sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Roger Corman

Roger Corman, cineasta, nasceu em cinco de abril de 1926, em Detroit, Michigan. É produtor, realizador, argumentista e, de vez em quando, ator. Estudou engenharia industrial na Universidade de Stanford, mas a paixão pela Sétima Arte o desviou para o cinema em 1953, tornando-se o diretor apelidado de "o rei da série B" do cinema americano.

Transformou-se numa celebridade no mundo do entretenimento, em sua freqüência incomum dirigindo e produzindo filmes em larga escala, chegando a produzir sete películas em um ano.

Fez filmes em dois dias e uma noite, com orçamentos de meia dúzia de dólares, um punhado de atores e um só cenário; é um dos nomes independentes históricos de Hollywood; assinou nos anos 60 uma série de adaptações de culto de contos de Edgar Allan Poe interpretadas por atores como Vincent Price, Peter Lorre, Boris Karloff e um novato chamado Jack Nicholson; e lançou as carreiras de nomes como Francis Ford Coppola, Martin Scorsese, Peter Bogdanovich, James Cameron, Joe Dante, Jonathan Demme ou Ron Howard.

Entre 1954 e o presente ano, Roger Corman já produziu e realizou mais de 400 filmes, gabando-se de ter perdido dinheiro apenas com um, The Intruder (1962), uma história anti-racista com William Shatner.

Formado em engenharia pela Universidade de Stanford e ex-aluno de Literatura Inglesa em Oxford, Corman já tocou praticamente em todos os gêneros, com particular ênfase no terror, na ficção científica, no filme de ação e de gangsteres e no policial. Em 1990, Roger, publicou as suas memórias, apropriadamente intituladas How I Made a Hundred Movies in Hollywood and Never Lost a Dime.

Filmografia


The Beast With a Million Eyes (1956, não creditado)
The Day the World Ended (1956)
It Conquered the World (1956)
O Emissário de Outro Mundo (Not of This Earth, 1957)
Attack of the Crab Monsters (1957)
The Undead (1957)
Teenage Caveman (1958)
War of the Satellites (1958)
A Bucket of Blood (1959)
A Mulher Vespa (The Wasp Woman, 1959)
O Solar Maldito (The Fall of the House of Usher, 1960)
A Pequena Loja dos Horrores (The Little Shop of Horrors, 1960)
The Last Woman on Earth (1960)
A Mansão do Terror (The Pit and the Pendulum, 1961)
Creature from the Haunted Sea (1961)
A Torre de Londres (Tower of London, 1962)
The Premature Burial (1962)
Muralhas do Pavor (Tales of Terror, 1962)
Terror no Castelo (The Terror, 1963)
O Corvo (The Raven, 1963)
O Homem dos Olhos de Raio-X (X, The Man With the X-Ray Eyes, 1963)
O Castelo Assombrado (The Haunted Palace, 1963)
A Máscara Mortal (The Masque of the Red Death, 1964)
O Túmulo Sinistro (The Tomb of Ligeia, 1964)
Bloody Mama (1970)
Ga-s-s-s! Or it became necessary to destroy the world in order to save it (1970)
Deathsport (1978, não creditado)
Frankenstein, o Monstro das Trevas (Frankenstein Unbound, 1990)

Fontes: Biografia curta de Roger Corman; nostalgia: Roger Corman; Wikipédia.
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Grande pequena

Sentada diante do espelho, ela refazia a pintura dos lábios. Viu quando Geraldo se aproximou e, rápido, inclinou-se sobre seus ombros nus e a beijou no pescoço. Glorinha fechou os olhos, arrepiada:

— Não faz assim!

— Por quê?

E ela:

— Porque eu sinto cócegas!

Riram os dois. Geraldo foi na mesinha-de-cabeceira apanhar um cigarro. Deu duas ou três tragadas e, em pé, encostado no guarda-vestidos, pergunta:

— Sabe o que é que eu achei de fabuloso no nosso caso?

Glorinha vira-se:

— O quê?

Ele explica:

— Nem tu me conhecias, nem eu a ti. Eu te vi, pela primeira vez, em pé, diante de uma vitrine. Uma hora depois, estávamos aqui. Sabe que parece um sonho?

