terça-feira, 20 de setembro de 2011

Único beijo

No terceiro ou quarto dia de namoro, perguntou à namorada:

 — Quem é aquela pequena?

— Qual delas?

E ele:

— Aquela que estava contigo, ontem, na janela, quando eu passei e dei adeus para ti.

Pareceu incerta:

— Loura?

— Loura.

Riu:

— Minha mãe.

— O quê?!

Mag teve que repetir que era sua mãe, sim. Norberto caiu das nuvens:

— Não pode ser! Não é possível! Tua mãe como? Onde? Se é um verdadeiro brotinho!

Divertida e, no fundo, lisonjeada, orgulhosa da mãe juvenil e linda, confirmou:

— Pois é, pois é!

Norberto bufou:

— Estou com a minha cara no chão! Besta!

DESLUMBRAMENTO

Quando chegou em casa, ainda conservava a impressão profunda. Convocou a mãe e as irmãs:

— Vocês não sabem da maior!

Ele, tirando o paletó e colocando-o na cadeira, começou:

— Imaginem vocês que, ontem, eu vi, pela primeira vez, a mãe da minha pequena.

— Que tal?

Arregaçando as mangas, explodiu:

— Um espetáculo! Parece a irmã mais nova da minha namorada! No duro que parece!

Riram na sala. Jaci, a irmã mais nova, estava pondo verniz nas unhas. Mexeu com Norberto:

— Abre o olho!

— Por quê?

E ela, muito petulante:

— Você acaba se apaixonando pela sua sogra.

Saltou:

— Pára com esses palpites, essas piadas, sim?

O FENÔMENO

No seguinte encontro com Mag, quis saber de tudo: “Como é tua mãe? Que idade tem?”. Mag, que a adorava, deu todas as informações. Começou assim: “Mamãe é um doce”.

Norberto soube, então, que não era o único a espantar-se. Todo mundo pasmava para essa bonita senhora que, aos trinta e cinco anos, parecia uma adolescente. Quando as duas apareciam juntas, não se sabia qual era a mãe, qual era a filha. Fazia-se o comentário trivial e admirativo:

— Parecem irmãs!

Chamava-se Senhorinha, d. Senhorinha. Enviuvara cedo, com vinte anos. Foi assediada por novos e antigos pretendentes. Grave e triste, suspirava: “Nunca mais! Nunca mais!”. E concluía: “Nada mais me interessa! Vou viver pra minha filha!”. Amara o marido com a violência de um primeiro e último amor. Parecia-lhe que um novo casamento seria um adultério contra o morto. Até aquela data, não se lhe conhecia um flerte, um sorriso, um olhar, um gesto, que desse margem a suspeitas. Suas amigas, suas conhecidas, eram obrigadas a admitir:

— Séria até debaixo d’água!

E o próprio Norberto, quando foi apresentado à futura sogra, desabafou, em voz baixa, para Mag:

— Tua mãe é um fenômeno de circo!

Passaram a ser vistos juntos, sempre, nos teatros, nos cinemas, nas sorveterias. Mag confessava:

— Não sei fazer nada sem mamãe. Sem mamãe, não acho graça em nada.

Norberto pigarreia, lembrando:

— E quando a gente se casar?

Pareceu desconcertada. Súbito, tem a idéia:

— Mamãe mora com a gente, pronto! Não é uma solução genial? Você não acha?

Atrapalhou-se:

— Pois não! Claro! Evidente!

Mas quando foi dizer em casa, houve um certo mal-estar. A mãe tomou a palavra: “Não acho golpe!”. Admirou-se: “Por que, mamãe?”. A velha foi clara:

— Tua sogra é bonita, meu filho, bonita demais!

Alguém completou:

— Mais bonita que a filha!

Atônito, o rapaz ergueu-se. Perguntou: “Mas, afinal, vocês estão insinuando o quê?”. Exaltou-se:

— Quem vê diz que eu sou algum tarado, ora bolas! Acho uma graça!...

Novo suspiro materno:

— Meu filho, tenho visto coisas do arco-da-velha. Acho que você não deve ter muita intimidade com sua sogra. É minha opinião!

PRESSÁGIO

Pouco antes do noivado, um engraçadinho arriscou o seguinte veneno: “Tua sogra é duzentas vezes melhor que a filha!”. Teve que reagir com violência: “Não admito essas piadas!”.

