terça-feira, 18 de outubro de 2011

A celebração das descobertas

"E Deus quis que o Novo Mundo fosse descoberto pelos reis cristãos e seus vassalos, e que eles aceitassem alegremente o trabalho de converter e conquistar os idólatras. Bendito seja o Senhor!"

Assim Gonçalo Fernandes de Oviedo (Madrid, 1478 - Valladolid, 1557), escritor, cronista e colonizador espanhol, descreve o espírito de sua época, na obra Historia General de las Indias e de las Tierras del Mar Oceano, escrita em 1535 (figura ao lado).

Tempo em que os espanhóis invadiam e dominavam as terras descobertas por Colombo, "para maior Glória de Deus". E foram os próprios conquistadores que começaram a transformar sua aventura em história:

Oviedo, um fidalgo que veio às Américas para colonizar, foi o primeiro "cronista de Indias" da coroa espanhola - em outras palavras, historiador oficial encarregado de justificar e glorificar a conquista. A "descoberta" foi descrita como uma vontade divina. Os índios eram infiéis sem civilização, como os negros africanos: deviam se converter ou virar escravos.

Cronistas da época também esculpiram a versão de que nenhum outro povo "civilizado" alcançara o Novo Mundo antes dos ibéricos. Não à toa: o dono, claro, era quem chegou primeiro e a ele cabia o direito de ficar rico com isso.

O mesmo raciocínio foi adotado uns dois séculos depois pelos colonizadores ingleses da Austrália: embora a ilha já tivesse sido avistada pelos portugueses em 1522, pelos holandeses em 1614 e talvez pelos chineses bem antes disso, o "descobridor oficial" foi o britânico James Cook, que tomou posse da terra em nome da Coroa inglesa. (De todos os possíveis descobridores da Oceania, só os chineses vestiam "longas túnicas", como os misteriosos visitantes das lendas aborígenes e maoris).

No Brasil, a transformação de Pedro Álvares Cabral em herói só ocorreu no século 19. Até então, livros de história mal falavam nele. Em Portugal, também era pouco lembrado: a casa que pertencera à sua família, na cidade de Santarém, ficou abandonada por séculos e chegou a virar um prostíbulo, até ser restaurada em meados do século 20. "Depois da Proclamação da República, em 1889, o país buscava uma identidade nacional, precisava de um herói em suas origens", diz Leandro Karnal, da USP.

Colombo também permaneceu nas sombras por séculos e só foi reabilitado em 1866, quando americanos de origem italiana inventaram o Columbus Day, ou Dia de Colombo. O objetivo era sublinhar o papel da Itália na colonização da América - truque ideológico numa época em que os imigrantes italianos eram desprezados e até linchados pela elite anglo-saxã.

Com o tempo, a celebração da "descoberta" foi exportada para a América Central e do Sul e até hoje faz parte de muitos calendários nacionais. É um bom exemplo de história contada pelos vencedores: europeus, brancos e cristãos. Se nossos livros tivessem sido escritos pelos perdedores, talvez todos esses relatos não fossem contados como épicos, mas em tom apocalíptico.


O frei dominicano Bartolomé de Las Casas em sua obra Brevíssima relação da destruição das Índias, escrita em 1542, faz uma série de denúncias a respeito da exploração e dos abusos dos colonizadores:

[...] e tendo experiência que em nenhuma parte podiam escapar dos espanhóis, sofriam e morriam nas minas e nos outros trabalhos, quase como pasmados, insensíveis e pusilânimes, degenerados e deixando-se morrer, calando desesperados, não vendo pessoas no mundo a quem pudessem queixar-se nem que delas tivesse piedade”.

No México e no Peru, sacerdotes indígenas decretavam que seus deuses nativos estavam mortos e anunciavam o fim da civilização. O que os "descobertos" pensavam sobre a tal Idade dos Descobrimentos pode ser resumido em um verso, escrito por um poeta indígena do México na aurora do Novo Mundo:

"Oh meus filhos, em que tempos detestáveis vocês foram nascer!"

