sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Chico-Bóia

Casou-se magríssimo. Tanto que o sogro costumava chamá-lo, a título de blague, de “esbelto mancebo”. Após os quinze dias de lua-de-mel, porém, Wilson e Ivone passaram por uma farmácia. Ela tem a idéia:

— Vamos pesar?

Subiram na balança. Ela emagrecera, se não me engano, dois quilos e meio. Já o marido engordara. Esbugalhou os olhos no vão protesto: “Não é possível! Não pode ser!”. E, com efeito, a balança acusava a mais quatro quilos! Esbravejou:

— Essa balança está maluca!

Saem os dois impressionadíssimos. Ivone já se julgava uma Olívia Palito; e Wilson, um Chico-Bóia autêntico. Experimentam uma balança de confeitaria. Adquirem, então, a certeza: a esposa emagrecera com o matrimônio e o marido engordara. Virou-se para a mulher; e coçava a cabeça, inconformado:

— Que mágica besta!

OBSESSÃO

Que importância pode ter um quilo a mais, ou a menos, num jovem marido e numa jovem esposa? Ivone aceitou sem maiores atribulações o resultado da balança. Mas Wilson, que era um nervoso, um excitado, dramatizou: “Vou fazer regime! Dieta!”. Era, porém, um glutão. No almoço, no jantar, seus planos de regime, dieta, iam por água abaixo. Gemia:

— Meu apetite aumentou com o casamento!

A sogra ponderava:

— Apetite é saúde!

Com um mês de casamento, passa pela mesma farmácia e usa a mesma balança. Ao verificar o peso, toma um novo susto: engordara ainda mais! Mais tarde, em casa, colocou-se diante do espelho. Examinou a própria barriga de frente e de perfil: concluiu, para si mesmo: “Não sinto a mínima diferença!”.

Tomou, porém, uma resolução heróica e definitiva, qual fosse a de não se pesar nunca mais. Pareceu-lhe um meio simples e eficaz de evitar novos aborrecimentos. Mas se fugia da balança, não podia fugir dos amigos. Estes o perseguiam por toda parte com a pergunta, que se renovava ao infinito:

— Como é? Tu não paras de engordar? Estás gordo pra chuchu!

O BARRIGUDO

Voltava para casa desesperado: “Será o Benedito?”. Olhava para a mulher, que vinha conservando o mesmo peso, as mesmas medidas, a mesma e deliciosa fragilidade física. Dir-se-ia um corpo, uns quadris de menina. E o patético é que o apetite de Wilson parecia crescer. Tinha fomes desesperadoras. Levantava-se, de noite, alta madrugada, e vinha comer, sozinho, na copa, com uma voracidade homicida. Todavia, a sua tragédia de gordo só atingiu o clímax quando mudou-se da Tijuca para Copacabana.

Ivone bateu palmas, numa alegria de criança: “Que ótimo! E já sabe: vamos à praia todos os dias!”. Ele, que se julgava muito branco, parecia também animadíssimo:

— Preciso apanhar sol, me queimar!

No dia seguinte ao da mudança, acordam cedíssimo. Ivone pôs um maiô amarelo, que valorizava o seu corpo de adolescente. Mas quando Wilson apareceu de calção, e nu da cintura para cima, o assombro de Ivone foi uma coisa patética:

— Mas como você está barrigudo!

Subitamente, o rapaz se crispa, num desses pudores físicos incoercíveis:

— É, é?

E, então, sentindo-se um pobre-diabo irremediável, fez o que já fizera antes: põe-se diante do espelho, com a barriga de perfil. Não havia dúvida. Estava prodigiosamente gordo. E mais: sentia-se portador de uma dessas barrigas incomensuráveis, de ópera-bufa.

O pior é que não engordara harmoniosamente, por igual. Não. As pernas, os braços, o tórax eram magros. Mas a barriga se projetava, irresistível. Ao lado, a mulher o esmaga com a insistência cruel: “Você está uma pipa! Um barril!”.

Era demais. Aniquilado, Wilson desaba numa cadeira:

— Vai sozinha, vai. Eu fico. Eu não vou. Com essa barriga, eu devia renunciar ao mundo, compreendeu? Devia entrar pra um convento!

NEURASTÊNICO

A princípio, Ivone ainda insistiu: “Que bobagem! Vem, sim, vem! Parece criança!”. Wilson não variou de argumento: batia sempre na mesma tecla: “Não posso nem devo. Não quero fazer papel de palhaço”. Não restou outra alternativa a Ivone; foi sozinha dessa vez e sempre. À tarde, o desesperado Wilson comparecia ao médico:

— Doutor, a minha situação é a seguinte: ou perco essa barriga ou sou um homem liquidado!