Mas era feliz. Mag apaixonara-se por ele e de tal forma, com um fanatismo absoluto, que a própria d. Senhorinha ralhava:

“Assim já é demais!”. Mag replicava:

— Ora, mamãe! A senhora também não gostou assim de papai, não foi a mesma coisa?

Confessou:

— Foi.

E, de fato, eram de uma família em que as viúvas não se casavam mais, nunca mais. No fundo, d. Senhorinha gostava de ter amado uma vez só e para sempre. No dia em que ficou oficialmente noiva, Mag chamou a mãe. Angustiada, diz: “Mamãe, a senhora sabe que eu estou com um pressentimento? Um mau pressentimento?”. D. Senhorinha admirou-se:

— Mas por quê? Que bobagem, minha filha!

A pequena, dominada pelo presságio, teve um desespero maior:

— Se Norberto algum dia me abandonar, mamãe, eu me mato! Juro que me mato!

Pôs-se a chorar. A mãe pousou a mão na sua cabeça: “Não te abandonará, nunca, meu coração, nunca!”.

O DRAMA

De repente, d. Senhorinha começou a evitar a companhia dos noivos: “Hoje, eu não vou. Não estou me sentindo bem”. Isso aconteceu uma vez, duas, três e, por fim, sempre. Iam ao cinema, ao teatro sozinhos. Uma tarde, Mag estranha: “Você mudou, meu anjo!”. Ele pigarreou:

— Eu?

E ela, doce e triste:

— Você boceja tanto quando está comigo! Eu te dou sono, dou?

Recorreu à primeira desculpa: “Estômago, minha filha, estômago!”. Uns dois dias depois d. Senhorinha o procura, no escritório. Surpreso, ele a leva para o corredor.

A sogra começa: “Mag se queixa que você mudou e...”. Pára. Olham-se. Norberto ia mentir, ia dizer que não, que em absoluto. Súbito, a verdade rompe das profundezas do seu ser, como uma golfada:

— Mudei, sim. Não posso me casar com sua filha, porque amo a senhora!

D. Senhorinha encostou-se à parede; balbuciou: “Está maluco? Está louco?”.

No seu desvario, trincando as palavras nos dentes, repetia: “Te amo! Te amo! Te amo!”. Quis agarrá-la. Ela, porém, num movimento ágil desprendeu-se, fugindo pelo corredor. Nessa noite, quando chegou em casa, reduzido a um trapo, ele diria à mãe:

— Deu-se a melódia, mamãe! Apaixonei-me pela minha sogra. E agora?

AMOR

Na manhã seguinte, d. Senhorinha soluçava ao telefone: “Se você abandonar minha filha, ela morre!”. Foi um exasperante diálogo de umas duas horas. Por fim, Norberto capitulou:

— Eu continuarei com a sua filha, mas quero um beijo seu. Basta um. Um beijo, e pronto.

Pausa. Veio a pergunta: “Só um?”. E ele: “Só um”. Ele propôs um lugar não sei onde, que d. Senhorinha não aceitou. Encontraram-se, pouco depois, no corredor do escritório onde ele trabalhava. Ela impôs: “Jura que não abandonarás nunca minha filha?”. Jurou. E houve o beijo sem fim, desesperado, mortal.

Quando se desprendem, ela arqueja: “Eu nunca amei meu marido. Só amo a ti”. E fugiu, novamente. Quase ao encerrar o expediente, vem a notícia: a sogra fora atropelada, morrera na rua, antes que a ambulância chegasse. Então, com clarividente instinto, ele compreendeu que d. Senhorinha se matara, no remorso daquele beijo.

Durante o velório, Norberto se conservou numa dessas dores lúcidas, tranqüilas, enxutas. Mas quando a enterraram, ele não pôde mais. Atirou-se ao chão, mergulhou o rosto na terra ainda fofa, ainda fresca, e mordeu a terra com desesperado amor.
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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
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segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Charles Miller, o pai da matéria

Charles William Miller
O primeiro brasileiro a dominar a nobre arte de controlar a bola e marcar gols era quase um inglês chamado Charles William Miller (São Paulo, 24/11/1874 - idem, 30/06/1953). Nasceu perto da estação ferroviária do Brás, na época um bairro industrial e operário de São Paulo.