Fontes: Passeiweb; Wikipedia; Para entender história...
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Da linha chinesa

Todos os dias, chova ou faça sol, vou tomar o meu copo de leite, ou meu prato de mingau, ali, no Cabaré dos Bandidos. É na esquina de Mem de Sá com Tenente Possolo.

Eu tenho, se assim posso dizer, uma úlcera amestrada, que dói na hora certa. Nunca houve uma lesão duodenal tão adulada. E, assim, com papinhas analgésicas, minha úlcera vive a vida que pediu a Deus. Boa, excelente ferida. Mais do que um martírio, é um hábito. Sinto falta de sua dor e, quase diria, saudades de sua acidez.

Ontem, aconteceu como sempre: — na hora convencional, começaram os seus espasmos de víbora. Olho o relógio e constato a sua pontualidade. Manifestava-se na hora própria, nem um minuto a mais, nem um minuto a menos.

Levanto-me e vou para o Cabaré dos Bandidos, a dois passos do trabalho. Quando chego na esquina, paro em cima do meio-fio. Fechara o sinal para os pedestres. Ao meu lado estava um jovem havaiano do Leblon, vasta cabeleira, imensas costeletas, blusão de couro. De propósito, e não sei por que, esperou que o sinal abrisse para os carros. Podia ter atravessado antes, com os outros. Não. Ficou esperando.

E quando os carros, os ônibus começaram a rolar, desceu do meio-fio como de um pedestal. Seria talvez um desafio. Ou estaria testando a própria onipotência. Os Fuscas passavam em delirante velocidade. E lá ia ele, num passo mole, sem olhar, de perfil, sempre de perfil, sem pressa, uma morosidade insolente. A princípio, imaginei: — "Vai morrer".

Se fosse um velho, ou uma senhora, ou alguém de mais de 35 anos, seria fatalmente arrastado, esmagado.

Logo, porém, baixou em mim uma certeza total: — não aconteceria nada. Ele chegaria ao outro lado, maravilhosamente intacto.

Os Fuscas tiravam finas mortais. Houve derrapagens, buzinas; em dado momento, um pneu chiou como uma cigarra lancinante. E nada aconteceu, prodigiosamente nada. Por um desses milagres irritantes, aquele rapaz não seria atropelado, em hipótese nenhuma. De uma calçada a outra, cumpriu a sua travessia encantada. A velocidade o poupou como a um santo.

Em outros tempos, ou na passada geração, o mesmo jovem levaria uma trombada assassina. Seria batido, ao mesmo tempo, por três automóveis. E ficaria emborcado, rente ao meio-fio, com a cara enfiada no ralo. Uma apiedada mão acenderia uma vela. Alguém talvez o cobrisse com uma folha de jornal. E a chama ficaria lambendo o silêncio.

Depois, viria o rabecão apanhá-lo. E, então, o jovem seria apenas um cadáver numerado do necrotério.

Hoje, não. Há, por toda a parte, a "jovem revolução". É um movimento mundial. Quem o diz, e as manchetes o confirmam, é o Carlinhos de Oliveira. Os jovens se levantam na China, na França, nos Estados Unidos, na Inglaterra. E por que se levantam?

Segundo se diz, porque estão insatisfeitos com os valores até então vigentes. Só que tais valores, ninguém os realizou e todos os traíram. E os jovens parisienses arrancaram os paralelepípedos, viraram os carros e incendiaram a Bolsa.

Na China, a guarda vermelha caça os inimigos de Mao Tsé-tung. Sim, os desafetos de Mao são exterminados a pauladas, na rua, como obesas ratazanas.

Tem razão o Carlinhos de Oliveira: — a "jovem revolução" é mundial. Só uns dois ou três sujeitos, estreita e amargamente positivos, insinuam que se está fazendo, e também em dimensões mundiais, uma gigantesca e irresistível impostura. Outros espíritos, também minoritários, afirmam o seguinte: — a "jovem revolução" nada tem de jovem. São precisamente os velhos que a promovem.