Pondo a blusa, ela sorri, misteriosa e doce:

— É a vida, é a vida!

LOUCURA

E, de fato, não se conheciam, nunca se tinham visto antes. De volta do banco, com cem contos e quebrados na pasta, ele vinha atravessando a rua Gonçalves Dias. Súbito, vê diante de uma vitrine aquela mulher gordinha. Ao primeiro olhar, fez seus cálculos: vinte, vinte e dois anos. Ele, porém, com a sua psicologia de magro, de esquálido, gostava das belezas bem nutridas. Costumava dizer: “De espeto, basta eu!”. Acontece que a desconhecida tinha uns quadris soberbos, à Mae West. Ele devia ter passado adiante, mas um demônio qualquer sugeriu: “Dá em cima!”. Geraldo obedeceu à voz maligna. Pigarreia e, como ele próprio reconheceria, entrou violentamente de sola. A vi¬trine era de jóias e Geraldo soprou ao ouvido da pequena:

— Escolha uma jóia. Qualquer uma. O preço não interessa.

Foi talvez a surpresa que a deixou indefesa. Vira-se para o desconhecido: “Como?”.

E ele, baixo e veemente:

— Pode escolher! Você merece muito mais! — E ele próprio apontava: — Não prefere aquela pulseira? Eu lhe dou de presente, agora mesmo. O prazer é todo meu!

FASCINADA

Ela não quis o presente, mas aceitou o convite, muito menos oneroso, para um lanche. Coincidiu que, próximo, havia uma leiteria. Entraram, sentaram-se e foram servidos. A pequena, espantada das próprias reações, admitia: “Nunca me aconteceu isso! Nunca! E Deus me livre que alguém tivesse o desplante de fazer o que o senhor fez!”. Pausa e suspira: “E eu própria não compreendo por que estou aqui e...”. Geraldo interrompeu:

— Está vendo esta pasta?

— Sim.

Prosseguiu:

— Tem, aqui, cento e tantos contos. Você quer gastar comigo esse dinheiro? Até o último centavo?

Ela responde com outra pergunta:

— Está louco? Está pensando que eu sou o quê?

— Sim ou não? Uma vez não são todas. Quer?

— Nunca! Nunca!

Geraldo, porém, sentia que, apesar de tudo, seu cinismo a fascinava. Discutem, ali, em voz baixa. O rapaz descreve um lugar discretíssimo que...

A garota respira forte. Titubeia e acaba tomando coragem:

— Vou. Porém, com uma condição.

E ele:

— Qual?

— Você não saberá o meu nome, nem eu o seu. Está bem assim?

— Aceito!

POSSESSO

No táxi, a caminho do tal lugar, ela se esvaía em exclamações e remorsos preventivos. “Estou doida! Completamente doida!” Vira-se para ele e o interpela: “O que é que há comigo?”. Geraldo tratava de ser tão cínico quanto possível:

— Não é tanto assim, que diabo!

Duas horas depois, ela estava abotoando a blusa. Pensava que talvez desejasse revê-lo. Então, como se lesse no seu pensamento, ele suspirava: “Sabe que você não me verá mais, nunca mais?”. Admira-se:

— Por quê?

E ele:

— Porque eu vou meter muito breve uma bala na cabeça.

A pequena vira-se:

— Que piada é essa?

O rapaz não responde logo. Põe o cigarro no cinzeiro e senta-se numa extremidade da cama:

— Antes fosse piada. Mas a verdade é a seguinte: estou com a corda no pescoço. Esse dinheiro que está aqui, já desfalcado, é do patrão, e é o pagamento do pessoal lá da firma. E eu — compreende? —, eu estou disposto a gastar até o último centavo. Depois, então, me mato e pronto!

Atônita, ela senta-se a seu lado:

— Conta esse negócio direito, conta!