Seu pai era um escocês chamado John, que veio ao Brasil para trabalhar na São Paulo Railway Company (posteriormente Estrada de Ferro Santos-Jundiaí - EFSJ), e sua mãe uma brasileira de ascendência inglesa chamada Carlota Fox. Aos dez anos, foi estudar na Inglaterra. Lá, aprendeu – e bem – a jogar futebol.

Nos jogos oficiais do seu colégio, Charles era um artilheiro implacável. Marcou 41 gols em 25 partidas. “Nosso melhor atacante. Drible maravilhosamente rápido e chute brilhante. Marca gols com grande eficiência”, registrou na época o jornal da escola.

Seu belo futebol chamou tanto a atenção que acabou convocado para jogar no time do Southampton, a seleção local. Sem falar da partida que disputou pelo Corinthians famoso time amador inglês, o mesmo que anos mais tarde iria inspirar a fundação do Corinthians Paulista.

Mas quando desembarcou de volta ao Brasil, em 18 de fevereiro de 1894 para trabalhar na São Paulo Railway, Charles Miller se surpreendeu ao descobrir que ninguém praticava o esporte bretão por aqui. Sorte que trouxera duas bolas, uma agulha, uma bomba de ar e dois uniformes.

Começou então a catequizar os companheiros de trabalho e de críquete para tentarem o futebol.

O novo esporte vingou e, no primeiro campeonato disputado no Brasil (o Paulista de 1902), lá estava Miller encabeçando a lista de artilheiros com 10 gols em nove jogos.

O nosso primeiro homem-gol ainda jogou até 1910 pelo São Paulo Athletic, o time da colônia inglesa. Depois atuou como árbitro e, finalmente apenas como torcedor. Morreu em 1953, coberto de glórias por ter introduzido o futebol no país, mas sem ver o Brasil campeão do mundo.

Alguns historiadores contestam o pioneirismo de Charles Miller na história do futebol brasileiro, argumentando e apresentando documentação como prova de que o esporte mais popular do Brasil já era praticado no país antes da volta do famoso futebolista brasileiro da terra de seus antepassados. O escocês Thomas Donohoe teria sido o primeiro a promover uma partida de futebol no país.

Antes de Charles Miller, o futebol já havia sido jogado em terras nacionais. Tripulantes de navios mercantes e de guerra europeus costumavam bater bola sempre que desembarcavam no litoral brasileiro.

Em 1878, ocorreu uma famosa partida disputada no Rio de Janeiro, em frente à residência da Princesa Isabel. Como era entusiasta dos esportes, a princesa autorizou o jogo e, dizem alguns, até torceu.

O futebol só não vingou com os marinheiros porque, quando as partidas terminavam, eles voltavam para os navios, levando a bola embora.

Fontes: Revista Placar; Wikipedia.
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Um miserável

Apanhou uma gripe danada. Contorcia-se nos acessos de tosse. E ela própria chamava o marido:

— Vem cá, Belmiro, vem cá.

Ele largava o jornal e vinha. A mulher pedia:

— Escuta só.

E, de fato, os brônquios de Zuleica só faltavam assoviar. Ela própria, no fim de cada crise, gemia:

— Acho que apanhei algum golpe de ar.

E Belmiro:

— Vou te levar ao médico.

— Médico pra quê, homem de Deus? Sossega!

Tinha pavor de médicos, acusava-os de exploradores e dizia a todo mundo: “O meu dinheiro é que eles não levam!”. Argumentava, fazia contas. Belmiro ganhava pouco, uma miséria; e o dinheiro que ela fazia com a costura não dava para nada. Discutia com o marido e era irredutível:

— Imagine se a gente for gastar dinheiro com médico e remédio.

Mas a gripe não a largava. Estava com febre há uma porção de dias, a respiração curta e suores frios noturnos. O pior de tudo, porém, era a tosse, que estalava os pulmões e a asfixiava. Parecia até coqueluche. Tentou um xarope, que lhe recomen¬daram. Não sentiu, porém, melhora nenhuma. De noite, acordava e sentava-se na cama para tossir. No seu desespero, chorava:

— Eu morro, meu Deus do céu! Morro!

O PULMÃO

Houve quem sugerisse:

— Por que a senhora não tira uma radiografia?

