quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Vai descer?!

Depois teve o caso do dia em que Rosamundo ficou doente. Era — ao que parece — um vírus qualquer que Rosamundo arranjou. É que estava incomodando mais que disco de Orlando Dias na vitrola do vizinho. Então Rosamundo foi ao médico.

O consultório do médico de Rosamundo fica na cidade, num desses prédios que a desmoralizada e saudosa Prefeitura deixava construir, com milhares de cubículos à guisa de cômodos conjugados — segundo expressão de um dos grandes calhordas imobiliários desta praça.

Rosamundo foi, entrou no consultório e ficou na salinha de espera, aguardando a sua vez.

Mas, de repente, Rosamundo começou a suar frio. Ainda tentou agüentar a mão, disfarçar, pensar noutra coisa. Mas foi impossível. Levantou-se apressadamente, perguntou à enfermeira onde ficava o banheiro.

— Segunda à esquerda, ali no corredor — foi a resposta.

Rosamundo não esperou mais. Saiu da saleta de espera pelo corredor, como um doido, contou a primeira porta, abriu a segunda e entrou. Era um cubículo escuro, como sói acontecer nos prédios como aquele, mas isto não teria a mínima importância, se não houvesse uma senhora, com ar muito digno, parada no meio do "toilette" com cara de quem espera alguma coisa.

Rosamundo ali naquele aperreio e a dona parada que nem parecia. E o tempo passando. Cada segundo parecia um século. E ela nem nada. Parada e tranqüila. Nessas horas é que Rosamundo perguntou:

— A senhora não vai sair daí?

Ela estranhou a pergunta, mas com toda classe, quis saber:

— Por que, cavalheiro?

— Porque eu preciso usar este banheiro.

A dama pensou que Rosamundo fosse maluco e com o maior desprezo, informou:

— Por favor, o senhor use depois que chegarmos ao térreo e eu saltar, cavalheiro. Porque isto aqui não é um banheiro. Isto aqui é um elevador.
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Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte: O MELHOR DE STANISLAW - Crônicas Escolhidas - Seleção e organização de Valdemar Cavalcanti - Ilustrações de JAGUAR - 2.a edição - Rio - 1979 - Livraria José Olympio Editora
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O terceiro sexo

O nosso amigo Rosamundo, quando foi tirar carteirinha de jornalista no Ministério do Trabalho, provou que a pessoa pode ser distraída, que isso não diminui o seu senso de observação.

O Rosa, depois de muito insistirmos, resolveu ir tirar a mencionada carteirinha, um pouco encabulado, diante desse mundo de calhordas que se esconde atrás de uma carteira de jornalista para conseguir favores e exorbitar da profissão.

O distraído lá esteve, no Ministério do Trabalho. Depois de subir várias escadas, porque não percebeu que no prédio havia elevador, Rosamundo foi atendido por uma funcionária pára que fizesse a indispensável ficha pessoal.

E foi aí que ficou ratificada a nossa teoria de que a pessoa pode ser distraída, que isto não importa em que seja menos observadora. A funcionária perguntou:

— Nome?

— Rosamundo das Mercês — respondeu.

— Idade?

— 39.

— Local do nascimento?

— Buracap.

— Sexo?

— Terceiro.

— Como? — estranhou a funcionária: — O senhor é do terceiro sexo?

— Sou sim senhora.

— Quer dizer que o senhor não é nem do sexo feminino, nem do sexo masculino?

— Sou do sexo masculino — respondeu Rosamundo, com dignidade.

— Então o senhor não é do terceiro sexo — atalhou a dama, meio sobre a indignada.

E Rosamundo:

— Sou sim senhora. É que ultimamente certas coisas progrediram tanto, que o masculino passou pra terceiro, dona.
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Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte: O MELHOR DE STANISLAW - Crônicas Escolhidas - Seleção e organização de Valdemar Cavalcanti - Ilustrações de JAGUAR - 2.a edição - Rio - 1979 - Livraria José Olympio Editora
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A gratificação

Já falei da grã-fina que mora no Alto da Boa Vista. (No seu jardim, há uma estátua nua que, nas noites frias, morre gelada). Seu palácio saiu nos "mais belos interiores" de Manchete. Mas o que me fascina, em certas casas, é o requinte.

