terça-feira, 29 de novembro de 2011

Amansando a mulher

Um rapaz enamorou-se de uma menina muito bonita e prendada, mas foi avisado pelos amigos de que ela possuía um grave defeito: teimava sem que ninguém a convencesse.

O rapaz, que estava gostando muito da moça, decidiu-se a pedir-lhe a mão em casamento, apesar das informações.

O futuro sogro chamou-o para uma conversa reservada e disse-lhe a mesma coisa. A filha era boa dona de casa, honesta, econômica e séria, mas teimava como jumento.

— Não se preocupe com isso — respondeu o noivo — deixe por minha conta!

Casaram-se. Foram levados para a residência preparada e todos foram embora. Os recém-casados conversaram muito e, pela meia-noite, um galo começou a cantar. O marido resmungou:

— Eu pedi ao galo que deixasse a cantiga para mais tarde.

Continuaram conversando e, de novo, o galo os interrompeu.

— Galo teimoso! Merece um castigo. Se ele cantar novamente...

O galo voltou a cantar. O rapaz segurou a espada, desembainhou-a e saiu. Voltou com o galo atravessado na lâmina da arma. Espetou-a num canto do quarto e disse para sua assombrada esposa:

— Para quem é teimoso, tenho ponta de espada!

A mulher encolheu-se toda, tremendo de medo. Nunca se atreveu a teimar. Viveram como Deus com os anjos.

O velho sogro é que ficou espantado com a obediência da filha e tanto perguntou ao genro o segredo que este lho confiou. Deliberou o velho empregar o mesmo processo e, durante a noite, assim que o galo cantou, ele deixou a cama e voltou com o pobre bicho espetado numa faca. E disse, muito sério:

— Para quem é teimoso, tenho ponta de faca!

A velha, sem se alterar, respondeu:

— Perdeu seu tempo! Mata-se o galo na primeira noite, seu bobo.
______________________________________________________
Fonte: Jangada Brasil (Em Cascudo, Luís da Câmara. Literatura oral no Brasil. 3ª ed. Belo Horizonte / São Paulo, Editora Itatiaia / Editora da Universidade de São Paulo, 1984. Reconquista do Brasil - nova série, v. 84, p.307-308).
Leia mais...

Discussão por acenos

Era uma vez um sábio muito arrogante de sua inteligência e cultura e que estava convencido do sol nascer todas as manhãs exclusivamente para o seu serviço intelectual.

Foi a uma cidade próxima e desafiou todos os literatos do lugar para uma discussão pública. Queria mostrar que somente ele sabia o que todos ignoravam.

Num colégio de padres os professores ficaram atarantados com o desafio e tristes com a impossibilidade de aceitá-lo. Demais a mais, o sábio declarara disputar sem palavras, por mímica, apenas agitando as mãos e pondo posições aos dedos. Quem ia enfrentar uma maravilha destas?

Pois, senhores, um criado dos padres, labrego finório, analfabeto e ladino, foi-se oferecer para discutir com o sábio. Os padres tentaram dissuadi-lo mas como teimasse, vestiram-no decentemente, esperando apenas a desgraça do atrevido.

Multidão, autoridades, jornalistas, devotos de novidades, basbaques, gente com o foguete na mão para gloriar o intruso mal educado. Frente a frente, em duas tribunas de mogno, os antagonistas. O sábio e o criado dos padres.

O sábio olha o adversário e, lentamente, estende o dedo indicador, como se admoestasse. Vai o labrego e estira os dois dedos. Pasmo do sábio. Balança a cabeça aprobativamente. Estira três dedos, em garfo, no ar. O criado, de cara feia, cerra o punho e exibe-o como se fosse lutar. O sábio saúda-o. Mete a mão na túnica de veludo e mostra uma maçã. O criado retira do bolso um pão e agita-o, como respondendo. O sábio cumprimenta, desce da tribuna e declara que seu antagonista respondera muitíssimo bem às questões apresentadas.

— Quais foram essas questões, mestre? — perguntam todos.

— Mostrei um dedo! Deus é uno. Respondeu-me com os dois que tinha duas pessoas distintas. Retruquei serem três, fechou o punho mostrando-me a unidade da divindade trina. Mostrei-lhe a maçã com que Eva se perdeu. Mostrou-me o pão com que Cristo salvou a todo nós...