— E o dinheiro, criatura?

— Tire daquelas pequenininhas!

Zuleica era teimosa, sempre fora teimosa. Preferia morrer a entregar os pontos. Mas uma noite, depois de um acesso feroz, sentiu gosto de sangue na boca. Numa desconfiança, acendeu a luz, passou a língua no lençol e viu a saliva rósea no pano. Ela, que fingia não dar importância à doença, tachando-a de “resfriado bobo”, tomou-se de um medo súbito e selvagem. Lembrou-se de sua tia, irmã de sua mãe, que morrera doente do peito em Campos do Jordão. Sacudiu o marido, que dormia ao lado, aos gritos de:

— Sangue! Sangue!

Não dormiu mais, com a idéia fixa de tuberculose. E o gosto de sangue continuava. Já estava de lenço na cama. Qualquer coisinha, acendia a luz, e encostava a língua no lenço para ver a mancha cor-de-rosa. No dia seguinte, pela manhã, decidiu:

— Vamos ao doutor Borborema, agora mesmo.

O marido ainda fez a objeção:

— O doutor Borborema?! Aquele boboca? Mas ele é um errado, minha filha!

— Outro, não! Quero o doutor Borborema!

Belmiro, enfiando-se nos lençóis, fez o comentário:

— Amarra-se o burro à vontade do dono!

Ora, o dr. Borborema era um velhinho bastante gagá e de eficiência ultraproblemática. Não curava ninguém, o diabo do homem; e, sem dúvida, a sua maior virtude consistia nas caronas, o abatimento que conseguiam os clientes menos favorecidos. Dava consultas num consultório onde a imundície campeava íngreme; dizia-se até que foram encontrados, lá, não sei se escorpiões ou lacraias. No caminho, Belmiro, resmungando:

— Um zebu, esse doutor Borborema!

E ela, pirracenta:

— Deixa, não faz mal!

Dentro do consultório miserável, o velhinho forrou as costas de Zuleica com uma toalha e fez ausculta. Como um médico do tempo de Dom João Charuto, com o ouvido nas costas da doente, comandou:

— Diga trinta e três.

E ela:

— Trinta e três.

— Agora tussa.

Tossiu várias vezes. E a tosse provocada acabou se tornando involuntária e irresistível; contorcia-se, esteve em risco de se asfixiar. Na parede estava emoldurado o seguinte dístico: “Enquanto no doente há vida, há esperança”. Belmiro, impressionado, perguntou:

— Então, doutor?

O velhinho já estava redigindo a receita, com a sua caneta-tinteiro. Sem deixar de escrever, deu sua opinião:

— Isso passa! Isso passa!

Belmiro, com a pulga atrás da orelha, insistiu:

— Nada no pulmão?

— Nada.

E o rapaz:

— O senhor me tirou um peso, doutor.

O médico ainda veio levá-los até a porta. Além de não cobrar nada, ou cobrar pouco, era gentil, educadíssimo.

Com uma dentadura dupla, móvel, ele a deslocava continuamente, a título de distração e vício.

A TRAGÉDIA

Zuleica voltou pior. E agora era ela quem, numa reviravolta inexplicável, malhava o dr. Borborema:

— Um burro! Não entende nada!

— Não foi você quem escolheu, ora essa?

E a moça, cravando as unhas no braço do marido:

— Eu vou morrer, Belmiro! Vou morrer!

— Oh, deixa de bobagem! Morrer coisa nenhuma! Parece criança!

Mas ela se entregava de corpo e alma à idéia fixa. E isso era mais que um presságio, era uma convicção, uma certeza inapelável. Sentou-se na cadeira de balanço na sala, e lá ficou horas a fio, numa meditação sem fim.

Quando o marido falou em aviar a receita, opôs-se:

— Não quero!

— Não queres por quê? Tem cada uma!

Baixou a voz numa obsessão:

— Porque é jogar dinheiro fora. Porque eu sei que vou morrer...

