próprio impulso. Com um máximo de naturalidade, admitiu: “Bonito!”. O atônito, o ofuscado, o desgovernado Geraldo gemeu: “Infernal!”. Mas quando deixou a casa da noiva, nesse dia, ia numa impressão profunda. Mais tarde, no bilhar, com uns amigos, fez o seguinte jogo de palavras:

— Não há mulher mais bonita que uma cunhada bonita!

SONSA

No dia seguinte, Alicinha passa por ele e pisca o olho: “Deixei de ser criança! Já não sou mais criança!”. Isso poderia significar pouco ou muito. De qualquer forma, desconcertado, ele chegou a transpirar. Mais dois ou três dias, e Alicinha vai procurá-lo no escritório. Senta-se a seu lado; diz: “Você tem medo de mim?”. O pobre-diabo gaguejou: “Por quê?”. E ela, com um olhar intenso, não de criança, mas de mulher: “Tem, sim, tem!”. Parece divertida. E, subitamente, séria, ergue-se e aproxima-se. Estavam no gabinete de Geraldo. Alicinha inclina-se e pede:

— Um beijo.

Lívido, obedeceu. Roçou, de leve, a face da pequena. Ela insistiu: “Isso não é beijo. Quero um beijo de verdade”. Geraldo levanta-se. Recua apavorado, como se aquela garota representasse uma ameaça hedionda. Numa espécie de soluço, diz: “Eu amo minha noiva! Amo tua irmã!”. E ela, diante dele: “Só um!”. Petrificado, deixou-se beijar uma vez, muitas vezes. E não podia compreender a determinação implacável de uma menina de treze anos.

Antes de sair, ela diria: “Você é meu também!”. E o ameaçou, segura de si e da própria maldade: “Vou te avisando: se começares com coisa, eu direi a todo mundo que houve o diabo entre nós!”. Geraldo arriou na cadeira; uivou:

— Demônio! Demônio!

O BEIJO

Foi, desde então, um escravo da menina. E, coisa interessante: ao mesmo tempo que se sentia atraído, tinha-lhe ódio. Sentia nela uma precocidade hedionda. E, por outro lado, era um fraco, um indefeso, um derrotado. Até que, uma tarde, entra numa delegacia; soluçando, anuncia: “Acabei de matar minha cunhada, Alice de tal, num lugar assim, assim”.

Ainda prestava declarações quando Dagmar invade a delegacia. Passara pelo lugar em que Alicinha fora assassinada; vira a irmã, de bruços, com o cabo do punhal emergindo das costas. Então, fora de si, correu para a delegacia. E houve uma cena que ninguém pôde prever. Avançou, apanhou entre as mãos o rosto do noivo e o beijou na boca, com loucura. Foi agarrada, arrastada. Debatia-se nos braços dos investigadores.

Gritava:

— Oh, graças! Graças!
 ________________________________________________________________
A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
Leia mais...

Vinte e cinco anos de casados

O amigo foi no escritório buscá-lo:

— Vamos tomar um drinque.

E ele:

— Fica para outro dia. Hoje não posso.

Mas o amigo, que era íntimo, que tinha confiança, fez pé firme:

— Outro dia uma ova! Tem que ser agora! Vamos, põe o paletó, anda!

O dr. Hildegardo pôs o paletó e, tirando os óculos e guardando-os no bolsinho do lenço, foi dizendo:

— Vou chegar tarde em casa! É o diabo!

— Por quê, ora essa?

E ele, entrando no elevador:

— Minha mulher não gosta! Minha mulher fica tiririca!

Dirigiram-se para o bar da esquina, sentaram-se lá. Enquanto o garçom os servia, pensava na mulher, na cozinheira e na filha. E, depois de beber um e mais outro, o dr. Hildegardo estalou a língua e, com certa euforia, fez a revelação envaidecida:

— Estou casado há vinte e cinco anos. E nunca traí minha mulher.

— Nunca?

Repetiu, já inspirado pelo terceiro drinque:

— Nunca.

O MARIDO FIEL

O amigo não acreditou: exaltou-se, até:

— Não existe homem fiel! Nunca existiu!

— Pois eu sou. Fidelíssimo. Te juro, te dou minha palavra de honra. E te digo mais: no fim do mês comemoro minhas bodas de prata. Estás convidado!