Outro dia, fui visitar outro casal de grã-finos. E, na hora de lavar as mãos, vi uma pia inexcedível. A pia ainda não era nada. O que me deslumbrou foi a bica.

Enxuguei as mãos e, depois, chamei o dono da casa. Disse-lhe, de olho rútilo: — "Que bica! Que bica!". E ele, na sua flamejante modéstia: — "Ouro maciço!".

Volto ao Alto da Boa Vista. A dona da casa é exatamente aquela que, certa vez, dizia, lânguida, meio alada: — "Eu sou amante espiritual do Guevara". Em seguida, voltando à vida real, levou-nos para ver o retrato do "Che" em sua alcova. Lá estava ele, de boina; a barba crespa virilizava a doçura da expressão quase infantil. Pois bem. E foi justamente a "amante espiritual" de Guevara que telefonou, ontem, para mim.

Perguntei-lhe, inicialmente, se o retrato de Guevara ia bem de saúde etc. etc. Zangou-se, risonhamente: — "Cada vez mais reacionário!". E eu: — "Pelo amor de Deus!". Mas ela estava com pressa e foi dizendo: — "Vem hoje aqui em casa, ouviu?". Criou um mistério, um suspense: — "Tenho uma surpresa". Resisti de puro charme. Finalmente, disse que ia. Assim nos despedimos.

Cheguei lá, às nove e pouco. Perguntei-lhe: — "E a surpresa?". Brincou com a minha curiosidade: — "Calma, calma". Acabou dizendo que a surpresa era um padre. Assustei-me: — "Padre de passeata?". Fez espanto: — "Que história é essa de padre de passeata? Isso não existe!".

Expliquei-lhe que o padre de passeata era um fato concreto e histórico, Acabou admitindo que, realmente, o sacerdote comparecera a duas passeatas; e acrescentou: — "Uma cabeça. E olha. Mais inteligente do que d. Hélder".

Chamou o marido que ia passando, e perguntou: — "Não é mais inteligente do que d. Hélder?". O marido disse, grave, taxativo: — "Uma cabeça!". Se era "uma cabeça", e "mais inteligente do que d. Hélder", eu estava disposto a vê-lo e ouvi-lo.

Pouco depois, chegava "a cabeça". Nada de batina. O sacerdote estava vestido como um anúncio da Ducal. Quando apareceu, houve um frêmito em todos os decotes. Fui apresentado. "Muito prazer", de parte a parte. Duas ou três o levaram. E a dona da casa dizia, no meu ouvido: — "Vai falar sobre sexo". Insinuei: — "Já estou muito velho para educação sexual". Mas uma outra a chamava. Afastou-se.

E eu fui olhar na janela, que se abria para a noite. (O padre de passeata fazia conferências a domicílio para grã-finas.  Especializara-se em sexo e Guevara). Daí a pouco, sou chamado: — a "cabeça" ia falar. A anfitriã fizera um teatrinho, com umas cinqüenta cadeiras e um pequeno palco, quase ao nível da platéia. Alguém me sussurrou: — "Uma cultura!". E, justamente, a "cultura" começava a falar.

Disse, preliminarmente, que ia fazer uma palestra informal. Estaria disposto a responder perguntas. Mas frisou: — "Estamos aqui num encontro informal". Dizia "informal" com particular satisfação, como se a palavra lhe fizesse cócegas no céu da boca. Não começou imediatamente. No pequeno palco, andava de um lado para outro, de cabeça baixa, as mãos trançadas nas costas. E, súbito, da primeira fila, a anfitriã sugere: — "Conta aquela".

Parou, risonhamente, no meio do palco. Fingiu um lapso: — "Qual?". E a outra: — "Aquela!". Empina o queixo, faz um esforço de memória: — "Aquela?". Risos. As pessoas achavam graça. Ele sentiu que o lapso era um efeito. Fechava os olhos, cruzava os braços.