O médico achou muita graça. Preparou uma dieta, enumerou tudo o que Wilson podia e não podia comer. Na hora de sair, o rapaz indaga: “Mas isso é batata?”. O outro foi taxativo: “Batatíssima!”. Apertou, comovido, a mão do doutor, e exagerou:

— Não parece, mas o senhor me salvou a vida!

Era, porém, um fraco. A primeira conseqüência psicológica de sua visita ao médico foi a seguinte: recrudesceu seu apetite. Quando chegou em casa, teve um espetacular colapso de vontade: lançou-se como um abutre sobre as comidas proibidas. Era tal a sua voracidade, que a esposa repreendeu-o:

— Faz menos barulho, meu filho! Você faz muito barulho quando come!

O FRACO

Ele, porém, sabia agora que não cumpriria jamais dieta nenhuma. Virava-se para a mulher, com lágrimas nos olhos: “Eu sou um caso perdido, um fracasso! Quero e não posso! Tenho comigo uma fome mortal!”. E, súbito, apanha a mão da mulher. Faz-lhe a pergunta, inesperada e sôfrega: “Você ainda gosta de mim?”. Ivone faz espanto: “Mas claro!”. Ele insiste: “No duro? Não é mentira, não? Jura! Quero que jures!”. Mas não adiantou a mulher jurar. E, de repente, diante da esposa atônita, ele explode em soluços:

— Não acredito! Nenhuma mulher pode gostar de um barrigudo como eu! Impossível!

MARIA

Começou o inferno. Todas as manhãs, Ivone ia à praia. E, quando a via de maiô, era fatal: Wilson a crivava de indiretas. Baixava a voz, sarcástico: “Na praia, você faz comparações, faz?”. Ela não entendia: “Que comparações?”. E ele:

— Mas claro! Na praia, o que não falta são rapazes bonitos, verdadeiros Tarzãs. É ou não é? E quero saber o seguinte: quando você vê um nessas condições, você não me compara com ele? Confessa! Sim ou não?

Recuava espantada: “Deixa de criancice!”. De noite, ele não dormia. Fumando no escuro, ficava pensando nos Apolos tostados do banho de mar; e o contraste entre ele e os outros parecia-lhe uma dessas coisas atrozes. Dia após dia perseguia a esposa: “Você acha bonita minha barriga?”.

Desesperando, Ivone acabou se queixando à mãe. Wilson respeitava e ouvia muito a sogra. A santa senhora prontificou-se a ter uma conversa com o genro, em particular. Fez-lhe ver o erro. Wilson, fora de si, esbravejou:

— Vou lhe dizer mais: eu não acredito que um barrigudo como eu possa ser amado! Duvido!

A sogra protesta: “Mas assim você até ofende!”. Ele ri, sordidamente:

— Pelo contrário. Até justifico, ouviu? Justifico que sua filha não me ame. É uma questão de impossibilidade. É impossível que ela ache bonita a minha barriga: que ela goste de uma pipa, de um Chico-Bóia!

FORA DE SI

Não pensava noutra coisa. Até que, um dia, estava no portão com Ivone quando vê passar, a caminho da praia, um rapaz moreno, dos seus vinte e poucos anos.

Cutuca a mulher: “Repara nesse cara, repara!”. Ela obedece e, realmente, atenta no transeunte. Era um tipo físico que correspondia aos Apolos de praia que Wilson visionava nos seus delírios de ciumento. O sujeito passa, atlético, escultural. O marido trinca as palavras nos dentes:

— Viste que estátua? E agora responde: pode-se comparar um pançudo como eu àquele cara? Há termo de comparação, há? Fala! Ou tens medo? Por que vocês, mulheres, são tão hipócritas? Por quê?

Parou, arquejante. Durante alguns momentos, não fala. Tem o sentimento de que é o homem mais infeliz do mundo. E, súbito, com ar de louco, os olhos injetados, diz: “Eu tenho certeza, certeza absoluta, que você há de me trair um dia”.

Pausa e conclui, num soluço: “Se já não me traiu!”. Alucinada, Ivone corre para dentro de casa, chorando. Pouco depois, telefonava para o pai:

— Papai, eu acho que meu marido está louco!