O FRACASSADO

Então, sentindo na pequena uma grande ouvinte, que saboreava cada palavra, ele fez uma autobiografia. Contou que sua vida, da infância até os trinta e dois anos (sua idade atual), era duma torva melancolia, duma sinistra mediocridade. Em criança, era barrado nas peladas de rua e incumbido de apanhar a bola atrás do gol. Não sabia jogar bola de gude; e apanhava em casa como boi ladrão. Na adolescência, as namoradas bonitas o traíam, e as feias, idem. Há doze anos, trabalhava numa grande firma da qual era um dos cobradores. Ganhava uma miséria e, além disso, era tratado a pontapés pelo chefe, um tal de Mesquita. Ofendido, humilhado, ele se tomara de tédio pela vida e pelo mundo das criaturas. Na véspera, Mesquita o chamara de “animal” na frente de todo mundo. Então, ele, Geraldo, a título de desagravo, de obtusa vingança, resolvera dar o que ele chamava “grande golpe”: — incumbido de apanhar o dinheiro no banco, para o pagamento do pessoal, decidira apossar-se da quantia e gastá-la sumariamente. Espantada, a pequena indaga:

— Não tens medo de cadeia?

Geraldo esfrega as mãos numa alegria feroz:

— Tu esqueces que eu vou meter uma bala na cabeça? E pra defunto não há prisão, não há cadeia, percebeste?

Ela balbuciou:

— Ora, veja!

E o rapaz:

— Só te digo uma coisa: morro satisfeito. Porque é a primeira vez que eu assumo uma atitude batata. Sempre me fizeram de palhaço. Agora chegou a minha vez.

DESFECHO

Então, a pequena toma entre as suas mãos as do rapaz. Pergunta:

— Quem foi que disse que você ia morrer?

— E não vou?

— Não.

Ele não entende. Protesta: “Vou, sim, senhora. Ou tu pensas que eu topo a prisão, processo e outros bichos?”. A garota sorri: “E quem disse que você vai ser preso?”. Amargo, e andando de um lado para o outro, Geraldo traça o perfil psicológico do patrão, o já referido seu Mesquita. Pinta-o como um chacal, uma hiena. A essa altura dos acontecimentos, já estaria subindo pelas paredes. Ao concluir, Geraldo bufou:

— Tu falas assim porque não conheces aquela besta.

— Conheço.

Ele esbugalha os olhos: “Como?”. E ela:

— É meu marido. E eu também te conhecia, embora de vista, seu bobo!

— Papagaio!

Estava assim explicado o mistério da facilidade deslumbrante. Já o vira, à distância, três ou quatro vezes. Assediada no meio da rua, deixara-se envolver, arrebatar, numa espécie de delírio. Pasmo, Geraldo estrebucha: “Seu Mesquita vai querer ver minha caveira!”. Ela parece otimista:

— Quem manda no meu marido sou eu. Vou tratar do teu caso.

E, de fato, durante uns três ou quatro dias, ele não pôs o nariz de fora. Por fim, a pequena, que o revia todas as tardes, anunciou: “Pode ir amanhã”.

Foi. Encontrou no escritório a versão de um assalto fantástico. Dizia-se, por outro lado, que seu Mesquita resolvera abafar o caso. O chefe veio falar com ele: “Quanto é que ganhas aqui? Vou te aumentar!”.

Não devolveu um tostão do dinheiro, a conselho da garota. Depois do expediente encontraram-se, no mesmo local. Ela suspira: “Não te disse que os maridos não mandam em nada?”.

Depois, entre um beijo e outro, ela baixa a voz:

— Meu nome é Glorinha.
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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
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Um cadillac por um beijo

Durante vários dias, andou perguntando a um e outro:

— Vocês viram o Percival?

— Qual deles?

O Mendes tinha de descrever o tipo físico do homem.

— Tu não conheces? Moreno, pintoso, bonitão, parecido com o César Romero.

A semelhança indicada era o bastante. Diziam: “Ah, sim! Conheço! Mas não aparece aqui há muito tempo”. Mendes agradecia e continuava a procurar. Em toda a parte, porém, a resposta era a mesma: ninguém vira o Percival. Ele coçava a cabeça: “Será o Benedito?”. Deixou em cada boteco, em cada bilhar, recados angustiosos. E já desanimava quando, certo dia, dá de cara com o Meireles, na Cinelândia. Pergunta-lhe: “Tens visto a besta do Percival?”. O outro sacode os braços até as nuvens:

— O Percival? Mas que coincidência! Acabei de largar o Percival agorinha mesmo! E olha: não faz um minuto!