E, com efeito, o caso da China dá o que pensar. A guarda vermelha tem, já o disseram, a idade de Mao Tsé-tung e, possivelmente, a sua obesidade e, mais possivelmente, a sua arteriosclerose.

Cabe então a pergunta: — e por que, de repente, os "mais velhos" resolveram idealizar o jovem e conferir ao jovem a própria onipotência?

Referi, mais acima, o episódio de trânsito. O rapaz que, insolentemente, esperou que o sinal fechasse para os pedestres e só então atravessou a rua. Não foi atropelado porque os veículos também bajulam a "jovem revolução".

Ainda ontem, fui procurado por um rapaz, estudante de teatro. Entrou na redação e vinha solene, ereto, hierático.

Pára na minha mesa. Diz, gravíssimo: — "Seu Nelson, trouxe isto aqui para o senhor ler". Era um recorte de jornal; explica:  — "É uma entrevista da Cacilda Becker". Estou ouvindo, risonhamente. E ele continua: — "Queria que o senhor lesse, o senhor que é contra o jovem".

Com tal afirmação, o rapaz criou entre nós o súbito e cavo abismo da primeira divergência.

Dá-me um certo cansaço, um certo tédio, ouvir que sou contra o jovem. Repeti para o rapaz a casta e singela verdade: — não sou contra ou a favor de ninguém, automaticamente.

Expliquei que a mais tola das virtudes é a idade. Que significa ter quinze, dezessete, dezoito ou vinte anos? Há pulhas, há imbecis, há santos, há gênios de todas as idades. Naturalmente, o jovem tem o defeito salubérrimo e simpaticíssimo da imaturidade.

De vez em quando, isto é, de quatro em quatro séculos, aparece um Rimbaud. Aos dezessete anos, fez toda a sua obra. Se não me engano, o poeta acabou aos dezessete anos.

Viro-me para o rapaz: — "Queres que eu te admire? E te faça manchetes? Sê um Rimbaud. Aí está a solução. Sê Rimbaud".

Foi então que o garoto ousou a confidência: — não estava interessado em poesia.

Fiz um alegre escândalo: — "Não é possível! Um estudante de teatro tem que estar interessado em poesia!".

Novamente, ele me surpreendeu ao dizer que também não estava interessado em teatro. Desta vez, o meu espanto teve um mínimo de irritação. Disse-lhe: — "Escuta cá. Se não te interessas nem por teatro, nem poesia, estás interessado em quê?".

Disse, ofegante da vaidade: — "Sou da linha chinesa".

Fez-se uma pausa. E, então, catei na mesa a entrevista da minha amiga Cacilda Becker. Mas, antes de lê-la, fiz para o rapaz algumas observações de minha experiência teatral.

Eis a minha tese: — uma atriz ou ator não devia ter nada com a vida real. Por exigência contratual, não poderia deixar o palco, nunca. Justifiquei meu ponto de vista: — a Duse, a Sarah Bernhardt ou qualquer outra grande atriz age e reage, cá fora, como uma canastrona. Eu preferia uma Cacilda dramática, lírica, romântica, e não impressa.

A Cacilda impressa, a mim, não me diz nada. Nem a líder. Conheço-a, somos amigos, admiro-a profundamente. E parece que eu estava adivinhando. Começo a ler e paro nesta frase: — "O mundo é dos jovens". A gloriosa atriz dá o mundo, de graça, de mão beijada.

O sujeito tem dezessete, dezoito, vinte. Pronto. Toma o mundo. Mas vejam como, numa simples frase, está todo um crime, ou seja, o crime de dar razão a quem não a tem. O mundo só pode ser dos que têm razão. Mas a razão é todo um maravilhoso esforço, toda uma dilacerada paciência, toda uma santidade conquistada, toda uma desesperada lucidez.