FIM

Nessa noite, ele parecia tranqüilo. Mas era uma calma intensa, uma apaixonada serenidade. O casal recolheu-se na hora de sempre. Wilson deixou que a mulher dormisse. E então, quando Ivone pegou no sono, ele fez simplesmente isto: matou-a com dois tiros, quase à queima-roupa.

E, mais tarde, na delegacia, declarava:

— Mais cedo ou mais tarde eu seria traído!
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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
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Tobe Hooper

Ele nunca foi cultuado por nenhuma legião de fãs ou adorado pela crítica especializada. Sua filmografia oscila entre filmes medíocres e filmes quase medíocres. Entretanto, o cineasta texano Tobe Hooper merece alguns créditos por duas grandes façanhas: iniciar a carreira comercial dirigindo um dos filmes mais importantes da história do cinema de horror e manter-se fiel ao gênero durante mais de 25 anos.

Tobe Hooper (William Tobe Hooper), diretor de cinema e TV, nasceu em Austin, Texas, em 25 de janeiro de 1943. Aos 9 anos já demonstrava interesse por filmes e foi professor universitário e cameraman de documentários durante os anos 1960. 

Seu primeiro filme chamou-se "Eggshells" e fez parte do circuito universitário durante o ano de 1969, rendendo vários prêmios, mas sem nunca receber um lançamento no cinema.

Em 1974, Hooper juntou amigos, professores e alunos para filmar "O Massacre da Serra Elétrica" a partir de um orçamento de US$60 mil que passou para US$ 70 mil e especula-se que possa ter chegado a US$120 mil, embora Hooper não confirme esta possibilidade. Com o bom sucesso do filme, Tobe logo foi chamado para roteirizar grandes produções como "Eaten Alive" (1977), "Salem's Lot" (1979), de Stephen King.

Em 1981, apresentou um roteiro chamado "The Funhouse", que girava em torno de palhaços assassinos em um circo itinerante e logo recebeu permissão para dirigir a trama. No mesmo ano, foi convidado por Steven Spielberg para dirigir um "Night Skies", que tratava de uma família sendo atacada por ETs hostís em uma fazenda (mais tarde Spielberg amenizou o roteiro e transformou-o no famoso "E.T.", 1982), mas recusou o convite. Muito interessado no sobrenatural, Hooper conversou com Spielberg, outro aficcionado pelo tema, que escreveu um roteiro para Tobe chamado "Poltergeist" (1982). Isso gerou uma grande polêmica em Hollywood, pois muitos diziam que aquele não era o modo de direção de Hooper e sim de Spielberg e o desacreditaram quando disse que a direção foi sua. De fato muitos membros do elenco do filme dizem que Spielberg e Hooper dividiram a direção em dias alternados.

Depois disso, Hooper passou a trabalhar com a produtora Cannon Group e refilmou o clássico "Invasores de Marte" (1953) e a sequência de seu bem sucedido trabalho de 1974, "O Massacre da Serra Elétrica 2", ambos em 1986. Entre os final dos anos 1980 e o ano 2000, todas as produções de Hooper foram mal sucedidas, como "The Mangler" (1995) e " Crocodile" (2000), tirando muita da credibilidade do diretor que passou a focar-se em trabalhos para a televisão.

Em 2002 o diretor voltou a ter sucesso com o episódio piloto da série "Taken" e o remake do filme "Toolbox Murders", o que possibilitou a criação de sua própria produtora, a T. H. Nightmares, em 2004. A partir do ano seguinte, o nome do diretor envolveu-se em uma série de projetos que nunca sairam do papel até a data atual.

Dentre os projetos, os mais esperados são a série de TV "The Texas Chainsaw Massacre Chronicles" e um novo filme para a franquia que se passaria nos dias atuais.

Filmografia

- Eggshels (1969)
- The Texas Chainsaw Massacre (1974)
- Eaten Alive (1977)
- Salem's Lot (1979)
- The Funhouse (1981)
- Poltergeist (1982)
- Lifeforce (1985)
- Invaders from Mars (1986)
- The Texas Chainsaw Massacre 2 (1986)
- Spontaneous Combustion (1990)
- I'm Dangerous Tonight (1990)
- Night Terrors (1993)
- Body Bags (1993)
- The Mangler (1995)
- Nowhere Man (1995)
- Dark Skies (1997)
- The Apartment Complex (1999)
- Crocodile (2000)
- Toolbox Murders (2004)
- Dance of the Dead (Masters of Horror) (2005)
- Mortuary (2006)
- The Damned Thing (Masters of Horror) (2006)

Fontes: Wikipedia; Deadly Movies; Boca do Inferno.
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quarta-feira, 7 de setembro de 2011

A eterna desconhecida

Interpelou os companheiros:

— Sou ou não sou bonito?

