Franklin
Cascaes nasceu a 16 de outubro de 1908 em Itaguaçu, município de São
José (SC). Faleceu a 15 de março de 1983, em Florianópolis. No decorrer
de sua vida expressou em forma de arte os estudos que realizou sobre a
cultura açoriana na Ilha de Santa Catarina, seus aspetos folclóricos,
culturais, suas lendas e superstições como se fora um ritual abstrato
que atingisse a estrutura vital do mito.
E fê-lo soberbamente, já que da pesca da tainha a cerâmica,dos cantos
aos engenhos de farinha e açúcar, aprofundou sobretudo o estudo que
trata das lendas através de um desenho fantástico, cujo sentido mítico
dimensiona uma criatividade genuína e profunda.
Para Cascaes mito é a possibilidade de primordial, a realidade
inteligível que estabelece de modo único, numa pré-figuração do mistério
que antecede a revelação. A força criativa de Cascaes encontra-se,
ainda, na capacidade de sua imaginação, a ponto de acrescentar elementos
atuais às lendas da Ilha de Santa Catarina.
Tinha uma personalidade muito forte e curiosa e isto pode ser percebido
no seguinte agradecimento: "aos que me contaram estórias e histórias;
aos que me acolheram com o valor cultural do calor humano; aos que me
hostilizaram, a todos enfim o meu obrigado".
Retratos do imaginário popular
Cascaes retratou por meio da escrita, desenho, escultura e artesanato a
Ilha do Desterro, com uma percepção apaixonada e sensível, capaz de
captar, absorver e interpretar o que estava diante dos olhos e o que lhe
chegava aos ouvidos. A vida do folclorista se confunde com a própria
cultura das comunidades litorâneas catarinenses.
Desde criança circulava nos engenhos de farinha, ouvia histórias dos
pescadores e confeccionava utilitários, como balaios e louças de barro.
Foi descoberto pelo professor Cid Rocha Amaral, diretor da Escola de
Aprendizes e Artífices de SC, aos 21 anos, esculpindo na praia de
Itaguaçu. Os primeiros registros artísticos de Cascaes são de 1946,
quando tinha 38 anos.
O saber fazer, procissões, pesca , lavoura, causos, folguedo, cantorias
noturnas, religiosidade, brincadeiras, lendas, literatura oral, enfim,
todo o fabulário popular da ilha fez parte do seu dia-a-dia e tornou-se
objeto de pesquisa e estudo para o artista. Seus cadernos de anotação
eram diários de campo, onde coletava desde receitas até crenças e rezas
populares, subvertendo os modelos acadêmicos de pesquisa.
Diferentes aspectos da vida cotidiana do imigrante e seus descendentes,
suas formas de organização social, subsistência, natureza e imaginário
foram registrados. Cascaes queria divulgar a cultura açoriana para as
próximas gerações e principalmente, para seus próprios protagonistas,
chamados de "colonos anfíbios", por lidar com terra e mar.
O calendário cultural da cidade e o caráter religioso das manifestações
populares criava um universo de sincretismo onde sagrado e profano
conviviam. Tanto as festas de padroeiros quanto as rezas bravas pra
afastar bruxas interessavam o folclorista. As histórias dos seres
fantásticos presentes no folclore catarinense, como bruxas, lobisomem,
vampiros e assombração, resultaram no realismo fantástico ilhéu. Logo,
Florianópolis passou a ser conhecida como ilha de Cascaes, da magia ou
das bruxas.
"Seu Francolino", como era carinhosamente chamado, passava temporadas
imerso em comunidades de pescadores e pequenos agricultores ouvindo
estórias, com um o interesse quase antropológico em desvendar a
identidade daquela cultura. Depois de muitas anotações e desenhos em
nanquim, organizava uma exposição com o que havia produzido sobre o
cotidiano da comunidade, devolvendo para aquele espaço o que foi com ele
compartilhado.
— Franklin Cascaes é um fenômeno , até hoje imcompreendido. Ele
registrou o folclore vivaz e a alma da nossa gente. Tinha uma fala muito
intensa com os trabalhadores e conhecia o calendário cultural das
comunidades, onde tudo era feito com muita fé e alegria, cantorias e
comilança. Foi criado nesse meio, era também um portador dessa cultura —
comenta Gelci José Coelho, o Peninha, ex-diretor do Museu
Universitário da Universidade Federal de Santa Catarina(Ufsc) e maior
pesquisador da vida e obra do artista.
Personagens do cenário insular, do manezinho às figuras políticas, foram
moldados em argila. Pequenas esculturas de bruxas, reproduziam as
descrições dos antigos moradores do interior. Essas histórias, causos e
conhecimentos, que eram repassados de boca à boca, transformavam-se em
arte.
O olhar atento de Franklin Cascaes teve uma importância política
fundamental. O artista dedicou toda a vida para registrar as lendas,
histórias e costumes, pressentindo angustiado a perda dos traços
culturais das comunidades litorâneas, com os ventos da modernidade.
Um ambientalista precoce, na contramão da história
Quando ninguém falava de ecologia, Franklin Cascaes já tinha um discurso
crítico, alertando para as consequências da modernização.
A partir de 1950, época em que a sociedade florianopolitana almejava a
modernidade do Rio de Janeiro e São Paulo, Cascaes agiu na contramão da
história. Além de resgatar as tradições seculares, estava atento às
questões ambientais, que começavam a ser suplantadas com o "desmonte" da
cidade.
— Enquanto as elites locais se deslumbravam com as mudanças que estavam
chegando porque eram sinônimos de progresso, Cascaes as pensava de modo
crítico, antecipando uma leitura de cunho ecológico, pois observava o
impacto da especulação imobiliária não apenas na vida cultural local,
mas também no meio ambiente— comenta a professora Aglair Maria Bernardo,
na palestra proferida no Museu do Mar em comemoração ao centenário do
artista.
Em um dos seu manuscritos ele afirma: "O progresso, senhor mui poderoso e
soberano terráqueo, mandará tudo destruir sem técnica, dó, nem
piedade, como já o fizeram os homens lá das outras bandas da Terra, das
Oropas. Infelizmente não fui mau profeta como teria desejado sê-lo".
Cascaes denunciava as agressões ao meio ambiente em suas poesias,
esculturas, desenhos e manuscritos, na ânsia pela preservação do
patrimônio histórico e natural da cidade. Foi um visionário, por isso
seu discurso permanece tão atual.
— A obra de Cascaes é uma referência fundamental para todos que
reconhecem a singularidade do nosso lugar. Não é possível fazer uma
ponte com o local sem beber na fonte do Franklin, o maior pesquisador da
cultura popular do litoral de Santa Catarina — afirmou a produtora
cultural e jornalista Bebel Orofino, que preside a Associação dos Amigos
do Museu Universitário.
Qualquer leitura sobre as comunidades litorânea passam necessariamente
pela produção de Cascaes, que cantou a sua aldeia e foi universal,
fundindo o passado da cultura ilhoa com reflexões sobre o presente.