— O homem fiel é uma besta! Podia andar de quatro, trotar no meio da rua!

Meia hora depois, dr. Hildegardo teve um lampejo, no fundo de sua embriaguez; catou o relógio; espiou os ponteiros: “Oito horas!”. Gemeu: “Minha mulher deve estar bufando!”. Pagou a despesa, arrastou o amigo: “Vais comigo. Tens que ir! Minha mulher me mata!”. O amigo foi, resmungando, mas foi; entraram num táxi e, durante toda a viagem, o assunto pouco variou. Dr. Hildegardo, em pânico, excitava o chauffeur. “Mete o pé, com apetite!”. De repente, bate na testa:

— Vais me fazer um favor, de mãe pra filho.

— Qual?

E ele:

— Vais dizer a minha mulher que já jantaste.

— Ué!

Debruçado no ombro do outro, num bafo de bêbado, ia explicando:

— Pelo seguinte: minha mulher não gosta que eu leve ninguém pra jantar. Não topa. Nem ela, nem a cozinheira. Estrilam.

O outro arregalou os olhos:

— Já vi tudo!

O JANTAR

Entraram em casa, preocupadíssimos. Mesmo o amigo contagiara-se do terror e do sentimento de culpa. D. Odete, assim que viu o marido, nem ligou para o acompanhante. Via-se logo que era uma senhora distintíssima. Dr. Hildegardo estacou; e ela, pondo as mãos nos quadris e depois de olhá-lo de alto a baixo, balançou a cabeça:

— Sim, senhor!

O marido, quase normalizado do impacto da mulher, arremessou-se. Deu-lhe dois beijos estalados, um em cada face. Engrolou uma explicação qualquer, relativa a um negócio misterioso e imprevisto. Ela, ressentida, interpelava-o:

— Isso são horas?

A filha sussurrava para o namorado:

— Papai é um caso sério!

Dr. Hildegardo pendurava-se no ombro da esposa: — “Trouxe um amigo, filhinha, mas ele já jantou!”. Então, a esposa, satisfeita com o sabão passado no marido, condescendeu em ser apresentada ao amigo que já jantara. A cozinheira, fula, batia com todas as tampas de panela. E d. Odete invocou o testemunho do visitante:

— Imagine o senhor, se é possível! Isso não é hora de jantar! Minha cozinheira fica por conta e com razão, com toda razão!

O amigo, que se chamava Bezerra, com um sono de bêbado, rosnou:

— Realmente... Realmente...

Durante o jantar, o dr. Hildegardo fez a corte à mulher, da maneira mais servil e deslavada. Batia nos peitos: “Sou um cara de sorte, seu Bezerra! Minha mulher é uma santa!”.

Insistiu com o amigo:

— Estás convidado para as bodas de prata!

A SERPENTE

No dia seguinte, o Bezerra compareceu ao escritório do dr. Hildegardo; baixou a voz:

— É sério aquilo que me disseste? É batata?

O dr. Hildegardo confirmou, categórico:

— Mas evidente. E trair minha mulher por quê? A título de quê?

— Realmente, realmente.

Dr. Hildegardo ergueu-se. Ficou andando de um lado para o outro, no gabinete, na comovida emoção de sua felicidade matrimonial:

— Vinte e cinco anos não são vinte e cinco dias. O maior golpe que eu dei na minha vida foi o casamento. Um alto negócio! Aquilo já não é esposa, é mãe, é o diabo!

O Bezerra, que estava afundado na poltrona, levantou-se; hesitou, antes de fazer a sugestão:

— Olha aqui; hoje eu vou passear com duas fulanas. Uma é minha, claro; mas a outra não tem companhia. Que tal?

Aproximou-se mais do amigo; segredou, numa tentação: “Material de primeira!”. Dr. Hildegardo recuou, como se duvidasse da própria vista e dos próprios ouvidos:

— Mas você tem coragem, fulano? Conhecendo minha mulher e sabendo que eu, nunca, Ouviste, jamais? Você se esquece que no fim do mês comemoro as bodas de prata? Francamente!

O amigo explodiu:

— Deixa de ser besta, Hildegardo, tira o cavalo da chuva! Que é que tem? Todo mundo faz isso! Em matéria de amor, qualquer homem é um canalha!