Um deles, tomando um refrigerante na própria garrafa, com um canudinho, aventurou:

— Não acho homem bonito. Pra mim, qualquer homem é um bucho.

Acharam graça, riram. Mas Andrezinho, no seu paletó cintado, camisa de um cinza quase roxo — insistia:

— Sou, sim. Sou pintoso. Qualquer mulher gosta de mim.

— Qualquer uma?

Enfiou as duas mãos nos bolsos:

— Qualquer uma.

Então, o Peixoto, que tomava uma média num canto do boteco, ergueu-se de sua mesa. Aproximava-se segurando um pedaço de pão e ainda mastigando. A manteiga escorria-lhe do lábio como uma baba. Sentou-se perto do Andrezinho. De boca cheia, dizia:

— Vou te provar que és um mascarado. Queres ver?

Andrezinho recostou-se na cadeira:

— Duvi-d-o-dó.

E o outro:

— Ah, duvidas? Pois então escuta e vocês também: eu conheço uma pequena com quem tu não arranjarias tostão. Aposto os tubos!

Andrezinho piscou o olho para os demais. Inclinou-se, gaiato:

— E se eu conquistar?

— Se você conquistar, pode me cuspir na cara.

Andrezinho levantou-se. Anunciou:

— Está no papo!

O BONITÃO

Perguntava por toda a parte: “Sou ou não sou bonito?”. A princípio, fazia isso por brincadeira. Mas, pouco a pouco, pela repetição, aquilo tornou-se um hábito, um vício. E acontecia, não raro, uma coisa interessante: apresentado a uma pessoa, em vez de dizer “muito prazer”, perguntava:

— Sou ou não sou bonito?

Já o dominava um desses automatismos irresistíveis. Como fosse realmente bonito e, de resto, simpático, todos achavam graça. Sua sorte no amor era fantástica. Em casa, o telefone não parava. Eram pequenas, de todos os tipos e classes, que o perseguiam. Dizia-se que até senhoras casadas, muito mais velhas que ele, o adoravam. E o jeito, meio terno, meio infantil, meio volutuoso, com que ele exaltava a própria aparência física, era um atrativo a mais. De resto, com o orgulho de narciso confesso, Andrezinho implicava, na mesma vaidade, até peças de roupa. Mostrava meias de um amarelo extravagante, as gravatas ultracoloridas, os sapatos. E interpelava os conhecidos:

— Que tal? Viste a classe?

— Mais ou menos.

E ele, numa risada:

— Elas não me deixam!

MISTERIOSA

Até que, numa conversa de café, o Peixoto, que não gostava de Andrezinho, diz que conhecia uma fulana. Andrezinho saltou. Já com seu instinto de sedutor nato em polvorosa, pôs a mão no ombro do outro:

— Pra mim, não existe mulher inconquistável.

Peixoto, que tinha uma perna mais curta que a outra e era um sujeito taciturno e caladão, teimou: “Pra teu governo — essa cara é. Nem você, nem duzentos como você — arranja nada”. Andrezinho esfregou as mãos, na euforia da conquista que supunha próxima e inevitável.

— Dá nome, o endereço, o telefone e deixa o resto por minha conta.

Peixoto teve um meio riso sardônico:

— Pra quê? Dar nome pra quê? Nem adianta.

— Tens medo?

Ergueu-se o outro:

— Não interessa, não interessa. E te digo mais: não quero que um amigo meu banque o palhaço. Até logo.

Já ia saindo, com sua perna mais curta do que a outra. Então, o Andrezinho arremessou-se no seu encalço: “Mas como é essa fulana? Bonita?”. Peixoto parou na porta do boteco e rilhava os dentes:

— Se é bonita? Um espetáculo! Duzentas vezes melhor que a Heddy Lamarr! Mete a Lana Turner no chinelo!

ROMANCE

Nessa noite, Andrezinho custou a dormir. Estava acostumado a mulher bonita, à conquista fácil, mas o fato é que o Peixoto soubera criar uma sugestão diabólica. Quem seria? Como seria? Imaginava um nome, um rosto ou, por outra: imaginava vários nomes e um rosto múltiplo para a estranha. De manhã, escovando os dentes, ainda pensava nela com apaixonada obstinação. No ônibus, veio com um amigo. Primeiro perguntou: “Sou bonito?”. Em seguida, admitiu:

— Estou interessadíssimo por uma cara que nunca vi mais gorda. Não é gozado?