— No duro?

E o Meireles:

— Batata! Está trabalhando numa casa de móveis assim, assim, na Lapa. Foi pra lá neste instante!

Mendes despede-se, afobado:

— Então, bye, bye.

EX-EMPRESÁRIO

Mendes fora, na altura de 1930, 32, 34, empresário pugilista. Teve dinheiro, automóvel e amantes. Mas o boxe começou a cair e a desinteressar o público; as bilheterias acusavam uma queda vertical. E, de repente, ocorre o inevitável, ou seja, a falência espetacular do Mendes. Sem um níquel no bolso, barba crescida, o terno sebento, andando de cima para baixo, de baixo para cima, fugindo dos credores. Nunca mais fez negócio que se aproveitasse; vivia de biscates ou, então, “mordendo” os amigos, os conhecidos. Atualmente velho, roto, desdentado, ia de mal a pior quando se lembrou do Percival. Decide de si para si: “Esse cretino pode me salvar a pátria!”. Começou a procurá-lo e eis que o localiza, na Lapa, numa casa de móveis.

Espera que Percival saia do emprego. Na calçada, gruda-se a ele. Começa perguntando: “Quanto ganhas nesse troço?”. O belo Percival, espantado, informa: “Mil e Oitocentos cruzeiros”. Em cima do meio-fio, Mendes esbraveja:

— E não tens vergonha? Responde! Não tens vergonha de ganhar esse ordenado pra um sujeito, como tu, que tem uma mina? — Espeta o dedo no peito do rapaz:— Ou não percebeste ainda que tens uma mina?

— Eu? E qual?

Mendes pisca o olho e baixa a voz:

— O teu físico! Percebeste? Teu físico é uma mina! Basta saber tirar partido. É barbada!

Interessado, embora sem entender, Percival indaga:

— Mas como? Explica esse negócio direito!

O PLANO

Entraram num café para conversar sobre a idéia que o próprio Mendes reputava “genial, luminosa”. O empresário trata de ser o mais claro possível:

— Um sujeito como tu, pintosão como tu, pode se quiser fazer a própria independência, tirar o pé da miséria. Sabe como? Simples como água: alugando os próprios carinhos. Digamos que uma dona te veja e goste de ti. Muito bem. Ela te paga pela tua companhia, paga para estar contigo, paga pelos teus beijos. Percebeste?

Apavorado, Percival ergue-se em câmara lenta:

— Que piada é essa? Tu me achas com cara de tomar dinheiro? E a polícia? Isso dá cana!

O outro protesta, incisivo:

— Cana uma ova! Olha aqui, seu zebu: dá ou não dá. Depende da mulher, Ouviste? Se for uma desclassificada, sim. Mas se for uma pequena séria, direitíssima, de bem, não dá coisíssima nenhuma.

Percival nega ainda:

— Nunca! Que idéia você faz de mim? Prefiro ficar com o meu salário, quieto no meu canto. Não me meto nessas embrulhadas.

PERSISTÊNCIA

Dir-se-ia que o caso estava encerrado. Mas o Mendes era astuto e obstinado. Não largou mais o amigo. E apelava, ora para argumentos, ora para a descompostura. Exortava-o: — “Deixa de ser burro, rapaz! Aproveita!”. E dizia:

— Já tenho a pequena. Cheia de gaita e deslumbrada por ti. Te dá um Cadillac, de cara!

Percival perguntava:

— E me conhece?

Resposta:

— Claro. Já te viu várias vezes! Não tem pai, não tem mãe, não tem irmã. É só, absolutamente só, não tem ninguém para dar palpites!

Percival, pálido apesar de tudo, impressionado, resistia: “Não, não e não!”. Até que, certa tarde, manifestou uma curiosidade que era, em si mesma, uma fraqueza: — “Boa?”. Mendes pigarreia, desconcertado:

— Simpática. Mas olha, você não toca no assunto de dinheiro. Eu trato disso e, depois de receber, dou a tua parte e fico com a minha.