— Eu, não! Eu, absolutamente! Ora veja! E digo mais: no terreno sexual, só tolero uma posição, a clássica, a tradicional. Sou do “papai-mamãe” rasgado.
O outro, porém, insistiu numa obstinação quase indecente; seus conselhos tinham o seguinte nível: “Só uma vez, seu imbecil! A pequena é um pirãozinho”. Dr. Hildegardo, já transpirando, resistia: “Não! Nunca!”. Novos argumentos e, por fim, a exaltação. O Bezerra segurava, com as duas mãos e pela gola, o amigo indefeso: “Escuta, ó cara! O sujeito que só conhece uma mulher é um cretino! Tenha vergonha!”. Quarenta minutos depois, o derrotado dr. Hildegardo telefonava para casa: “Filhinha, imagina só o abacaxi. Estou tão amolado! Apareceu um negócio importante, de forma que eu não posso jantar...”. Quando desligou, virou-se para o amigo, que, do lado, numa satisfação inteiramente gratuita e torva, esfregava as mãos; e disse, com ar de mártir:

— Estás querendo ver minha caveira. No duro que estás!

Desceu do elevador com o amigo, rumo à primeira infidelidade, com o ar típico e insofismável do condenado à morte; gemia: “Estou metendo os pés em vinte e cinco anos de felicidade”.

A OUTRA

No dia seguinte, era o próprio dr. Hildegardo quem andava atrás do Bezerra; assim que o encontrou, fez a pergunta sôfrega: “Vamos lá outra vez?”. O amigo exigiu um relatório: se tinha gostado; se o material era ou não um grande material; se a fulana era um pirãozinho ou... Dr. Hildegardo, evocativo, maravilhado, dava o seu depoimento autorizado: “É muito liga, sim; uma grande praça”. O outro o cutucava:

— Não te disse? Vai por mim, que você vai bem! Aproveita!

Foram lá essa vez e mais outras. De quando em quando tinha crises morais: “Mas não está direito! Eu amo a minha mulher”. Um dia, beberam juntos, dr. Hildegardo e o Bezerra. E este, depois de entornar vários chopes, teve uma sinceridade feroz de ébrio: “Tua mulher é uma jararaca! Um bucho!”. Dr. Hildegardo, então, chorou. E houve, na mesa do bar, entre eles uma polêmica de bêbados. O marido pretendendo que a esposa era uma santa, uma mãe — uma adoração de mulher.

AS BODAS DE PRATA

Enfim, chegou o dia das bodas de prata. O Bezerra estava lá, firme e grave. Vieram parentes até do Norte. O namorado da filha única do casal compareceu também, de azul-marinho. E, quando não faltava mais ninguém, dr. Hildegardo, no meio da sala, fez um gesto; e pediu: “Silêncio! Silêncio!”. Todos se calaram; pensou-se num discurso. E então, o dr. Hildegardo, em voz bem alta e nítida, disse:

— Comunico que, neste momento, deixo esta casa!

Silêncio profundo, enquanto cada um dos parentes ia assimilando o fato. A primeira a reagir foi d. Odete: caiu dura. Houve um tumulto na casa toda. As hipóteses estavam no ar, vivas: loucura? Embriaguez? Pilhéria? Mas já o dr. Hildegardo, seguido do triunfante Bezerra, varava a muralha dos convidados, a caminho da porta, atropelando as senhoras enchapeladas. A filha tinha um desmaio. E o futuro genro se arremessava, no encalço do sogro. Na calçada, o rapaz o alcançou; balbuciou a pergunta: “Mas que foi que houve? Não faça isso!”. Então, o dr. Hildegardo abriu-se:

— O que houve foi o seguinte: há vinte e cinco anos que minha mulher me faz de palhaço! E chega! Uma chata!

— Mas sua filha?

Dr. Hildegardo, que já ia mais adiante, estacou: “Ah, sim, a filha!”. Veio ao encontro do genro:

— Queres um conselho, rapaz? Manda a minha filha passear. Puxou ao gênio da mãe, imagina! Vai no meu golpe; deixa de ser burro! Chuta a minha filha!
________________________________________________________________
A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
Leia mais...