Não era bem assim que eu queria dizer. Faltam-me palavras.

[20/6/1968] 
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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Mazzaropi

Mazzaropi (Amácio Mazzaroppi), cineasta, comediante, ator e cantor, nasceu no bairro da Barra Funda, em São Paulo, SP, em 1912, e faleceu na mesma cidade, em 13/6/1981. Estudou muito pouco e não chegou a terminar o curso ginasial. Quando adolescente, era fã da dupla de atores Genésio e Sebastião de Arruda. Com 15 anos de idade, assistindo a um espetáculo de circo, sem saber como, acabou indo parar nos bastidores e dali terminou trabalhando como pintor de letreiros.

Iniciou a carreira artística apresentando-se em circos, pois logo trocou os pincéis por um personagem vestido de caipira. Foi para o interior e começou a apresentar monólogos cômico-dramáticos.

O sucesso foi imediato, porém os rendimentos eram extremamente baixos. O salário de cerca de 25 mil-réis quase não dava para as despesas diárias. Quando formou sua própria companhia, a situação começou a mudar, tornou-se conhecido e todos os circos começaram a requerer a sua presença.

Em 1946, iniciou-se na Rádio Tupi de São Paulo. Em 1950, estreou na TV, no Canal 6, Tupi do Rio de Janeiro. De 1959 a 1962, apresentou programa na TV Excelsior de São Paulo.

Em 1952, participou de seu primeiro filme. Foi convidado pelo autor de peças para o Teatro Brasileiro de Comédia, Abílio Pereira de Almeida, que ficara deslumbrado ao vê-lo atuar em um programa de televisão, para fazer um teste. Passou e Abílio Pereira dirigiu Mazzaropi no filme Sai da frente. Nascia naquele filme o personagem característico de Mazzaropi, o Jeca, um tipo caipira de andar desengonçado, fala mansa, usando roupas curtas e sujas.

Em 28 anos de carreira fez 31 filmes, entre os quais Chofer de praça, Pedro Malazartes, O vendedor de lingüiças, O corinthiano, Casinha pequenina, Lamparina, uma sátira a Lampião, No paraíso das solteironas, Jeca Tatu, um de seus maiores sucessos, Uma pistola para Djeca, Betão Ronca Ferro, O grande xerife, Um caipira em Bariloche, Portugal... minha saudade, O jeca macumbeiro, Jeca e seu filho preto, O jeca contra o capeta, Um fofoqueiro no céu, A banda das velhas virgens e seu último filme O jeca e a égua milagrosa.

Seus filmes apresentam muita música popular, inclusive sertaneja (e até mesmo um pouco do nascente rock brasileiro). Na década de 1960, gravou alguns discos com sucesso, como a marcha Nhá Carola (Petit), em dupla com Lolita Rodrigues (RGE), e o xótis O azar é festa (Ado Benatti e Zé do Rancho), pela RGE.

Quase todas as atuações de Mazzaroppi como cantor em seus filmes estão reunidas nas coletâneas Os grandes sucessos de Mazzaroppi (RCA Camden, 1968) e Os grandes sucessos de Mazzaroppi, vol. 1 (Intermovies, 1995, em LP e CD, embora sem créditos dos autores das músicas). Jean e Paulo Garfunkel compuseram emsua homenagem a toada Mazzaroppi, gravada por Pena Branca e Xavantinho em 1990.

Faleceu em 1981, no Hospital Albert Einstein, de câncer na medula, deixando como herança, além de seus filmes, uma produtora com tudo funcionando perfeitamente, estúdios, máquinas e filmes virgens, que foi tocada adiante por seus filhos adotivos, Péricles Batista e João Batista de Souza. Deixou parte de sua imensa herança para seus antigos funcionários.

Fontes: Enciclopédia da Música Brasileira - Art Editora e Publifolha; Dicionário Cravo Albin da MPB.
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