No colégio, cercado de agrados e festas, o criado explicava ao seu modo, a polêmica.

— Imaginem que aquele doido ameaçou-me furar um olho com o dedo. Mostrei que tinha dois dedos para vazar-lhe os dois olhos. Botou os três para riscar-me a cara. Faço com a mão para dar-lhe um bom murro. Aí o homem amansou e ofereceu-me uma maçã. Mostrei-lhe o pão para provar que não precisava do presente. Não fez mais nada, desceu e veio abraçar-me. É doido varrido!...

É uma história bem antiga. Já estava escrita há seiscentos anos quase. Vem da Idade Média espanhola, de um dos mais vivos, sugestivos e pitorescos espíritos da época. João Ruís, Arcipresta de Hita, arcebispado de Toledo, nasceu em 1283 e faleceu em 1350. Há dele apenas um volume de versos, histórias e exemplos, Libro de buen amor, muito reeditado. A minha edição argentina da Espasa Caipe, Buenos Aires, 1945. Ouviu ao povo ou há gente impressa?

Esta disputa do sábio com o rústico está às páginas 20-21.

Os gregos, conta o Arcipreste de Hita, disseram aos romanos que ensinariam suas leis depois de uma discussão por sinais. Mandassem uma delegação para o desafio. Vestiram um malandro de Roma e mandaram-no para a Grécia.

O grego mostrou ao romano o polegar. O romano mostrou três dedos, o polegar sobre o indicador e o médio. O grego mostrou a mão aberta. O romano, o punho fechado. Nada mais. Tradução do grego: Deus é uno. Mas em três distintas pessoas. Tem tudo à sua vontade divina. Porque tinha poder para criar e castigar (punho fechado). Tradução do romano: Um dedo para um olho, dois dedos para os dois olhos e o polegar para machucar-lhe os dentes. Daria uma palmada. Responderia com um murro.

Falta, como se vê, a exibição dos alimentos. Mas em resumo, a história era popular em Espanha quase dois séculos antes do Brasil ser encontrado...
______________________________________________________________________
Luís da Câmara Cascudo
Cascudo, Luís da Câmara. "Discussão por acenos". Tribuna de Petrópolis. 31 de dezembro de 1949.
Leia mais...

Luizão, o brasileiro pré-histórico

Morreu jovem, ele devia ter no máximo 18 anos. Forte, ágil e musculoso, tinha traços suaves, quase andróginos. Esse brasileiro pré-histórico, apelidado de “Luizão”, viveu há 8.500 anos. Fazia parte da primeira família humana a povoar o Brasil Central, 11.500 anos atrás. Seu povo morava em abrigos rochosos que existem às centenas na bacia do rio das Velhas, em Minas Gerais. Eles viviam entre matas e cerrados nos últimos milênios da Era do Gelo, e enfrentavam um clima bem mais seco e frio do que o atual.

Ninguém sabe como “Luizão” morreu. Pode ter sido de doença, acidente, numa luta contra tribos inimigas, ou vítima das longas presas curvas de um tigre dentes-de-sabre. A vida desses pioneiros era um risco constante, poucos ultrapassavam os 30 anos. O jovem caçador não teve essa sorte. Quando morreu, seus ossos descansaram ao lado das paredes rochosas e, com o passar dos anos, ficaram esquecidos.

O clima se alterou drasticamente. Os lagos secaram, as florestas sumiram, mastodontes, preguiças, ursos, lhamas e tatus gigantes desapareceram do planeta, e até o povo de Lagoa Santa, como ficou conhecido por 160 anos de pesquisas arqueológicas, desapareceu quase por completo.