E, pouco a pouco, com outras conversas, Percival inteirou-se de novos detalhes. A fulana tinha prédios, avenidas e o diabo. Como jamais tivera namorado, vivia numa fome de amor inenarrável. Percival quis saber: “Que idade tem?”. O outro coça a cabeça:

— Aparenta uns trinta e poucos.

CONHECIMENTO

Onde e quando descobrira o empresário aquela mulher solitária, triste e ricaça? Era o que ninguém sabia. É impossível que o Percival tivesse resistido sempre, e de repente... O fato é que brigou com o chefe e saiu do emprego. Mendes tirou partido da situação; puxa-o pelo braço: — “Hoje vamos lá de qualquer maneira. Te apresento e pronto!”. Desta vez, apavorado com a demissão, Percival capitulou. Ao cair da noite, os dois nervosíssimos, bateu na porta da dama. No caminho, Mendes adverte: “A fulana não é, fisicamente, grande coisa. Agüenta o galho”.

Chamava-se Olívia. E vivia numa solidão que era um mistério. Onde estariam seus parentes? Era a pergunta que o próprio Mendes fazia de si para si, sem achar resposta. Mas o Percival, quando foi apresentado, caiu das nuvens. Há feias e feias. A fealdade de d. Olívia era absolutamente indescritível. Uma carinha de preá, um nariz adunco, uns dentes saltados, de coelho, e os olhos de um estrabismo violento. Quando ela passava na rua, cochichavam: “Lá vem a caolha!”. Mendes falara de trinta e poucos anos. E a verdade é que, dando de barato, d. Olívia teria talvez seus cinqüenta e quebrados.

Houve um momento em que, erguendo-se, ela pediu licença a Percival e retirou-se com o Mendes para uma sala contígua. Percival fica só então, levanta-se e vai à janela. Podia ser curto de inteligência, como assoalhava o Mendes. Era, porém, um bom, um manso, um compassivo.

Diante de d. Olívia experimentava duas reações: primeiro, de repulsa, de horror; e depois, de pena, de uma pena que lhe dava vontade de chorar, de gritar, de espernear.

PROPOSTA

Na outra sala, d. Olívia pôs-se a chorar diante do atônito ex-empresário de boxe. Torce e destorce as mãos, num desespero selvagem:

— Eu nunca fui beijada, nunca ninguém me beijou. — Pausa e continua, entrecortada: — Homem nenhum quis nada comigo. Eu sei que não sou bonita... Mas eu queria uma coisa só... — Aumentado o estrabismo, estende as mãos: — Eu daria tudo para ter um beijo, só um beijo do seu amigo, oh, meu Deus!

Mendes foi rápido e brutal:

— Daria um Cadillac?

E ela:

— Daria.

Mendes se arremessa para a outra sala. Deslumbrado, agarra Percival. Contou-lhe o sonho da solteirona, que ninguém jamais a beijara. O empresário trinca os dentes: “Negócio de maluco, da China! Um Cadillac por um beijo! Que tal?”. Percival parece hesitar: por fim, empurrado, decide-se. Vai encontrar de joelhos, e mais estrábica do que nunca, a solteirona. Ela se levanta ao vê-lo. Então, o rapaz, sem uma palavra, segura aquela mulher e beija-a na boca, longamente, como no cinema. Depois, arquejante, a larga. D. Olívia pôs-se a soluçar, numa felicidade aterradora. Finalmente dominando-se, diz:

— Você merece tudo! Tudo!

Vira-se, vai a um móvel apanhar o talão de cheques e enche um deles. Depois vem entregar o papel ao belo Percival. Ele pega aquilo, lê o preço do Cadillac e rasga, metodicamente, o cheque fabuloso. Inclina-se diante dela:

— A senhora não me deve nada. Não me deve um tostão. Passar bem.

Depois que Percival saiu, acompanhado do curioso Mendes, a solteirona, como que magnetizada, vai para a janela. Era noite e, no alto, uma estrela brilhou mais claro.
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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
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