Belmiro ainda ligou para uma novela, que ambos ouviam. Ela, na sua tristeza de condenada, pensou que não poderia seguir as novelas, que escutava em horas diferentes. Nessa noite, não conseguiu dormir. Primeiro, por causa da tosse amaldiçoada; depois, porque queria pensar muito nesse mundo, que em breve ia deixar. E, na vigília, imaginou várias coisas, inclusive o próprio enterro. Queria que fosse muito bonito, de maneira a impressionar a rua inteira, sobretudo uma vizinha com quem se indispusera. Pena que os enterros modernos não fossem como os antigos, em que os carros fúnebres eram puxados por cavalos brancos empenachados. Súbito, ocorreu-lhe o problema: — e o dinheiro? Onde, como e quando Belmiro poderia conseguir o dinheiro para o enterro de luxo? Até o sol raiar, ela não pensou senão nos meios de que ele poderia lançar mão para os funerais. Queria que eles fossem espetaculares o bastante para humilhar a tal vizinha. E tanto pensou que, descobrindo uma solução, acordou Belmiro. Ele, com um sono danado, virou-se, agressivo, malcriado. Mas quando a ouviu falar em morte, controlou-se. Então, doce, persuasiva, Zuleica disse-lhe que queria um enterro bonito. Mas como sabia que ele não tinha dinheiro, ela sugeria que recorresse a Humberto. O marido pulou da cama:

— Mas eu nem conheço esse cara! Um sujeito metido a besta, só porque tem dinheiro!

E ela:

— Quando ele souber que é para mim, que é para meu enterro, te dá, Belmiro, paga tudo! Te juro pela minha salvação!

Só então Belmiro teve a suspeita:

— Mas vem cá! Dá dinheiro por quê? Hein? Por quê? O que que esse palhaço é teu?

Não sei se Zuleica diria ou não. Mas quando ia abrir a boca teve uma violentíssima hemoptise. Diante do sangue, que vinha em golfadas medonhas, dissolveram-se os ciúmes de Belmiro. Ele gritou; acudiram os vizinhos. Deram injeção, cálcio, puseram saco de gelo, mas quem disse que o sangue estancava? Nas hemoptises sucessivas, Zuleica só pensava na vizinha antipática e, mais do que nunca, desejou deslumbrá-la com um grande enterro. Olhava para o marido como se dissesse: “Quero um enterro de luxo!”. Se pudesse falar teria ampliado seu pedido para uma missa de sétimo dia, com violino, canto e não sei quantos coroinhas. Acabou não resistindo; fez um esforço supremo e sussurrou:

— Um enterro... bonito... missa, missa e...

Já suas unhas estavam roxas, e esse esforço a matou mais depressa. Diante da morte, Belmiro caiu numa crise violentíssima e teve que ser arrastado à força do quarto. Meia hora depois, na sala, enquanto cá no quarto se vestia a morta, ele pensava em Humberto. Era evidente que... Um vizinho interrompeu o curso de suas reflexões oferecendo-se para tratar do enterro. Sobressaltou-se:

— Obrigado, fulano. Mas eu mesmo trato disso.

OS FUNERAIS

Foi bem estranho o que aconteceu. Humberto, que Belmiro mal conhecia de vista, recebeu-o com certo espanto e, pelo que o outro pôde deduzir, com certo pânico. Ao receber, porém, a notícia da morte da Zuleica, teve, ali mesmo, na frente do marido espantado, quase que uma crise de loucura. E dizia com eloqüência justamente:

— Coitadinha! Coitadinha!

Ainda chorava quando soube dos últimos desejos da morta: o enterro caro e a missa.

Declarou que fazia questão de arcar com todas as despesas. Belmiro, com o máximo de discrição, disse:

— Vou saber quanto é, e volto já.

Na Santa Casa, a seu pedido, deram o orçamento de dois enterros: o mais caro e o mais barato. O primeiro fazia um total de quinze contos. Belmiro encomendou o mais barato, com grande espanto do agente funerário. Voltou ao escritório de Humberto, de quem recebeu os quinze contos e mais três para a compra de uma coroa monumental. No dia seguinte pela manhã saía, da casa de Belmiro, o coche fúnebre, quase de indigente. A vizinha, que não se dava com Zuleica, estava na janela quando passou o enterro. Na volta do cemitério, o viúvo já pensava na missa. Felizmente, Humberto não aparecera, por naturais escrúpulos. E, assim, Belmiro pôde procurá-lo, dias após, no escritório. Trouxe dinheiro para uma missa com três padres, cinco coroinhas, canto, violino etc. etc.
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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
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