Teve que admitir: — "Sinceramente, não me lembro". E, como ele não se lembrava, não se sabia o quê, explodiu a gargalhada. O padre de passeata dramatizou o lapso. Apertou a cabeça entre as mãos. Sentiu o sucesso e o agarrou. Há de ter pensado: — "A platéia está no papo".

Um sujeito, a meu lado, com uma barriga de ginecologista, repetia, banhado em delícia: — "Uma cabeça! Uma cabeça!". Fui, então, varado por uma súbita recordação auditiva. Há um tango de Gardel que começava assim: — "Por uma cabeça" etc. etc. E o tango devia ser de Gardel e Le Pera.

Na platéia, já batiam palmas. Era o primeiro lapso aplaudido.

A dona da casa explicava: — "Aquela da prostituta. Aquela!".

O padre de passeata bateu na testa: — "Agora me lembro". E a anfitriã, de pé, virava-se para a platéia; dizia, radiante: — "Ótima, ótima!". Sentou-se novamente. Andando de um lado para outro, o sacerdote não tinha pressa. Parou numa extremidade do palco. De perfil para a platéia, olhando para o alto, disse: — "Realmente, realmente".

Começou: — "Prostituta". Suspirou. E, já no centro do palco, explicava: — "A prostituta não me espanta". Perguntou, de sopetão, à platéia: — "Os senhores se espantam com um bombeiro hidráulico, um ourives ou protético?". Silêncio. Recomeçou:

— "Ser prostituta também é um ofício". Repetiu, com certa ferocidade: — "Ofício, ofício, ofício". Pausa. Novo suspiro: — "Profissão". Profissão, como outra qualquer. "Ganha-pão." Ria agora: — "Aconteceu comigo um fato. Um episódio. Fato de rua".

Jogando as pausas, usando silêncios, ele deliciava os presentes. Disse: — "Nem sei se deva contar". Vozes protestaram: — "Conta, conta!". E o padre de passeata dispôs-se a contar. Agora estava mais ágil, mais lépido, mais brilhante: — "O caso é o seguinte: — fui abordado por uma mulher da vida. Digamos: — mulher da vida. Me abordou".

Excitação na platéia. As pessoas se entreolhavam. Longa pausa. Foi de uma extremidade a outra e vice-versa.

Disse: — "Me fez uma proposta". E, súbito, em tom castamente informativo, ele falou que, hoje, há trottoir por toda a cidade. "Até na porta da igreja." No passado, a prostituição estava localizada. Hoje, não. Às vezes, em ruas rigorosamente familiares, estritamente residenciais, nós vemos uma moça. Parece uma menina. O sujeito jura que é uma menina de família. E, ali, na calçada onde as crianças brincam, ela está exercendo uma profissão. "Não direi profissão infame, porque não há profissões infames. Há profissões."

Vozes perguntam: — "E o que é que o senhor fez?".

Repetiu, criando um suspense delicioso: — "O que é que eu fiz?". Continuou: — "Ela falou comigo em português. E eu respondi em alemão".

Perplexidade divertida.

A "amante espiritual de Guevara" pediu: — "Diz por que é que o senhor falou em alemão".

Sorria, banhado em sucesso: — "Pelo seguinte: — porque eu queria passar por estrangeiro. Saíra da igreja, estava sem batina. Pra todos os efeitos, eu não estava entendendo nada". A dona da casa, em pé, protestou: — "O senhor não está contando direito. Conta, conta. Por que é que o senhor não podia entender a proposta?". E ele, iluminado:

— "Porque se eu entendesse a proposta e recusasse, ela ia pensar que eu sou pederasta".

Foi uma ovação formidável. Os decotes se atiravam para o palco. Era uma euforia geral. E ele, que falara tão pouco, e usara mais pausas do que palavras, suspirava: — "Cansei". Vozes: — "Genial! Genial!".

Meia hora depois, a "amante espiritual de Guevara" chamou-o numa outra sala. E lá o padre de passeata recebeu, no envelope, o cachê.

[10/8/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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