A história do brasileiro pré-histórico, a quem os cientistas chamam de “HW-04”, enfim começa a ser recontada. Tudo começou na década de 1930, quando o cônsul britânico Harold Walter, arqueólogo nas horas vagas, decidiu escavar cavernas de Lagoa Santa, vilarejo em Minas Gerais que ficou famoso em 1844, quando o naturalista dinamarquês Peter Lund revelou ao mundo os esqueletos e milhares de fósseis de uma incrível fauna extinta. Durante duas décadas, o cônsul britânico reuniu uma coleção com dezenas de esqueletos humanos, entre eles o crânio de “Luizão”. Seus restos ficaram guardados no Museu de História Natural da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

As coisas começaram a mudar em 1998, quando o antropólogo mineiro Walter Neves, coordenador do Laboratório de Estudos Evolutivos da Universidade de São Paulo (USP), analisou e mediu a coleção de 81 crânios. Sua intenção era reunir evidências para provar a tese de que os primeiros habitantes de Minas Gerais tinham traços negróides, bem diferentes dos índios atuais, e muito parecidos com os dos aborígines australianos e dos africanos de hoje. Entre os diversos crânios, ele selecionou um em excelentes condições. Fez uma réplica em resina e enviou a Manchester, na Inglaterra, para o médico forense Richard Neave, um artista mundialmente conhecido por seu trabalho de reconstituição facial.

O inglês Neave se surpreendeu com o estudo dos crânios de Lagoa Santa. Por isso, aceitou fazer de graça o molde do rosto de “Luizão”, junto da assistente Denise Smith. Seu trabalho consumiu um ano e pode representar uma pá de cal na teoria da ocupação do continente americano. “Essa tese se apóia em dados estatísticos e em evidências científicas e pode colocar de cabeça para baixo todo o pensamento convencional”, diz. A repercussão política promete ser grande e envolve a discussão sobre os verdadeiros donos da terra que aqui viviam antes da chegada dos colonizadores europeus. “Essa nova teoria brasileira é fascinante, provocativa e tem um poder explosivo incrível”, afirma Neave.

O retrato do caçador de Lagoa Santa ficou pronto, e a beleza dos traços de “Luizão” é tamanha que joga para segundo plano o fato de haver poucas informações sobre ele. A precariedade dos registros de Harold Walter está no fato de as escavações terem sido realizadas antes de 1950, quando foi inventada a datação pelo método carbono-14.

Mama África – A reconstituição facial de “Luizão” serve como uma luva para evidenciar a teoria do povoamento do Novo Mundo formulada em 1989 por Walter Neves e pelo argentino Héctor Pucciarelli. Ao tomar as medidas de diversos crânios sul-americanos com mais de 8 mil anos, eles constataram que não podiam pertencer a índios descendentes de asiáticos, mas de negróides. Daí para lançar a idéia de que os primeiros humanos modernos a adentrar o continente americano teriam traços de africanos e de aborígines australianos foi um pulo.

Sabe-se que nossa espécie, o Homo sapiens, evoluiu na África e de lá saiu para povoar todos os continentes. A segunda leva migratória dos humanos modernos teria bordejado a costa do oceano Índico e cruzado o Sudeste Asiático até desembocar na Indonésia e na Austrália, há pelo menos 40 mil anos. Os aborígines australianos e da Nova Guiné, ambos negros retintos, são ancestrais diretos desses pioneiros. Para Neves e Pucciarelli, a onda migratória não parou por aí. Se alguns grupos humanos que estavam na Ásia resolveram tomar a rota Sul, em direção à Oceania, outros preferiram bordejar o Pacífico, na direção Norte-Nordeste, passando ao largo da Sibéria para atravessar o estreito de Bering e invadir o Alasca – milhares de anos antes de o primeiro siberiano com traços mongolóides refazer a rota.

Como todos os índios americanos têm traços mongolóides, resta a dúvida de qual fim levaram os primeiros povos aborígines do Novo Mundo. Há três possibilidades. Eles podem ter morrido sem deixar descendentes, vitimados pelas flutuações climáticas. De acordo com Walter Neves, que coordena desde 2000 um projeto nas grutas de Lagoa Santa com patrocínio da Fapesp, o povo de “Luizão” habitou o vale do rio das Velhas num período em que o clima era mais úmido e agradável. A partir de 7.500 anos atrás, no entanto, o ressecamento causou um abandono quase completo do local. Isso explicaria o fato de a região ter experimentado um esvaziamento populacional, apenas revertido a partir de 4 mil anos atrás, quando o clima assumiu suas condições atuais.

Outra explicação para o desaparecimento dos homens de Lagoa Santa é terem sido mortos pelos mongolóides recém-chegados, que já dispunham de arco e flecha. Há uma terceira hipótese, a de uma nova migração de siberianos dotados de tecnologia superior.

Fonte: Isto É - 24/11/2004.
Leia mais...