Do escritório, ligou para o Peixoto: “Deixa de ser sujo e diz logo — quem é a fulana?”.

O outro divertiu-se cruelmente: “Mas você já não está tão cheio de mulher? Entupido de mulheres?”. E Andrezinho:

— Solteira, casada ou viúva?

Peixoto foi irredutível:

— Sossega, Andrezinho, que eu não vou te dizer nada. Ou tu me achas com cara de arranjar mulher pra ti?

Espantou-se:

— Mas olha aqui, seu animal! Não foste tu que tiveste a idéia? Foi ou não foi?

Concordou que sim, aduzindo: “Foi, sim. Porém, mudei de opinião, ora bolas! O que é que eu ganho com isso? Ganho alguma coisa? Nada!”. Andrezinho desligou o telefone, assombrado. E fez o comentário para si mesmo:

— Que mágica besta!

IMAGINAÇÃO

De noite, encontraram-se no café. Andrezinho, com a imaginação em chamas, arrastou-o para um canto. Naquela noite, fez o monopólio do amigo, absorveu-o. Mandou vir cerveja, com a idéia de puxar por ele. E, de fato, à medida que ia bebendo, Peixoto abriu-se. Lambendo a espuma dos beiços, admitiu que a outra o conhecia. Andrezinho tomou um susto: “Ah, me conhece? E qual é a impressão dela a meu respeito?”. Semibêbado, Peixoto piscou o olho:

— Te considera um cretino de pai e mãe. Um idiota chapado!

Doeu-se:

— Mentira tua!

E Peixoto:

— Palavra de honra!

Continuaram a conversa, com um imenso consumo de cerveja. Querendo pôr água na boca do outro, Peixoto exagerava: “É boa até depois de amanhã. Dessas que derretem edifícios!”. E, por fim, iluminado pela cerveja, praguejava, como um possesso:

— Olha aqui, seu zebu! Eu sou aleijado, sei que sou! Mas a minha vingança, sabe qual é? — Parou, para tomar fôlego. — É que tu não vais conhecer essa pequena não, percebeste? — Na sua cólera de bêbado, investiu, querendo agredi-lo:

— Pelo menos essa, tu não vais conquistar, porque eu não deixo!

OBSESSÃO

Três ou quatro dias depois, o próprio Andrezinho reconhecia, em pânico, para os amigos mais íntimos: “Estou apaixonado e não sei por quem. Vê se pode?”. Mandou emissários ao Peixoto, com apelos desesperados. Mas o outro foi irredutível; fazia um gesto de quem usa fecho éclair: “Sou um boca-de-siri”.

E acrescentava: “Andrezinho pode ser bonito lá pra o raio que o parta. Pra mim, não”. O fato é que, depois do seu desabafo no boteco, Peixoto mudara com Andrezinho. Cruzava os braços e fechava a fisionomia, quando o amigo ou ex-amigo vinha pedir:

— Diz quem é. Dá o nome. Só quero saber o nome. Nada mais.

Peixoto calcava a brasa do cigarro no fundo do cinzeiro. Parecia hesitar. Inclinava-se:

— O nome não digo. Basta que você saiba o seguinte: é a melhor mulher do Rio de Janeiro. A melhor, percebeu?

Andrezinho partia desesperado. Os amigos, impressionados com sua obsessão, tentavam chamá-lo à ordem: “Quem sabe se não é gozo do Peixoto em cima de ti? Vai ver que é!”. Incapaz de atender a qualquer raciocínio, ele explodia: “Eu só quero saber o nome. Basta o nome. Ou, então, um retrato!”. Já não se dizia “bonito”, nem “pintoso”. Admitia: “Acabo maluco, se já não estou”.

No emprego, passava horas imerso numa ardente e inútil meditação. Até que um dia recebe a notícia: ao atravessar uma rua, Peixoto morrera imprensado entre um bonde e um ônibus. Andrezinho uivou: “Morto?”. E soluçava: “Não é possível! Não pode ser!”.

Uns quinze minutos depois, entrava no necrotério. Ao ver o outro, na mesa, definitivamente silencioso, sentiu-se condenado a amar uma mulher que jamais conheceria. Enfureceu-se. Atirou-se ao cadáver, sacudia-o, gritando:

— Diz o nome! Quero o nome! Fala!...

Foi agarrado, dominado. Então, caiu de joelhos, no ladrilho. Seu choro era grosso como um mugido.
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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
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